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O fim da infância (1850-2009)

A infância é uma ideia, uma abstração, um paraíso artificial. Entenda como ela foi inventada e no que pode dar a sua desinvenção

Por Emiliano Urbim
Atualizado em 31 out 2016, 19h04 - Publicado em 12 mar 2011, 22h00

O conceito de infância faleceu em 7 de julho de 2009, vítima de causas múltiplas. Consagrada no século 19, a ideia de uma etapa da vida protegida dos males do mundo já vinha com a saúde declinante havia 50 anos, atingida pela era da informação e pela expansão da adolescência, entre outros fatores. O que determinou a morte foi a participação de Paris Katherine no funeral de seu pai, o cantor Michael Jackson. (“Ele foi o melhor pai que se pode imaginar”, disse Paris). Bastou para que explorassem a imagem da menina de 11 anos, complicando uma vida que já não será fácil. Não interessa se ela é criança – é uma celebridade como as outras. Juridicamente, a infância sobrevive: vai até os 12 anos.

O obituário acima é uma provocação – se você acompanhou o caso na época, pode até argumentar que o fez somente por curiosidade. Mas já faz pelo menos duas décadas que estudiosos da cultura contemporânea veem eventos como esse e concluem: a infância está desaparecendo.

Não é que os seres humanos estejam engrossando a voz logo que aprendem a falar. A diferença é que esses jovens seres, que havia séculos habitavam um mundo que construímos para eles, há algum tempo vêm usufruindo dos prós e contras do universo dos adultos.

“A infância é um artefato social, não uma categoria biológica”, escreveu o americano Neil Postman. Provando que a infância era uma invenção cultural, o historiador alertava que a mesma sociedade que a criou poderia determinar o seu fim. No começo dos anos 80, ele via como principal ameaça o fato de adultos e crianças verem os mesmos programas de TV – nem imaginava a banda larga que viria pela frente. Mas, já que o assunto é infância, sejamos didáticos: vamos começar do começo.

A invenção da infância

Aos 13 anos, o príncipe Alexandre, que ainda não era o Grande, começou a ter aulas com Aristóteles. Aos 16, já comandava exércitos da Macedônia. A transição brusca do banco da escola para a cela do cavalo é um bom exemplo de como os gregos e romanos viam seus jovens abastados: se vivessem o suficiente, poderiam adquirir alguns conhecimentos úteis e, assim que possível, deveriam estar aptos para todas as demandas do mundo adulto.

Na Idade Média, a vida das crianças piorou. As que chegavam até a idade de conseguir segurar um instrumento de trabalho quase sempre aprendiam a profissão de seus pais. O acesso à educação ficou muito restrito: os mosteiros detinham o monopólio do conhecimento, e não tinham interesse em disseminá-lo para além de suas paredes. (Fãs de O Nome da Rosa talvez se lembrem dos monges que morreram tentando ler um livro proibido.)

Esse estado de coisas, estabelecido ali pelo século 5, só foi alterado com a invenção da imprensa, em 1439. Sim, imprensa: o consenso entre os historiadores é de que ela é a mãe da infância, por ter permitido a popularização dos livros e o ressurgimento das escolas. Como explica Neil Postman em O Desaparecimento da Infância: “Em um mundo iletrado, não há necessidade de distinguir com exatidão a criança e o adulto, pois existem poucos segredos e são poucas as instruções para dominar a cultura cotidiana. Em um mundo letrado, as crianças precisam transformar-se em adultos”. Gradualmente, aqueles serezinhos que nem constavam nos testamentos e que não ganhavam pão se os adultos tinham fome se tornaram investimentos de longo prazo. O burguês esperto que colocasse seus filhos na escola estava tão-somente buscando garantir o seu futuro.

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Justificado economicamente, o confinamento dos jovens em ambientes separados do dos adultos começou a suscitar sentimentos em pais e mestres, que passaram a acreditar que aquela parcela da população tinha “outra natureza e outras necessidades”, nas palavras do historiador inglês J.H. Plumb. O iluminismo e as revoluções burguesas inspiradas por ele transformariam essas boas intenções em conquistas reais: os novos códigos civis reconheciam as crianças como sujeitos com direito a proteções legais específicas e necessidades especiais.

Mas havia outra revolução no meio do caminho: a industrial. As novas fábricas fizeram milhares de pais rever seus conceitos recém-estabelecidos para botar os pequenos a trabalhar e ajudar no orçamento familiar. Foi preciso que uma ideia “inusitada e radical”, como define Postman, entrasse em vigor: o Estado passou a se dar o direito de agir como protetor das crianças. E, com o governo no papel de tia da creche, a infância foi brincar tranquila.

Em 1850, a transição está completa. O mundo, que era um só, virou dois: o das crianças e o dos adultos. É nele que se falam sobre diferenças entre classes sociais, morte, doença, violência, dinheiro e, o segredo mais bem guardado, o sexo. De assuntos como esses, as crianças deveriam ser poupadas, em nome de uma infância sadia.

Tudo pela tela

Assim como a imprensa é considerada a pedra fundamental sobre a qual se construiu a ideia de infância, a popularização da TV é considerada o princípio da depredação do prédio.

Se o mundo letrado havia criado culturas separadas para adultos e crianças, assuntos de gente grande e gente pequena, ao reunir a família toda em volta de sua tela, a televisão voltou a aproximar esses dois mundos. Ou melhor: como aquela criança mais velha que ensina palavrões para as menores, ela volta e meia transmitia conhecimentos que os pais preferiam que seus filhos ainda não soubessem. “O acesso das crianças a informações do mundo adulto transformou tudo drasticamente”, garante Joe Kincheloe, coautor do livro Cultura Infantil e professor de estudos culturais e pedagogia na Universidade Penn State.

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Naquelas residências onde essas transformações nem foram sentidas como tão drásticas assim, além de amiga indiscreta, a TV acabou cumprindo o papel de babá eletrônica. É aí que entra na equação o que os especialistas chamam de pedagogia cultural corporativa – a parte da nossa criação realizada pela indústria do entretenimento. Parece banal, mas era um fato inédito na história do nosso desevolvimento. Se antes as memórias de infância eram criadas sob a supervisão dos pais ou na companhia de outras crianças, agora elas vinham da TV, da música, dos filmes. “Por decisão ou omissão dos pais, mais e mais experiências dos nossos filhos são fruto de conteúdos produzidos por corporações comerciais”, diz Kincheloe.

É inegável que as gerações que cresceram na frente da TV tiveram acesso a um volume de informações muito maior do que as anteriores – sem fazer juízo de valor sobre essas informações, que poderiam ser fofocas sobre a filha do Michael Jackson. A verdade é que a quantidade de tempo na frente da tela foi aumentando a cada década, chegando ao ápice nos anos 90. E então ela começou a cair. Para desespero dos pais, porque agora as crianças podiam aprender o que quisessem em outra tela, a do computador.

Nas últimas páginas de O Desaparecimento da Infância, Neil Postman faz uma ressalva: “A única tecnologia que tem potencial para sustentar a necessidade de infância é o computador”. E explica: “Para programar um computador, é preciso, essencialmente, aprender uma linguagem. Isso significa que é necessário dominar complexas habilidades analíticas [grifo meu] semelhantes às exigidas de uma pessoa plenamente alfabetizada, e para isso é indispensável treinamento especial”. Bom, hoje muitos estão na internet antes de plenamente alfabetizados, tendo acesso a muito mais informações do mundo adulto – uma expressão que, nessa altura do século 21 e do texto, já não faz mais nenhum sentido.

Tobogã abaixo

O que a imprensa colocou de pé a TV e a internet vêm colocando de lado, mas não é só na busca por informações antes exclusivas que podemos detectar sinais do fim da infância.

A consagração da adolescência como a melhor, a mais divertida e inesquecível idade para todos os seres humanos, uma ideia que começou a pegar nos anos 50, também exerce uma pressão para que as crianças deixem logo de sê-lo. Em linguagem de marketing, ser jovem é “aspiracional”, algo que as pessoas aspiram, almejam, desejam. Para suprir essa demanda anteriormente reprimida no estereótipo sem graça de “pré-adolescente”, marqueteiros criaram o rótulo tween – um trocadilho com between (“entre”) e teen (“adolescente”) para inserir todo tipo de produto voltado a quem antes eram crianças de 9 a 12 anos.

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Os ídolos desse público podem se comportar de forma pudica, como os vampiros virgens de Crepúsculo, mas, na vida real, o apelo sexual é aproveitado assim que possível. Miley Cyrus se fez de santa no seriado Hannah Montana, mas posava sensual na capa das revistas. A própria Xuxa achou que a princesa Sasha, com 10 anos, já estava precisando de um príncipe, e promoveu um concurso para escolhê-lo. O vencedor foi Bruno Mesquita, 15 anos, que fazia o estilo “Jonas Brother”, e os dois fizeram par romântico em um filme.

A pressão para se tornar adulto nos relacionamentos também se reflete no campo profissional. Crianças de 3 anos já estão aprendendo um segundo idioma, e as que entram no ensino básico já têm uma agenda lotada de cursos, aulas extras, grupos de estudo – nenhum pai quer que seu filho fique para trás. Nos EUA já há um movimento para que as escolas públicas passem menos dever de casa.

A ética profissional é incutida cada vez mais cedo. Quando a menina Maisa, então com 7 anos, teve problemas com seu chefe, Sílvio Santos (recapitulando: ele a fez chorar duas vezes e a prendeu dentro de uma mala), seus pais logo trataram de esclarecer que ela não deixaria de cumprir os seus contratos com o SBT.

Ânsia de infância

Por mais que todos os programas de TV educativos e as cantigas politicamente corretas queiram, uma corrente muito forte na outra direção leva a crer que a infância clássica está com os dias contados. O que fazer? Para Kincheloe, a mudança tem de começar onde tudo começou: “As escolas têm de ser reformuladas desde os seus fundamentos”. O currículo é organizado como se as crianças aprendessem sobre o mundo na sala de aula, ignorando todas as informações disponíveis fora dela. Para ele, é preciso um modelo de infância que entenda que a crianças podem, querem e vão aprender sozinhas. “As crianças pós-modernas não pedem permissão dos adultos para aprender”, diz.

Quanto antes se reconhecer isso, melhor. Afinal de contas, pais e mestres não deveriam esperar a indústria de celebridades passar dos limites para serem lembrados que as crianças não são mais tão infantis.

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Antiguidade
Houve um embrião de infância na Antiguidade clássica: gregos e romanos ricos colocavam seus filhos mais espertos na escola. Ainda assim, eles tinham acesso a todas as informações e atividades do mundo adulto, podendo casar ou morrer em batalha muito cedo.

Idade Média
Sobreviver a pestes e invasões bárbaras não permite distrações como escolas e alfabetização. Numa cultura quase que 100% oral, o mundo é o mesmo para humanos de todas as idades. Meninos e meninas são apenas adultos em miniatura e fim de papo.

Invenção da Imprensa
Em 1429, um alemão chamado Gutemberg inventa a imprensa. Os livros não precisam mais ser copiados à mão e se multiplicam. O efeito colateral disso é o ressurgimento e a expansão das escolas. Para se tornar adulto, é preciso aprender algumas coisas antes.

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Idade Moderna
Entre a nobreza começa a surgir a preocupação de poupar as crianças dos males do mundo, ainda que eles viessem com tudo quando o dever chamasse. Mas, entre a plebe, a infância ainda é apenas um sonho.

Revolução Francesa
Liberdade, Igualdade e Fraternidade se estendem às crianças. Ir à escola se torna obrigatório e aparecem os direitos da criança. A partir daí elas são vistas como seres diferentes, que precisam de proteção e carinho dos pais até virarem adultos.

Revolução Industrial
Quando surgem as fábricas, a primeira tentação em todos os países industrializados é colocar as crianças para trabalharem junto com suas mães por horas e horas. Mas logo a sociedade reage e o trabalho infantil é proibido.

A Era de Ouro
A partir de 1850, tem início o auge do conceito da infância. As crianças têm roupas, brincadeiras, linguagem e até uma psicologia feita sob medida. São idealizadas como um tesouro que devia ser preservado ao máximo.

Início do Fim
Com o sucesso da TV, na década de 50, tem início o esvaziamento do conceito de infância. A partir daí, as crianças voltam partilhar de informações destinadas aos adultos, deixando a proteção do mundo infantil.

Hoje
A queda que começou em 1950 tem sinais muito claros hoje: as crianças estão se tornando adolescentes cada vez mais cedo, o trabalho infantil, se der muito dinheiro, está sendo valorizado, e até a Turma da Mônica precisou ficar adolescente para voltar a vender.

Para saber mais

O Desaparecimento da Infância
Neil Postman, Graphia.

Cultura Infantil
Org. Shirley Steinberg e Joe Kincheloe, Civilização Brasileira.

 

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