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Epidemias, seca e fome: A bomba-relógio da superpopulação

Um cientista revela como a degeneração do meio ambiente e as grandes epidemias podem ter uma causa explosiva.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h59 - Publicado em 30 abr 1993, 22h00

Flávio Dieguez e René Decol

Quando publicou o livro A bomba populacional, em 1968, o biólogo americano Paul Ehrlich, da Universidade Stanford, em São Francisco, Califórnia, acendeu o pavio de uma enorme polêmica. Experiente analista das agressões ao ambiente e com profundos conhecimentos de ecologia, ele não se preocupava com a mera falta de espaço num mundo abarrotado. Naquela época, já antecipava as formidáveis dores de cabeça dos anos 80 e 90. Efeito estufa, chuva ácida, Aids, escassez de alimentos, destruição da camada de ozônio, redução da diversidade biológica e das florestas tropicais. Tudo isso, argumentava o cientista, faz parte de um grande distúrbio da natureza, em escala planetária. Ehrlich, vale lembrar, lançou esse alerta em 1968, quando os atuais desastres eram apenas enredos de ficção científica. Mas o crescimento demográfico já estava decolando de forma sequer sonhada em décadas anteriores. Basta ver que, a cada ano, 80 milhões de novos habitantes eram adicionados aos 3,5 bilhões já existentes. E o mais importante era a velocidade do crescimento: a humanidade havia gasto dezenas de milhares de anos para ganhar seu primeiro bilhão de habitantes, fato que ocorreu por volta de 1800. Mas, em seguida, foram necessários apenas mais 130 anos para dobrar aquele número, de tal modo que em 1930, 2 bilhões de pessoas se espalhavam pelo planeta.

O próximo passo se deu em tempo ainda menor, 30 anos e assim por diante. Na década de 90 o crescimento entra em sua fase mais intensa — quando bastam 11 anos para “produzir” 1 bilhão de pessoas —, mas se nada for feito para contê-lo, o ritmo explosivo deverá prosseguir até a metade do próximo século. Esse tipo de atropelo é que poderia levar a espécie humana a um beco sem saída, já que ela não terá um futuro saudável se sua quantidade dobrar dos atuais 5,5 bilhões para mais de 10 bilhões. Há três décadas, o argumento de Ehrlich era simples: se o crescimento da população não fosse contido, a própria natureza se incumbiria de contê-lo. Nada mais didático do que o sufocante exemplo dos alimentos: à medida que aumenta o número de bocas, se torna cada vez mais difícil produzir comida para todo mundo. E isso eleva a taxa de mortalidade.

Menos óbvio, mas tão revelador quanto o exemplo anterior, é o caso das epidemias: o excesso de gente leva à proliferação de microorganismos e dificulta os serviços de prevenção e tratamento das doenças. Será possível que o homem — tão orgulhoso de seu domínio sobre a natureza — se deixe arrastar a essa espécie de apocalipse ecológico? Ehrlich acredita que sim. Tanto que, quase 25 anos depois, ele volta ao tema por meio de um novo livro, publicado em 1990 e ainda não editado em português. Seu título — Explosão populacional — significa justamente que a bomba antevista em 1968 afinal explodiu.

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Uma das muitas evidências a seu favor foi a eclosão da Aids e outras epidemias cuja força vai muito além do que imaginavam os especialistas há pouco mais de uma década. Para Ehrlich, essa era uma ameaça previsível, pelo menos em linhas gerais, e muitos cientistas importantes, em retrospectiva, concordam com isso. É perfeita uma declaração do virologista americano Howard Temin, premiado com o Nobel de Medicina em 1975, a respeito da Aids: “O que me surpreende é que tenha havido apenas uma epidemia desse tipo”. Certamente não é fácil avaliar até que ponto o biólogo de Stanford está certo, especialmente porque suas previsões são apenas qualitativas, ou seja, não podem ser colocadas em números ou mesmo afirmações precisas.

Mas um esboço de seus principais argumentos ajuda a entender por que o cientista se sente tão seguro de si. Um dos principais focos de sua atenção é o chamado ambiente imunológico — ou seja, tudo aquilo que pode criar maior ou menor facilidade à eclosão e transmissão de doenças. Sua conclusão é que a situação se torna mais precária a cada ano. Um motivo básico, muito marcante nos países do Terceiro Mundo, é o número cada vez maior de pessoas vivendo nas cidades. Esse acúmulo, aliado a condições sanitárias delicadas ou deploráveis, faz com que as pessoas se tornem alvo ideal para epidemias velhas e novas.

O vírus da Aids é apenas um dos muitos microorganismos letais, tão difíceis de controlar, que surpreenderam os especialistas nos últimos anos. Mas ele é exemplar porque pode já ter acionado um mecanismo do tipo previsto por Ehrlich, por meio do qual a natureza eleva a taxa de mortalidade e contrabalança o crescimento populacional. Na África, pelo menos, simulações por computador indicam que a doença promoverá uma significativa queda no ritmo de aumento da população até o ano 2 000. Algumas regiões centro-africanas ganham novos habitantes a uma taxa de 3% ao ano, de tal modo que, ao fim de 12 meses, um país de 10 milhões de habitantes terá 10,3 milhões.

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Em vez disso, a taxa cairia para 2% e o número de habitantes subiria para 10,2 milhões, 100 000 pessoas a menos que no cálculo anterior. Essa previsão é ainda mais sombria pelo fato de levar em conta apenas 25 anos de proliferação do vírus, a partir de 1975. A crise mundial de alimentos encerra possibilidade parecida, assinala Ehrlich. E bem mais complicada, pois a fome crônica já afeta quase 800 milhões de pessoas e talvez venha a se tornar mais aguda onde não é tão grave na atualidade. Seja como for, em conseqüência da fome o ambiente epidemiológico se tornará ainda mais precário. Outra complicação é que a emissão de poluentes compromete a agricultura do futuro.

Os dados essenciais seriam os do Worldwatch Institute, sediado em Washington, nos Estados Unidos, sobre as tendências mundiais de produção agrícola. Ehrlich comparou a curva populacional com a produção de cereais básicos. O resultado sugere que a quantidade total de alimentos dificilmente aumentará, bem ao contrário da população.

A partir da metade da década de 80, parece ter-se esgotado a chamada revolução verde — programa americano cuja meta era repassar técnicas modernas aos países pobres. Em certos países da África, a revolução foi simplesmente “devorada” por lutas tribais e caos político. Logo abaixo do Saara, por exemplo, a produção total pode até ter aumentado, mas a quantidade por pessoa caiu 20% desde 1970. Essa tendência vale para o conjunto dos países, ainda que a porcentagem de queda seja menor. Mas o problema é mais grave na África, onde o fracasso das colheitas, entre outras coi- sas, levou à morte mais de 5 milhões de crianças.

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Com um detalhe decisivo: mesmo quando a má nutrição não foi causa direta das mortes, ela foi o meio que propiciou o desenvolvimento de doenças letais. Na América Latina, igualmente, a produção de cereais por pessoa vem caindo desde 1981, num declínio da ordem de 10%. Outra tendência alarmante: imensas áreas estão deixando de produzir alimentos de acordo com as necessidades.

Antes da Segunda Guerra, Ásia, África, América Latina, e América do Norte eram exportadoras de alimentos. Hoje, a situação se inverteu: três quartos das exportações de grãos provêm da América do Norte e cerca de 100 países dependem delas, de uma forma ou de outra, pois se voltaram para a produção industrial, relegando a agricultura a um plano secundário. Para piorar, os próprios americanos começam a se deparar com insuperáveis obstáculos naturais: ali, em 1988, devido a uma devastadora seca, se perdeu um terço da colheita de grãos. Pela primeira vez desde a década de 50, esse país consumiu mais cereais do que colheu, e a fração perdida correspondia ao total exportado para aqueles 100 países.

A seca de 1988 explica por que a grande questão do futuro, segundo Ehrlich, é o efeito do clima sobre as colheitas. Esta deve ser prejudicada, antes de mais nada, por uma aguda carência de água no planeta, já que o aquecimento global da atmosfera é a mais importante alteração do clima. A menor disponibilidade de água, por sua vez, levará a uma menor quantidade de cereais.

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Em seguida, uma cadeia de efeitos devem se associar de maneira complexa. Populações famintas se tornarão um prato cheio para doenças epidêmicas, e estas elevarão as taxas de mortalidade. As grandes cidades serão alvo certo de distúrbios, pois vão se agigantar velozmente nas regiões pobres. Isso faz prever desde a falta de moradia até serviços aparentemente triviais, como a coleta de lixo. Esta última, em alguns países, já começa a tomar estatura titânica .

Assim, não é difícil antecipar lúgubres perspectivas políticas. Diante de tantos obstáculos, as formas democráticas de governo enfrentariam desafios crescentes, sob constante risco de extinção. Governos nacionais poderão se ver enfraquecidos, profetiza Ehrlich. Em alguns casos acabariam substituídos por uma combinação de feudalismo e tribalismo. Outra perspectiva bastante concreta é a proliferação do fanatismo religioso. Talvez não seja exagero enxergar um sinal dessa tendência num fato bem sabido: os países árabes, onde estão alguns dos recordistas em crescimento populacional, também abrigam os mais fortes movimentos de extremado caráter sectário, ligado à religião.

Caso esse cenário se concretize, representaria uma regressão histórica da humanidade a uma organização política e social semelhante àquela que imperava na Idade Média. Mas seria grave injustiça ignorar que Ehrlich sempre fala em tendências: nada disso precisa acontecer, obrigatoriamente. Como um experimentado cientista — nunca um candidato a profeta —, ele conhece bem os limites dos sólidos argumentos que apresenta. Por isso tem perfeita consciência que as tendências negativas podem ser revertidas por meio de atitudes mais racionais e mais bem informadas, por parte dos diversos governos.

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Isso efetivamente já aconteceu devido ao recuo na guerra fria, que opunha os Estados Unidos à antiga União Soviética. Houve então um relaxamento da tensão política, tornando menos provável a ignição de um conflito nuclear. O próprio Ehrlich merece crédito por essa mudança, pois foi ardoroso crítico da guerra, contra a qual ajudou a escrever um contundente estudo científico, conhecido como “Inverno nuclear”. Esse trabalho, de 1983, analisava o destino da humanidade após um eventual confronto atômico, mostrando como ele poderia reduzir a civilização aos níveis da pré-história.

O risco não está totalmente afastado, mas já não é tão grande. Da mesma forma, é perfeitamente possível corrigir os atuais tropeços ambientais, e Ehrlich apresenta o que pensa ser a melhor maneira de fazer a correção. A primeira medida é evidente: diminuir o ritmo de crescimento populacional da forma mais rápida possível. Sua idéia é iníciar um amplo programa de controle da natalidade, capaz de fixar um teto definido para a população mundial. Esta não pode ser tão grande que não possa ser sustentada por meio dos recursos disponíveis a cada momento. A expressão sustentada, para Ehrlich, significa que todos devem ter vida de boa qualidade e produtiva.

O sistema econômico também deveria ser remodelado de forma a reduzir o consumo nos países mais ricos. Tal medida é imprescindível para preservar o meio ambiente e não desperdiçar recursos não renováveis do planeta. Ao lado disso, o cientista recomenda o emprego de tecnologias alternativas, isto é, que prejudicam a natureza o mínimo possível. Afinal, o maior perigo, em toda essa história, parece estar na lentidão dos grandes fenômenos naturais, comparados à existência humana. Assim, não são facilmente percebidos, a não ser quando já estão em fase avançada.

É claro que as medidas saneadoras devem ser executadas de acordo com um plano bem elaborado, que também terá de ser corrigido passo a passo, ao longo do tempo. Por isso, Ehrlich criou uma equação para descrever o efeito ambiental da explosão demográfica. Essa equação tem a forma I = PCT, onde I é o impacto ambiental, P é a população, C consumo médio por pessoa e T nível tecnológico. O exemplo da China ajuda a entender como ela funciona. Lá, a população foi fortemente controlada. Estatísticas da ONU (Organização das Nações Unidas) mostram que ela cresceu 2,22% entre 1970 e 1975. Controlada, essa taxa caiu para 1,24% entre 1980 e 1985 e 1,19% entre 1985 e 1990. O impacto no meio ambiente, portanto, deveria diminuir, mas não diminui devido ao desenvolvimento — nesse caso, representado pelo consumo de água, o item C da equação.

O gasto total de água é imenso, já que a China é o país mais populoso do mundo. Mas o consumo por pessoa ainda é pequeno, cerca de um quinto do consumo nos Estados Unidos. Mesmo assim, a demanda vem crescendo rapidamente devido a importantes mudanças sociais. Até o ano 2 000, a indústria deve absorver o dobro da água consumida hoje, e os centros urbanos vão quadruplicar a sua cota. Como resultado, espera-se escassez de água em 450 das 644 maiores cidades chinesas, por volta do fim do século. Tal exemplo é ainda mais edificante porque revela a clara necessidade de maior solidariedade entre os países: para que alguns tenham vida melhor, por meio do avanço tecnológico, outros têm que abrir mão de recursos excedentes e muitas vezes exagerados. Afinal, talvez esteja aí a raiz do problema: se chegar a um acordo sobre a melhor maneira de distribuir as riquezas do mundo, a humanidade terá dado largo passo rumo a um futuro digno de se viver.

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