O tal do “novo normal” começou há mais de 100 anos: a descoberta do bacilo da tuberculose, no século 19, mudou até a arquitetura das cidades. Agora, a história se repete. Entenda como a luta contra o coronavírus também pode moldar nossas casas e nossos hábitos.
Texto: Maria Clara Rossini | Ilustração: Davi Augusto | Design: Carlos Eduardo Hara | Edição: Bruno Vaiano
“A zona fundamental de interação, no nível mais íntimo, entre o homem e a arquitetura.” É desse jeito poético que o arquiteto holandês Rem Koolhaas descreve a privada. A vida urbana contemporânea, ele teoriza, seria insustentável sem o trono. Uma construção pode ser despojada de tudo, menos de um vaso sanitário.
A primeira privada foi projetada no século 16, mas não se popularizou porque não conseguia eliminar o cheiro de esgoto que voltava pelo cano após a descarga. Na época, ninguém sabia da existência de bactérias, vírus e outros micro-organismos. A hipótese dominante entre os médicos no Ocidente era a de que cheiros ruins (os miasmas, como chamavam) causavam doenças. Por isso que perfume era mais popular que banho.
Ou seja: a privada não seria adotada se não acabasse com o fedor. Para evitá-lo, o inventor inglês Alexander Cumming bolou um truque simples, mas genial. Em 1775, ele criou um cano em formato de S que retém água limpa. Essa água serve de tampão, impedindo que o tal miasma do esgoto volte pela tubulação. A ideia deu tão certo que os vasos adotam o mesmo princípio até hoje (agora em formato de U, que é ainda mais eficaz).
Cumming ficaria triste de saber que, embora tenha tornado os banheiros um bocado mais cheirosos, patógenos microscópicos não têm necessariamente a ver com odor ruim. Eles também podem se esconder em um copo d’água, em uma folha de alface ou simplesmente pairar no ar, sem exalar aroma nenhum. Afinal, se pudéssemos cheirar um coronavírus, seria mais fácil se proteger. A privada, porém, permanece como o objeto mais importante da saúde pública, e um símbolo de como pequenas modificações e sacadinhas – que dependem mais de inteligência que de dinheiro – tornaram nossos objetos e ambientes aliados no combate a doenças. Uma ideia que ganhou força ao longo do século 20, conforme a biologia aprofundou seus conhecimentos sobre seres microscópicos.
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O micróbio como protagonista
Foi só em 1882 que o médico alemão Robert Koch formalizou a teoria dos germes: muitas doenças podem ser explicadas pela multiplicação de seres microscópicos no corpo do paciente – vírus, bactérias, protozoários. Essa nova concepção caiu rapidamente na boca do povo.
No final do século 19, banheiros eram decorados como qualquer outro cômodo – com poltronas, carpetes e outros objetos que acumulam pó e umidade. Com a notícia de que existiam coisinhas chamadas germes, a neura se instalou. Um manual de tarefas domésticas publicado em 1887 diz que “o reconhecimento geral da teoria dos germes torna imperativo que toda dona de casa se preocupe com o acúmulo de poeira, pois ela pode guardar germes perigosos”. E ainda faz o apelo: “para agradar a deusa da saúde, nós podemos sacrificar cortinas, carpetes e ornamentos desnecessários aos cômodos”.
Koch descobriu seu próprio germe, o bacilo de Koch. Era a bactéria causadora da maior preocupação da época: a tuberculose, responsável por uma em cada sete mortes no mundo. A primeira vacina só veio em 1942; o primeiro antibiótico eficaz, em 1944. Mas a descoberta de Koch, lá atrás, já tinha revolucionado o combate à doença, porque deixou claro o mecanismo de transmissão. Quando um paciente tosse, o bacilo fica horas em suspensão no ar e na superfície dos móveis – de modo que dá para minimizar o contágio com limpeza e janelas abertas.
Assim, os tuberculosos mais ricos começaram a se abrigar em casas de campo ou retiros nas montanhas como parte do tratamento. E os hospitais deixaram de ser masmorras para se tornarem mais agradáveis, arejados e claros. As paredes brancas ajudavam a verificar se o ambiente está limpo, e as janelas amplas permitiam a entrada de ar e luz solar.
A tuberculose inventou os hospitais contemporâneos. E não só eles. Pense nos prédios de Brasília, brancos, envidraçados e geométricos. Ou no MASP e no Edifício Copan, cartões-postais de São Paulo, e nas construções em torno da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte (MG). São todos símbolos do modernismo, uma estética que predominou na arquitetura até os anos 1970, pautada abertamente pela limpeza e pela abundância de luz. O arquiteto suíço Le Corbusier decretou: “Não deve mais haver cantos sujos e escuros”.
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Não é à toa que um dos principais prédios do modernismo foi justamente um sanatório (nome que se dava, na época, aos hospitais para tuberculosos). Era o Paimio Sanatorium, no interior da Finlândia – um projeto de Alvar Aalto que funcionou entre 1928 e 1933. Ele tinha quartos amplos, pintados de branco, bem iluminados e compartilhados por só dois pacientes. Antes de entrar, eles guardavam seus sapatos e roupas em um armário separado. As pias eram desenhadas para não fazer barulho nem espirrar água. O prédio ficava dividido em setores, para não misturar a lavanderia e os quartos com a cozinha e o refeitório. No teto, havia um terraço onde os doentes podiam tomar sol e respirar ar fresco. Era um hospital de hoje, em alguns aspectos – e um hospital melhor que os de hoje, em muitos outros.
Um dos legados do sanatório ao design foi a cadeira Paimio, vendida até hoje. Seu encosto é reclinado no ângulo ideal para a respiração do paciente, e ela não possui cantos, o que facilita a limpeza (as próprias paredes do sanatório terminavam em quinas e rodapés arredondados, para evitar o acúmulo de poeira).
Outra inovação que se espalhou pelo mundo foram as maçanetas compridas. Elas foram popularizadas por Walter Gropius, arquiteto fundador da Bauhaus – a escola de design, arte e arquitetura mais influente do modernismo. Elas são mais fáceis de abrir do que as redondas por serem alavancas: o ponto de aplicação de força está longe do eixo. Basta empurrar a barra para baixo. (Tente girar uma maçaneta redonda com a mão molhada e você entenderá a diferença.)
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Essa sacada banal foi o maior sucesso comercial da Bauhaus e ajudou a sustentá-la financeiramente. A maçaneta resumia o objetivo da instituição: desenhar objetos e ambientes da maneira mais funcional possível – como acontece num bom hospital.
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O futuro do design
Se a tuberculose ajudou a moldar a arquitetura e o design do século 20, será que o coronavírus fará o mesmo no século 21? Talvez. A ironia da coisa, porém, é que a tuberculose já deu muitas das respostas que precisamos para o coronavírus. “A arquitetura do modernismo pode ser vista, por que não, como uma arquitetura pós-pandemia”, diz o professor Rodrigo Queiroz, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. A casa ideal para a quarentena é arejada, iluminada, mais fácil de limpar e mais funcional, com a lavanderia e o home office convivendo sob o mesmo teto. Justamente aquilo que o Paimio Sanatorium iniciou cem anos atrás: unir higiene e funcionalidade.
A primeira medida de design de interiores pós-Covid foi aquela que todo mundo meio que inventou ao mesmo tempo: colocar sinalizações no chão para garantir a distância mínima entre as pessoas. Algo tão simples quanto eficaz.
Em outros ambientes, no entanto, não tem sinal que garanta o distanciamento – como nos ônibus. Ainda bem que existem iniciativas com o objetivo de pensar em soluções para esses problemas mais cabeludos. É o caso da Design for Emergency e da Design for Covid-19, que reúnem centenas de designers e arquitetos com o objetivo de pensar soluções para a pandemia.
“O desenho do ônibus brasileiro é a coisa mais imbecil que existe em qualquer lugar do planeta”, resume a designer Denise Dantas, que lidera o projeto Design for Emergency no Brasil. Para a realidade pandêmica, ela propõe a remoção da catraca. “Não há necessidade de uma catraca no meio do ônibus. Elas fazem com que você tenha que esbarrar nas pessoas. E você precisa se esfregar na própria catraca.” (De fato: no resto do mundo, as catracas, quando existem, costumam ficar na entrada do ônibus – a fila fica do lado de fora.)
O transporte coletivo pede mesmo uma refação geral – seja o terrestre, seja o aéreo. Uma empresa chamada AvioInteriors fez uma proposta ousada para mudar a disposição dos assentos de aeronaves comerciais – aumentando o isolamento entre passageiros, que hoje é nulo, sem diminuir a lotação do avião.
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Mudanças assim não acontecem da noite para o dia. Outras, porém, acontecem: seja por determinação de leis locais, seja por iniciativa própria, bancos, supermercados e escritórios estão incorporando a barreira de acrílico na frente dos atendentes.
A questão é ainda mais urgente quando pensamos no retorno às escolas e escritórios. Uma sala de aula, por exemplo, é organizada em fileiras – como se cada carteira estivesse em cima de um vértice em um tabuleiro de xadrez imaginário. Uma opção para a reabertura é simplesmente fazer com que os quadrados desse tabuleiro fictício cresçam até alcançar os dois metros regulamentares de distanciamento. Mas essa tática desperdiça mais espaço que o necessário. Com algumas contas, é simples demonstrar que um tabuleiro de hexágonos economiza 15% de área em relação aos quadrados sem interferir na distância mínima entre os alunos – o que já gerou uma onda de propostas de mobília hexagonal.
Ainda mais importante que o distanciamento será a higiene pessoal. Os frascos de álcool em gel já são imperativos na entrada de qualquer estabelecimento, mas a lógica deve evoluir. A empresa MIXdesign propõe “salas de descontaminação”, nome chique para uma fileira de pias para lavar as mãos antes de entrar na recepção de um prédio.
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Nem as casas passam imunes. Natasha Schlobach, presidente da Associação de Designers de Produto, já notou um aumento na demanda por pias do lado de fora das casas ou próximas à entrada dos apartamentos. Móveis cada vez mais práticos e fáceis de limpar também entram na lista, pelo menos na do pessoal mais endinheirado. “Algo que me chamou a atenção foi que uma das minhas clientes exigiu um sofá alto o suficiente para um robozinho aspirador de pó passar por baixo”, diz a arquiteta Marina Zanatto.
Enquanto a higiene cria móveis com vão livre digno do MASP, a planta da casa como um todo será alterada pelo home office. Um levantamento realizado pela Fundação Dom Cabral aponta que 70% das empresas brasileiras pretendem adotar o trabalho remoto total ou parcial após a pandemia. “A partir de agora, vai ser difícil alguém projetar uma casa que não inclua o escritório”, diz Rodrigo Queiroz. Mesmo que um ambiente exclusivo para o trabalho não seja viável em apartamentos menores, os móveis híbridos devem se tornar mais comuns – uma mesa de jantar pode ser um transformer de escrivaninha.
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Esse pensamento mais prático se reflete em outro legado da pandemia. A construção de hospitais de campanha em algumas semanas, por exemplo, é uma aula de como reagir a emergências. A genialidade arquitetônica dessas estruturas modulares consiste justamente em uma aplicação radical da filosofia Bauhaus: não adianta construir um hospital monumental se, quando ele ficar pronto, os pacientes já estiverem mortos.
Para um cidadão nascido no século 19, acostumado com porcelanas floridas, papéis de parede e móveis escuros, entrar no ambiente ascético do Paimio Sanatorium em 1928 deve ter sido uma experiência alienígena. O brilho branco intenso, as superfície curvas e o chão desinfetado passavam o recado de que o mundo nunca mais seria igual – e, de fato, ele não foi. A tuberculose criou um novo normal para o século 20, o normal em que todo mundo que está vivo hoje nasceu e cresceu. Talvez o mundo já esteja pronto para o próximo capítulo. E 2020 seja o verdadeiro início do século 21 – no design, na arquitetura e na vida.
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