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Ciência

Ainda estamos evoluindo?

por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 set 2020, 15h11 - Publicado em 22 out 2019 15h57

Nosso cérebro está encolhendo. Mas há populações humanas cada vez mais resistentes a doenças e ao ar rarefeito de grandes altitudes. Será que a civilização nos tornou imunes à seleção natural? Ou nossa espécie ainda muda?

Texto: Bruno Vaiano | Design: Juliana Krauss | Ilustrações: Guilherme Henrique | Edição: Alexandre Versignassi

Em 2002, o arqueólogo Michel Brunet descreveu o crânio de um primata que viveu há 7 milhões de anos no atual território do Chade, na África. O Sahelanthropus tchadensis tinha um terço do volume cerebral humano, e uma espessa arcada óssea sob as sobrancelhas. Lembrava, em certos aspectos, um chimpanzé.

Mas com uma peculiaridade: o forame magno – buraco por onde a medula espinhal entra na cabeça – ficava na base do crânio, e não atrás. Indício de postura ereta: a cabeça ficava em cima da coluna, e não pendurada na sua extremidade. Isso torna o tchadensis o mais antigo membro conhecido da linhagem humana.

A história dessa linhagem começa mais ou menos há 8 milhões de anos, quando existia, na África, um macaco que não era nem chimpanzé, nem humano. Um dia, a população desse macaco foi dividida por uma barreira geográfica. Pode ser um lago, se você quiser. Tanto faz. O importante é que as exigências de sobrevivência eram diferentes de cada lado do lago.

Talvez houvesse menos árvores ao Sul, e mais árvores ao Norte. Assim, os macacos mais aptos a se pendurar em galhos se deram bem no Norte. E os que eram melhores em andar prosperaram no Sul. Com o tempo, graças a diferenças de habitat, os macacos de cada lado do lago tomaram rumos evolutivos diferentes. Até se separarem de vez, isto é: não conseguirem mais fazer bebês entre si.

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É assim que surgem novas espécies na natureza. Esqueça a imagem da escadinha – em que um chimpanzé se torna, em passos sucessivos, um Homo sapiens. Ela está errada, porque os chimpanzés não são nossos avós: eles também são netos. Netos de um mesmo avô, que viveu há milhões de anos.

Quando a população desse ancestral se dividiu, parte dela deu origem a nós, outra parte deu origem aos chimpanzés. Eles são só animais diferentes, que seguiram seu próprio rumo do outro lado de uma barreira geográfica. A evolução é apenas mudança, e não mudança em direção a um estado que nós consideramos mais virtuoso.

Isso não vale só para essa primeira divisão entre chimpanzés e humanos. Vale para todos os hominídeos intermediários que vieram depois. Pegue o exemplo do Homo erectus – um parente mais antigo do Homo sapiens que já era plenamente bípede, mas ainda tinha cérebro pequeno e mandíbula avantajada. Alguns erectus se ramificaram e deram origem a nós. Outros continuaram idênticos, e dividiram espaço com o sapiens até 140 mil anos atrás. Nós não os suplantamos como se fossem iPhones desatualizados.

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Nossa evolução não foi uma escadinha. O gênero Homo se ramificou em dezenas de hominídeos – e vários existiram por mais tempo que o sapiens.
Nossa evolução não foi uma escadinha. O gênero Homo se ramificou em dezenas de hominídeos – e vários existiram por mais tempo que o sapiens. (Ilustração: Guilherme Henrique / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Hoje, após milhões de anos de divergência dos chimpanzés, tudo mudou. A seleção natural só funciona se nascem muitos indivíduos, e outros tantos morrem antes de se reproduzir. Nos países desenvolvidos, ocorre o oposto: a taxa de natalidade só cai. Em 1970, havia 16 recém-nascidos para cada mil habitantes da União Europeia. Em 2017, eram nove. E eles têm tudo que precisam.

Com saneamento básico, residências aquecidas, exames pré-natais e vacinação obrigatória, problemas como diarreia, frio e doenças virais não são mais letais. Em 1900, 36,2% das crianças morriam até os 5 anos de idade; hoje, são 3,9%. Mesmo países assolados por secas, violência e corrupção, como Somália e Chade, têm taxas de mortalidade infantil de respectivamente 13,3% e 12,7%. Esses números são três vezes menores que a média mundial de apenas um século atrás.

Com a seleção natural estagnada, você pode pensar que a evolução do ser humano parou. Palpite errado: evolução e seleção natural não são a mesma coisa. Lembre-se: evolução é a maneira como as espécies mudam com o tempo, e a seleção natural é uma das forças que impulsionam a mudança. Há outras.

Imagine uma cidade fictícia chamada Darwin em que metade dos moradores tem olhos castanhos, e metade, olhos verdes. Agora, em 2019, os castanhos passaram a ser mais da metade: 60%. Há algumas possibilidades para explicar essa mudança na frequência dos genes para olhos escuros.

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1. Talvez uma empresa tenha instalado uma fábrica nova em Darwin, e vários operários se mudaram para lá. Como 80% deles têm olhos castanhos, o número de bebês com olhos castanhos aumenta. Essa é a migração, e ela, assim como a seleção natural, é uma força evolutiva.

2. Talvez uma família de pessoas com olhos azuis tenha morrido em um acidente. Como a cidade é pequena, esse evento aleatório diminui o número de bebês com olhos claros na próxima geração. Essa força é a deriva genética. Um exemplo típico de deriva é o efeito fundador: quando um pequeno grupo de indivíduos funda uma população, e essa população automaticamente fica com sua coleção de genes limitada aos que foram fornecidos por esses pioneiros.

3. Talvez o novo ídolo pop de Darwin tenha olhos castanhos, e agora as adolescentes de lá procurem namorados assim. Essa força é a seleção sexual. Um exemplo clássico é o da cauda dos pavões – que além de pesada, chama a atenção de predadores, mas é mantida por indicar aptidão aos olhos das fêmeas.

Mantenha essas forças evolutivas em mente. Nas próximas páginas, vamos ver como elas, em parceria com a seleção natural, disseminaram alguns genes – e tiraram outros de circulação – nos últimos 10 mil anos de história do Homo sapiens, desde que adotamos a agricultura. A domesticação de plantas marca o momento em que passamos a moldar os habitats de acordo com nossos interesses. Ou seja: o momento em que supostamente superamos as forças seletivas da natureza. Agora, você verá que elas seguem firmes.

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1. Beber, cair, levantar

Há fungos que geram energia quebrando o açúcar de frutas em etanol e gás carbônico, um processo chamado fermentação. O resultado disso é álcool com suco: vinho. Alguns desses fungos continuam a fermentar mesmo quando há oxigênio suficiente para gerar energia usando um processo que é nove vezes mais eficiente, a respiração. Por isso, existe a hipótese de que, apesar do prejuízo energético, o álcool cumpra uma função: intoxicar quem tenta roubar um pedacinho da fruta, para que a levedura possa comê-la sozinha.

Animais como os macacos possuem suas próprias enzimas para quebrar o álcool, o que lhes permite encarar esse alimento blindado pelos fungos. Existe até a hipótese de que gostar do cheiro de cachaça tivesse algum valor de sobrevivência, pois permite encontrar frutas maduras caídas no chão da floresta usando o olfato.

O que nos leva a um primata mais recente: o Homo sapiens. Com a invenção da agricultura, há 10 mil anos, a produção de grãos com bastante carboidrato (como arroz na China e trigo no Oriente Médio) explodiu, e com ela surgiu a biotecnologia mais importante da história da civilização: usar leveduras para fermentar esses grãos de propósito. Assim começa a história de amor da humanidade com o álcool.

Quando você enche a cara, um gene chamado ADH1B fornece a receita para uma enzima que oxida o etanol, transformando-o em outra molécula, chamada etanal (sim, com “a”). Ela se acumula no fígado, e é a provável responsável pela dor de cabeça e a náusea da ressaca. Existe uma variação desse gene que gera uma enzima cem vezes mais poderosa. O que significa mais etanal no fígado, e uma ressaca pior.

Pessoas com essa variante acordam em um estado inesquecível no dia seguinte, e dificilmente tomarão outro porre na vida. Por outro lado, quando ingerem álcool em doses baixas, não ficam de pileque, pois ele é quebrado mais rápido (o que seria útil em situações sem água potável, em que só  há cerveja disponível – especula-se que vários povos fermentavam cevada também porque o álcool mata bactérias).

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Conclusão: quem tem esse gene fica menos embriagado e mais estragado. E aí não tem por que beber. A incidência de alcoolismo no sudeste da China, onde o ADH1B turbinado está na maior parte da população, é quase nula. Ele provavelmente se espalhou por seleção natural: os alcoólatras têm menos sucesso reprodutivo e chances
de sobrevivência.

Fontes: Patterns of shared signatures of recent positive selection across human populations, Kelsey E. Johnson e B. Voight; An evolutionary perspective on the Crabtree effect, T. Pfeiffer e A. Morley; Alcohol and aldehyde dehydrogenase genotypes and alcoholism in Chinese men, H. Thomasson et al.

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2. Milho nosso de cada dia

O ancestral selvagem do milho, chamado teosinto, é nativo do sul do México, e evidências fósseis indicam que ele começou a ser cultivado há 8,7 mil anos no vale do rio Balsas, perto da fronteira com a Guatemala. Essa é a primeira evidência de agricultura nas Américas.

Até aquele ponto, todos os habitantes do Novo Mundo eram caçadores-coletores. E, ao contrário do que o programa Largados e Pelados leva a crer, viver do que a natureza dá não era necessariamente ruim: castanhas, frutas, tubérculos, ervas e a caça de diversos animais selvagens propiciam uma dieta em média rica e nutritiva, ainda que alguns dias acabem de estômago vazio.

Para os povos que adotam a agricultura, por outro lado, a alimentação passa a se resumir a duas ou três plantas domesticadas. A oferta dessas plantas aumenta, mas, graças ao abandono do estilo de vida nômade e à formação de vilarejos povoados, a demanda também aumenta (estima-se que, quando uma sociedade se sedentariza, a taxa de natalidade aumenta cinco vezes).

Surgem pessoas de importância administrativa ou religiosa, que são sustentadas sem pegar no arado. Doenças infecciosas se espalham graças à falta de saneamento básico. E basta uma estiagem ou tempestade fora de época para arrasar a colheita. “Os primeiros fazendeiros tinham menor estatura, eram malnutridos, sofriam de doenças mais graves e morriam mais cedo que os caçadores-coletores que substituíram”, escreve Jared Diamond em Armas, Germes e Aço.

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O que nos leva de volta ao México – onde há um belo exemplo de agricultura pondo a seleção natural para funcionar. Tudo começou com um gene chamado ABCA1, localizado no cromossomo 9. Ele contém o código para montar uma proteína que se localiza na membrana das células e é responsável por controlar a entrada e saída de colesterol. Há 7,5 mil anos, surgiu entre os primeiros agricultores de lá uma mutação no ABCA1. Graças a ela, a proteína se torna capaz de reter 30% mais colesterol. Com mais reservas energéticas, os possuidores desse ABCA1 barra pesada se davam melhor em períodos de seca e fome.

Seca e fome não faltaram depois que o milho se tornou 70% da dieta dos mexicanos do Neolítico, há 4 mil anos. Por melhorar a sobrevivência, o gene se espalhou. Na época, calcula-se que até 80% da população viesse equipada com o ABCA1. Hoje em dia, 300 gerações e uma conquista espanhola depois, algo entre 15% e 40% dos descendentes desses nativos ainda o carregam. “Eles foram moldados para comer menos e aproveitar mais”, diz Tábita Hünemeier, do Instituto de Biociências da USP – integrante da equipe responsável pela descoberta.

O problema é que, com o aumento rápido da disponibilidade de alimentos industrializados após a 2ª Guerra Mundial, a capacidade de reter colesterol se tornou um tiro no pé. Hoje, diabetes, obesidade e pressão alta são problemas crônicos no México. Esse é só um de muitos casos recentes de “coevolução gene-cultura”, isto é: quando uma mudança cultural força uma mudança genética. Ou seja, os indivíduos constroem um ambiente artificial (neste caso, a agricultura) e esse ambiente acaba selecionando os indivíduos mais adaptados a ele (quem tinha a mutação no ABCA1).

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Outro exemplo: um estudo de 2008 analisou o número de cópias do gene da amilase – enzima da saliva que quebra o carboidrato – em diferentes grupos étnicos. Em alguns, a alimentação historicamente se baseou na agricultura de grãos com muito amido, como os japoneses, ou no consumo de tubérculos, como os Hadza, uma tribo de caçadores-coletores da Tanzânia.

Em outros, como os turcomanos Yakut, da Rússia, boa parte da comida vem da pecuária ou pesca. A conclusão você já imagina: os membros dos grupos mais dependentes de carboidrato de fato carregam mais cópias do gene da amilase (7 ou até 15). Para eles, aproveitar o máximo possível dos grãos foi questão de vida ou morte. Se hoje você tem uma barriguinha, ela pode ser culpa da evolução recente.

Diet and the evolution of human amylase gene copy number variation, George H Perry et al.

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Errata: na edição impressa, escrevemos Hünemeyer em vez de Hünemeier. Também afirmamos que o gene ABCA1 ficava no cromossomo 5, e não no 9. 

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3. Dos males, o menor

Em 1949, o jovem médico sul-africano Anthony Clifford Allison, doutorando em Oxford, se voluntariou para participar de uma expedição ao Monte Quênia – uma montanha de 5,2 mil metros de altitude no leste da África. Ele foi incumbido da tarefa de coletar amostras de sangue da população local para determinar os tipos sanguíneos mais comuns (A, B, O etc.) e a prevalência de doenças hereditárias como a anemia falciforme.

Anemia falciforme é o seguinte: as células mais numerosas do sangue são os glóbulos vermelhos – sua função é pegar o oxigênio captado pelos pulmões e distribuí-lo pelos demais órgãos do corpo. Para fazer isso, cada um deles vem equipado com 270 milhões de cópias de uma proteína chamada hemoglobina. Cada hemoglobina é capaz de transportar uma única molécula com dois átomos de oxigênio (O2).

A anemia falciforme é causada por uma mutação no gene que armazena a receita para a hemoglobina. Essa hemoglobina defeituosa, chamada HbS, faz com que os glóbulos vermelhos, que normalmente têm a forma de uma gorda rosquinha, fiquem com a aparência de uma foice – daí o nome falciforme. A consistência das células fica rígida, e a textura, grudenta.

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Todos nós temos duas cópias de cada gene, uma fornecida pela mãe, a outra pelo pai. Se uma criança recebe o gene da anemia falciforme de ambos, todas as suas hemoglobinas serão doentes. Os sintomas são graves: veias e artérias estreitas entopem com frequência, causando crises de dor, mãos e pés ficam inchados e o baço pode acumular sangue inesperadamente, cortando a irrigação de outras partes do corpo.

Quem herda só uma cópia anômala do gene, por outro lado, tem uma versão mais branda da doença, pois ainda é capaz de produzir hemoglobinas saudáveis usando o outro gene. E aqui voltamos a Allison. Ele percebeu que 20% da população que vivia ao redor do lago Vitória, uma região de altitude relativamente baixa, tinha a forma branda. Por outro lado, conforme ele subia o Monte Quênia, a incidência caía para 1%.

Como mosquitos não vivem em lugares altos, Allison levantou a hipótese de que a anemia falciforme era comum porque tornava suas vítimas imunes à malária – que infecta 200 milhões de pessoas todos os anos e mata 600 mil. Os protozoários do gênero Plasmodium, causadores da doença, se reproduzem no interior dos glóbulos vermelhos, e não conseguem fazê-lo se estiverem deformados. Nas décadas seguintes, diversos estudos comprovaram essa hipótese.

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Uma criança com uma única cópia do gene para anemia falciforme tem 26% mais chances de chegar à vida adulta. Assim, a anemia está sob seleção natural neste exato momento, não só na África, mas no Oriente Médio e no Sudeste Asiático. A descoberta de Allison foi a primeira evidência empírica de que a seleção natural ainda atua sobre nós. Hoje, sabemos que a resistência a outras doenças, como a febre de Lassa, também está sob pressão seletiva.

Fonte: livro Future Humans: Inside the Science of Our Continuing Evolution, Scott Solomon.

Errata: na edição impressa, escrevemos que o gene para anemia falciforme está sob seleção positiva, mas o termo positiva não se aplica à situação. 

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4. O crânio dos xavántes

Xavántes e kayapós não se dão bem. Apesar de falarem línguas irmãs, compartilharem antepassados e viverem ambos no Mato Grosso, os dois povos indígenas discordam em muitos aspectos da organização social: os xavántes são poligâmicos, os kayapós, monogâmicos. Além disso, a maneira como os clãs e casamentos são organizados é motivo de desavença. Por causa de atritos assim, as duas etnias – que originalmente eram uma só – se dividiram 1,5 mil anos atrás.

Esse isolamento cultural é extremamente recente na escala de tempo da evolução biológica. Apesar disso, foi o suficiente para a deriva genética atuar: a medição do crânio de 113 xavantes e 235 caiapós por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) revelou que os xavántes têm a cabeça mais comprida, maçãs do rosto mais largas e são mais altos que os caiapós.

Relembrando: deriva genética é o nome que se dá ao processo em que genes se espalham por uma população não porque eles tenham algum valor de sobrevivência, mas por mero acaso. Agrupamentos pequenos são mais sujeitos a essas flutuações, porque a morte aleatória de uns poucos indivíduos já pode bastar para que os genes de outros se espalhem mais que o esperado.

A velocidade com que a deriva genética mudou as fisionomias dos xavantes derruba preconceitos antigos da antropologia. No século 19 e nas primeiras décadas do 20, as diferenças na forma do crânio de pessoas de etnias diferentes eram usadas na Europa como prova irrefutável da suposta superioridade intelectual dos brancos sobre os negros. Agora, sabemos que episódios de microevolução podem fazer a cabeça de uma etnia se tornar parecida com a de outra em poucas gerações.

O surgimento das ditas “raças” humanas é recente: começa com saída do Homo sapiens da África há 70 mil anos, na estimativa mais conservadora. Parte da diferenciação se deu por seleção natural: a pele mais escura em regiões equatoriais fornece proteção contra o Sol, já a mais clara em locais frios garante a síntese de vitamina D.

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Como a variação de latitude, sozinha, não explica toda a distribuição (por exemplo: na Tasmânia, que fica em alta latitude, os aborígenes têm bastante melanina), é provável que a seleção sexual também tenha entrado em ação: do mesmo jeito que a preferência por bonés entre meninas faz meninos os usarem, a preferência por certas características em parceiros sexuais torna a aparência dos membros de uma tribo mais homogênea.

Ainda que racismo e xenofobia sejam onipresentes, a migração e a troca de genes entre populações distantes é maior do que jamais foi, e contraria o isolamento. Conforme casais de etnias diferentes têm filhos, surgem desafios até então desconhecidos: indivíduos miscigenados com leucemia não conseguem transplantes de medula óssea porque seu DNA é raro entre doadores.

No centro de tratamento de câncer City of Hope, em Los Angeles, 85% dos genomas registrados são de origem puramente europeia (os EUA são mais segredados que o Brasil). Essa mistura de genes que nunca haviam se encontrado também é uma forma de evolução.

Fontes: Livro O Terceiro Chimpanzé, de Jared Diamond; Cultural diversification promotes rapid phenotypic evolution in Xavánte Indians, Tábita Hünemeier et al.   

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5. Respirando Fundo

Em 2007, o Flamengo viajou à cidade de Potosí, no planalto boliviano, a 3,9 mil metros de altitude, para disputar uma partida da Libertadores contra o clube local, o Real Potosí.

Mesmo com um breve período de aclimatação antes da partida, os jogadores da equipe carioca não conseguiram lidar com a baixa concentração de oxigênio no ar rarefeito (60% do normal): precisaram sair de campo para respirar com auxílio de máscaras, e levaram dois gols no primeiro tempo. O clube reclamou com a Fifa, que em questão de meses proibiu jogos acima de 2,5 mil metros de altitude. Como a decisão impedia partidas nos países andinos, Bolívia e Peru objetaram e o órgão voltou atrás.

O polêmica anual da Libertadores é um lembrete do óbvio: atividades essenciais para a sobrevivência, como a respiração, são alvo de uma seleção natural heavy metal. Três populações humanas evoluíram para respirar em grandes altitudes: os nativos dos Andes, que estão lá há 11 mil anos; do Tibete, que habitam a região há 25 mil anos; e do planalto da Etiópia, ocupado desde a origem do Homo sapiens. Geneticistas estão desvendando aos poucos como funcionam essas adaptações. Embora os estudos sejam incipientes, já há exemplos.

A etnia tibetana (que vive próxima à cordilheira do Himalaia) se separou da etnia han, a mais numerosa da China, há 3 mil anos. Foi tempo suficiente para que a frequência de uma mutação em um gene chamado EPAS1 nos tibetanos se tornasse 78% maior que nos han. Essa mutação, identificada graças a uma diferença de uma única letrinha do código de DNA, muda a maneira como o EPAS regula a fabricação de glóbulos vermelhos – que, como já mencionado no texto sobre a malária, são as células responsáveis por carregar o oxigênio no sangue.

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Outro gene, cuja existência pode ser deduzida, mas que ainda não foi identificado, tem um efeito sensível na sobrevivência dos filhos de seus possuidores: em uma amostra de 700 mulheres tibetanas, a presença de uma ou duas cópias dele aumenta a saturação de oxigênio algo entre 6% e 10%, o que faz com que elas tenham, em média, 3,7 bebês que chegam à vida adulta (contra a média de 1,6 bebê bem-sucedido das que não têm).

Fontes: Two routes to functional adaptation: Tibetan and Andean high-altitude natives, C. Beall; Why Tibetans breathe so easy up high, análise do geneticista Razib Khan na revista Discover

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(Ilustração: Guilherme Henrique / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)
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6. O céu é o limite

Os holandeses são o povo mais alto do mundo. Os homens alcançam, em média, 1,84 m. As mulheres, 1,71 m. É claro que a qualidade de vida do pequeno país europeu –  alimentação saudável e variada, economia próspera e um sistema de saúde pública exemplar – permite que os bebês cresçam feito árvores.

Mas o IDH alto não explica tudo sozinho: países como Dinamarca e Noruega, que também são prósperos, não cresceram 20 cm em 150 anos. E os americanos, que no século 17 eram 8 cm mais altos que os holandeses da mesma época, foram ultrapassados, mesmo tendo crescido em média 6 cm desde então (o Brasil, caso você esteja curioso, cresceu 8 cm em cem anos).

Para descobrir por quê, a equipe de Gert Stulp, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, analisou uma base com dados de 42 mil holandeses maiores de 45 anos. Eles descobriram que homens 7 cm mais altos que a média não só se casaram com mais frequência como tiveram 24% mais filhos que homens 14 cm abaixo da média. Como bebês de pessoas altas tendem a ser altos – a herdabilidade da característica foi estimada em 80% –, o crescimento da população holandesa parece estar associado, em certa medida, à seleção sexual.

Sabe-se que homens mais altos têm empregos mais bem-remunerados e são considerados mais atraentes pelas mulheres. O salário anual de um homem é US$ 800 maior a cada 2,5 cm. Além disso, uma vez que as mulheres também são altas (e que nós comprovadamente sentimos mais atração por pessoas parecidas conosco), é provável que haja um ciclo de busca por parceiros altos em andamento no país.

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Embora essa seja uma conclusão tentadora, vale dizer que o estudo, após divulgação na imprensa europeia, foi questionado. Maja Tarka e seus colegas da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega, em Oslo, demonstraram usando o mesmo dado que os processos darwinianos seriam capazes de explicar um crescimento de apenas 1 mm por geração. Como há umas seis gerações em 150 anos, e a herdabilidade da altura é de 80% (há outras variáveis, que simplificamos) Tarka estimou que a seleção só seria responsável por 1,1% do aumento de 20 cm. O debate continua.

Fonte: Did natural selection make the Dutch taller? A cautionary note on the importance of quantification in understanding evolution, M. Tarka et al.

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7. O cérebro está diminuindo

Nós somos cabeçudos. Pelos últimos 800 mil anos, o volume médio dos cérebros de nossos antepassados aumentou 70 centímetros cúbicos (cm3) a cada 100 mil anos – culminando com a origem do Homo sapiens há 300 mil anos. Na época da invenção da agricultura, há 10 mil anos, o ser humano esbanjava um volume médio de 1.500 cm3. Foi o auge. De lá até aqui, a tendência se inverteu, e nossos cérebros, atualmente, têm 1.359 cm3.

É uma redução equivalente a uma bola de tênis. Ou seja: se você começou essa matéria na esperança de ler algo do tipo “nossa espécie se tornará uma raça de ETs hollywoodianos sábios saídos de um livro do H. G. Wells”, temos más notícias: nossas cabeças estão encolhendo. A descoberta foi publicada em 2011 pelo arqueólogo John Hawks, da Universidade de Wisconsin. Ele analisou crânios do sul da África, da Europa, da China e da Austrália.

Há muitas hipóteses para explicar o fenômeno, nenhuma confirmada. A primeira é que o cérebro tenha diminuído simplesmente porque o corpo diminuiu. Sabemos faz tempo que cérebros são proporcionais a seus donos – baleias cachalote têm 8.000 cm3 de miolos –, e isso não tem relação direta com a inteligência. Hawks calcula que o cérebro perca 4,3 cm3 para cada quilograma a menos.

Ou seja: uma queda de 5 kg na massa da Pré-História até aqui – condizente com o corpo mais robusto dos nossos ancestrais caçadores-coletores – faria o volume da caixa craniana diminuir apenas 22 cm3. O problema é que isso é um sétimo do encolhimento verificado na prática. Cálculos que levam em consideração a altura em vez da massa também não explicam o fenômeno: espera-se que cada centímetro a menos tire 9,5 cm3 do cérebro, mas nós não estamos ficando mais baixos.

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Hawks então pensou em explicações alternativas. O cérebro é um órgão dispendioso: um quarto das calorias que você consome são usadas para mantê-lo rodando. Qualquer modificação que tornasse seus circuitos mais compactos (sem necessariamente torná-los piores – um iPhone faz mais cálculos por segundo que o computador que levou a Apollo 11 à Lua) seria vantajosa.

Como a população aumentou muito nos últimos 10 mil anos, Hawks propõe que o número de genes com mutações novas também aumentou, o que permitiu à seleção natural forjar cérebros com maior custo-benefício. Essa não é a única hipótese, claro – os estudos seguem.

Fonte: Selection for smaller brains in Holocene human evolution, John Hawks.

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(Ilustração: Guilherme Henrique / Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

8. Homo Deus

Ao longo das últimas páginas, discutimos como a agricultura, o álcool, a altitude, o isolamento, o amor e as doenças continuam mudando o ser humano. Todo desafio que nossa espécie encontrou em seu caminho – alguns impostos pelo ambiente, outros, resultados inesperados de nossas decisões – teve potencial para deixar uma cicatriz de adaptação no nosso DNA.

Pelo menos 7% dos genes humanos mudaram nos últimos 5 mil anos. Sempre que possível, porém, usamos a cabeça para nos esquivar da luta pela vida descrita por Darwin. A morte ainda impera onde há desigualdade: países pobres sofrem com a desnutrição e com doenças infecciosas. Mas conforme o acesso a vacinas, saneamento básico e tratamento médico se universalizarem, a tendência é a seleção natural sair de cena cada vez mais. 

O que leva à pergunta: será que já somos capazes de tomar as rédeas de nossa própria evolução? Essa é uma ideia antiga. Muito antes de 1953, ano em que a estrutura da molécula de DNA foi desvendada por Watson e Crick, já existia o desejo de eliminar artificialmente doenças hereditárias ou a propensão a vícios.

Como não era possível intervir diretamente nos genes (afinal, não se sabia do que eles eram feitos), o que faziam era seleção artificial: na Alemanha nazista, começaram castrando alcoólatras e portadores de lábios leporinos. Depois passaram a matar quem o governo achasse indesejável: gays, ciganos, judeus. A eugenia criou o Holocausto. Com a derrota do nazismo, qualquer menção à palavra eugenia tornou-se tabu, naturalmente.

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A ideia de autoaperfeiçoamento, porém, continua viva em um movimento filosófico que predomina no Vale do Silício atualmente: o transhumanismo. Por meio de fármacos, edição de genes, órgãos artificiais e nanorrobôs mergulhados na corrente sanguínea, os transhumanistas vislumbram um futuro em que será possível reforçar a força física, a concentração, a memória e o poder de raciocínio, além de retardar o envelhecimento e, se possível, impedir a morte de vez.

Na pior das hipóteses, daria para fazer um upload de consciência na nuvem: o software neural que corresponde a você passaria a rodar em chips de silício em vez de neurônios, à maneira do episódio “San Junipero” de Black Mirror.

A ideia de que nossos genes são sinônimo de destino já foi substituída pela esperança de que possamos modificá-los de acordo com nossos desígnios. Josiah Zayner, ex-funcionário da Nasa que se intitula biohacker, injetou um shot de enzimas Crispr e Cas9 no próprio braço para tornar-se musculoso: elas fazem uma operação de “recortar e colar” no genoma. A mesma técnica foi usada para tornar um
par de gêmeas chinesas imunes à aids.

Por enquanto, isso é perigoso e antiético. Como quase todo gene é pleiotrópico (traduzindo: afeta mais de uma característica), é impossível saber como essa mudança afetará as bebês. Porém, se partirmos do pressuposto plausível de que um dia nosso conhecimento será suficiente para realizar procedimentos assim com segurança, quais serão as consequências? É justo que um bebê biologicamente nasça mais apto que outro só porque a família pode pagar?  O que garante a democratização dessa tecnologia?

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Um ser humano do ano 3019, com genes devidamente editados, órgãos robóticos, foco excepcional, médicos metálicos microscópicos correndo nas veias e nenhuma perspectiva de morrer, pode olhar para trás daqui mil anos e – da maneira como fazemos com os nossos ancestrais hominídeos – encarar o Homo sapiens de 2019 como um estágio menos evoluído da jornada humana na Terra, como uma espécie que não havia tomado as rédeas de seu futuro, e tinha medo dele.

Esse cenário hipotético é a prova de que, mesmo sem seleção natural, não atingimos o fim de nossa evolução: a mudança, para melhor ou pior, é a única constante. Quem está vivo em um dado momento sempre acha que tal momento é o fim, o auge, nunca o meio de algo maior, e isso é uma ilusão.

Esse mesmo super-humano, porém, talvez viva em um mundo mais desigual, em que o acesso a oportunidades é limitado aos que tiveram um aumento de QI financiado pelos pais na infância ou possam implantar câmeras nos olhos (da mesma forma que mulheres e negros sofrem no mercado de trabalho hoje). Prova de que as mudanças que achamos que são para melhor podem nos privar do que temos de melhor: nossa humanidade. O fato de que nascemos, brigamos, nos distraímos, esquecemos, fracassamos e morremos sem ter realizado todos os nossos sonhos é o que torna a vida uma vida, bem… uma vida. E não uma planilha de Excel. 

Agradecemos a historiadora Petra Diwan, doutoranda em história pela PUC e autora do livro Raça Pura, que trata da história da eugenia, pela consultoria para este texto.

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