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Ajuda dos universitários: os consultores de ciência de Hollywood

Nos bastidores do cinema, especialistas de várias áreas tornam roteiros mais precisos, melhoram a representação dos pesquisadores e, às vezes, preveem o futuro. Confira.

Texto: Rafael Battaglia | Ilustração: Thobias Daneluz | Design: Juliana Alencar | Edição: Bruno Vaiano 

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grego Spyridon Michalakis cresceu como uma típica criança nerd: jogava Super Nintendo, assistia a Jornada nas Estrelas e se divertia com desafios matemáticos – muitos deles, inclusive, montados por sua avó.

Conforme crescia, o interesse pelos números aumentava, e Spiros – o apelido da criança prodígio – participou de várias olimpíadas internacionais de matemática. Em 1999, ele se mudou para os EUA para estudar matemática e ciências da computação no MIT. 

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Hoje, Spiros trabalha no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), onde pesquisa mecânica quântica – a área da física que estuda o mundo na escala das partículas subatômicas, em que as leis convencionais de Newton não se aplicam. Mas a ciência de verdade é apenas uma de suas ocupações. 

Desde 2013, ele colabora frequentemente como consultor de ciência em Hollywood. Spiros é uma das mentes por trás do Reino Quântico, um domínio imaginário que foi apresentado em Homem-Formiga (2015) e que aparece em outros filmes do Universo Marvel

O Reino Quântico dos filmes não é um lugar separado, com CEP próprio. Ele é só a aparência microscópica do mesmíssimo mundo que já conhecemos. É a maneira como os personagens veem as coisas quando encolhem até ficarem menores do que um átomo. 

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Como as leis da física quântica real são mesmo bizarras, os roteiristas da Marvel se aproveitam de conceitos dessa área para justificar feitos impossíveis – Capitão América e cia. apelam para o Reino Quântico para viajar no tempo e salvar o dia em Vingadores: Ultimato (2019). Claro, é tudo ficção. Encolher não é realmente uma forma realista de viajar no tempo (prefira buracos de minhoca). Mas é importante que, no contexto do enredo, isso não pareça uma forçação de barra completa. Não é raro, então, que roteiristas, produtores e diretores trabalhem junto com cientistas como Spiros para tornar suas histórias mais sólidas. Não só na Marvel: em toda a indústria. 

Essa relação entre ciência e entretenimento não é de hoje. Há, inclusive, organizações que facilitam a busca por consultores especializados. Uma história que começa para valer em 1968.

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A consagração do sci-fi

Quando o francês Georges Méliès lançou Viagem à Lua (1902), considerado primeira ficção científica do cinema, o gênero já estava consolidado na literatura. Méliès, inclusive, se baseou no livro Da Terra à Lua, de Júlio Verne. O escritor francês não precisava de consultor. Entendia bastante de ciência. Imaginou a ida de astronautas à Lua a bordo de um projétil, que é mais ou menos o que acontece hoje (a grande diferença é que a cápsula seria disparada por um canhão – como mal existia o conceito de foguete na época, a ideia era razoável).

Bom, nas primeiras décadas do século 20, a literatura foi além de apenas imaginar os avanços tecnológicos e passou a debater como eles impactariam a sociedade – para o bem e para o mal. Essa tendência chegou ao cinema nos anos 1960, acompanhada de avanços nos efeitos especiais que elevaram o sci-fi ao primeiro escalão de Hollywood. 

O principal responsável pelo salto foi o diretor Stanley Kubrick. Em 1964, ele se juntou a Arthur C. Clarke, um dos maiores autores de sci-fi da história, para criar simultaneamente o livro e o roteiro de 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Kubrick era metódico e obsessivo (mais tarde, gravaria 127 takes de uma única cena de O Iluminado). Então foi atrás de diversos especialistas para ajudá-lo.

“Queríamos criar algo realista e plausível, que não se tornasse obsoleto com os acontecimentos dos anos seguintes”, escreveu Clarke em 1999, em referência aos programas espaciais americano e soviético. Para isso, Kubrick buscou reforços direto na fonte: contratou dois ex-funcionários da Nasa, Frederick Ordway e Harry Lange.

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Lange era um engenheiro aeroespacial e trabalhava projetando novos sistemas de propulsão e navegação. Já Ordway, que mantinha uma consultoria aeroespacial, era o cara dos contatinhos: com a sua ajuda, a produção do filme teve acesso a mais de 65 organizações, entre universidades e empresas. Ele também fez a ponte entre Kubrick e a dupla formada por Louis Leakey e seu filho, Richard – dois paleoantropólogos que criaram os hominídeos da primeira parte do filme. Os seres, diga-se,  reconstroem o Homo habilis, de 2 milhões de anos atrás – seres que tinham sido descobertos pelo próprio Louis em 1962.

Kubrick também arranjou acordos com IBM, General Electric, Honeywell e Pan Am: elas revelaram tecnologias e designs conceituais que tinham na gaveta – em troca, ganharam publicidade em 2001. O filme virou uma espécie de feira de inovação. Em uma cena, os astronautas do filme jantam lendo e assistindo o noticiário em seus “news pads” – aparelhos indiscerníveis do iPad. 

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Em 2001 – Uma odisseia no espaço, Kubrick imaginou um tablet 42 anos antes do lançamento do iPad. 

2001 foi também o primeiro sci-fi a apresentar um mecanismo plausível para gerar gravidade artificial dentro de uma espaçonave. O cenário da sala giratória presente na nave Discovery levou seis meses para ser construído.

A produção saiu em 1968 e virou um clássico instantâneo. Os efeitos especiais, que levaram o Oscar, convencem até hoje. Aliás, o visual do longa, aliado à precisão científica, impressionou tanto que, em 1969, quando a Apollo 11 chegou à Lua, correu o boato de que a Nasa havia chamado Kubrick para gravar um falso pouso – uma mentira que ainda encontra crédulos. Nada mal para um diretor que tinha medo de viajar de avião.

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(Thobias Daneluz/Superinteressante)
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Ponte da amizade

Hoje, os cineastas não precisam caçar cientistas por conta própria. Essa ponte é facilitada pela Science & Entertainment Exchange, criada em 2008 pela Academia Nacional de Ciências dos EUA. Eles realizam seminários para apresentar conceitos científicos para roteiristas e produtores – e atender às demandas dos estúdios, indicando especialistas ideais para cada tipo de projeto.

A organização mantém na internet um banco com mais de 2,4 mil cientistas cadastrados, dispostos a oferecer consultoria. Entre 2008 e 2017, estima-se que a Exchange tenha ajudado 1.800 produções. Foi por intermédio dela que, em 2014, Spiros foi parar nos estúdios Pinewood, em Atlanta, onde a Marvel costuma gravar os seus filmes. No primeiro dia, ele passou cinco horas em uma sala de conferências com a equipe de Homem-Formiga e Paul Rudd, o ator que interpreta o herói e que também colaborou com o roteiro.

Inicialmente, eles queriam entender apenas o que aconteceria caso alguém encolhesse muito. “Eu disse que não seria de grande ajuda para questões biológicas, mas podia ensiná-los algumas coisas de física quântica”, contou Spiros em uma conversa com a Super. “Stan Lee era um grande entusiasta da ciência, mas as histórias que ele criou na Marvel usam conceitos dos anos 1960 e 1970. De lá para cá, muita coisa mudou.”

A equipe de efeitos especiais também ouviu os seus conselhos. Afinal, para criar o Reino Quântico, não havia nenhuma imagem de referência. Partículas subatômicas são menores que o comprimento das ondas da luz – e, portanto, incapazes de refleti-las para formar uma foto. Além disso, uma partícula qualquer não tem, por exemplo, posição definida no espaço: as equações permitem calcular apenas a porcentagem de chance de que ela esteja aqui ou acolá. De que forma representar artisticamente o mundo nessa escala inacessível e incerta? “Como a física quântica altera a nossa própria concepção de realidade, sugeri que os efeitos simulassem um caleidoscópio ou uma viagem psicodélica”, disse. “Uma bad trip de LSD.” 

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Spiros continua a colaborar com a Marvel – e virou amigo de Rudd. Em 2016, o cientista ajudou o ator em um vídeo cômico para promover um evento da Caltech. Ali, Rudd desafia Stephen Hawking para uma partida de “xadrez quântico”. Trata-se de uma variante do jogo em que uma peça tem uma certa probabilidade de estar ou não em diversas casas – e você só descobre a casa em que ela realmente está caso a peça interaja com outra. Uma forma engraçadinha de explicar as incertezas do mundo microscópico.

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Via de mão dupla

Spiros também fez amizade com Keanu Reeves após colaborar com a comédia de viagem no tempo Bill e Ted. Contudo, a consultoria de ciência costuma ser bem menos glamourosa: é um trabalho de bastidor, geralmente resolvido em algumas horas de ligação com os roteiristas. Os cientistas não ganham dinheiro.

Claro, há exceções. Às vezes, o roteiro precisa tanto dos consultores que eles passam a ter papel vital no desenvolvimento do filme. É o caso de Interestelar (2014), de Christopher Nolan, que contou com o Nobel de Física Kip Thorne como um dos produtores executivos. Em A Chegada (2016), de Denis Villeneuve, a linguagem e o sistema de escrita dos alienígenas, que são peças-chave da história, foram criados com consultoria da linguista Jessica Coon e dos matemáticos Stephen e Christopher Wolfram.

Não são apenas os filmes que se beneficiam dessa relação. A Exchange também busca popularizar o conhecimento científico e melhorar o modo como pesquisadores são representados no cinema. Uma preocupação válida porque isso dita a maneira como as pessoas comuns imaginam cientistas. 

Por exemplo: entre 1966 e 1977, um estudo nos EUA pediu a crianças que pensassem na figura de um cientista e o desenhassem. Das quase 5 mil ilustrações, apenas 0,6% mostrava uma mulher. O estudo se repetiu nas décadas seguintes, e a proporção hoje está em 28%. Bom, mas ainda longe da realidade: no Brasil, 49% dos artigos científicos já são escritos por mulheres. Um bom jeito de quebrar estereótipos machistas é justamente mostrar mulheres cientistas na TV e no cinema.

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Com a onda de negação da ciência, nunca foi tão importante trazer pesquisadores para o palco central da cultura pop. A bola que Kubrick lançou em 1968 já passou de 2001 – vamos torcer para que nunca pare de rolar. 

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Fontes: livro Lab Coats in Hollywood: Science, Scientists, and Cinema, de David Kirby; vídeo “The hotline Hollywood calls for science advice”, do Vox, e sites British Film Institute, Physics World e Wired.

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