Produtores se voltam para o passado em busca de métodos para fazer vinhos que expressem uvas e terroir do modo mais autêntico possível. Entenda como isso funciona – e conheça os diferentes estilos da bebida.
Texto: Marcos Nogueira e Mariana Weber | Edição de Arte: FazFazFaz Design | Design: Andy Faria | Ilustrações: André Valente
Membro de uma família com cinco gerações de vinicultores, Filipa Pato se apresenta como mais tradicional que o pai quando o assunto é vinho. “A inspiração é sempre o passado”, afirma a portuguesa filha de Luís Pato, produtor conhecido pela valorização da baga, casta típica da Bairrada. Ambos compartilham a dedicação a essa uva local, mas Filipa, que trabalhou na França, na Austrália e na Argentina antes de montar uma vinícola própria, colada à do pai, vai além na valorização do regional e do tradicional. A enóloga procura em métodos antigos a inspiração para fazer vinhos modernos com o mínimo de intervenção externa. Ou, como ela diz, “sem maquiagem”.
A vinicultura atravessa uma fase interessante no que diz respeito à tecnologia. Ciência, maquinário e controle de processos agora atuam como auxiliares resignados da uva e do terroir – no passado recente, quase roubaram o protagonismo.
No final do século 20, o uso de equipamentos modernos e uma abordagem mais científica de todas as etapas do ofício transformaram radicalmente o vinho. A bebida, que antes variava imensamente ao sabor dos eventos climáticos e da intuição humana, passou a ter um padrão objetivo de qualidade. O vinho do século 21 é melhor que o vinho de qualquer outra época. Mas talvez seja também mais chato. A padronização criou um produto previsível demais.
No afã de agradar o consumidor (e vender mais), vinicultores de várias partes do mundo fizeram vinhos com o mesmo perfil: muito álcool, muita fruta madura, madeira para arredondar o conjunto (além de mascarar defeitos) e nada que cause estranheza ao olfato e ao paladar do comprador mediano.
O mundo ainda se embebeda com vinhos assim, mas a ressaca já chegou forte para os produtores e consumidores mais inquietos. Essa gente agora busca bebidas de características singulares. Vinhos que sejam a expressão honesta da uva plantada em um pedaço de terra com propriedades especiais. Produtos esquisitos demais para agradar às massas, mas com apelo forte para aqueles que pagam pela exclusividade – não, o marketing não foi aposentado na nova era do vinho.
Para se diferenciar da multidão, o vinhateiro recorre à tecnologia. Tanto a alta tecnologia (aparelhos futuristas e genética aplicada) quanto a baixa (o resgate de métodos e equipamentos ancestrais). A adoção dessas técnicas começa, é claro, no campo. É cada vez maior a adesão voluntária dos produtores às práticas sustentáveis.
Mesmo quando isso não rende certificação orgânica ou qualquer outro selo oficial para ostentar na garrafa – algo que envolve labirintos burocráticos e impede o agricultor de recorrer às armas convencionais nas raras emergências. Basicamente, o plantador de uva descobriu que pode obter resultados ótimos quando não lança mão de pesticidas.
Nos vinhedos da Cave Geisse, em Pinto Bandeira (RS), um trator muito lento passa ruidosamente entre as fileiras de chardonnay. O barulho lembra o de um secador de cabelo gigante. Chegando mais perto, percebe-se que a máquina não é muito diferente disso: escapamentos de ambos os lados do trator sopram ar em altíssima velocidade nas folhas das parreiras.
Esse é o TPC, uma invenção tão genial quanto simples. As três letrinhas, em inglês, formam a sigla “controle térmico de pragas”. Ele funciona assim: ao soprar ar muito quente (130 ºC ou mais, a 120 km/h) nas plantas, mata fungos e insetos e estimula as defesas naturais do vegetal.
O equipamento foi inventado no Chile para um propósito totalmente diverso – derreter a geada antes que ela queimasse a vinha. Como as plantas submetidas às sessões de ar quente passaram a exibir um vigor fora do comum, o inventor do TPC (o agricultor Florencio Lazo) passou a usá-lo rotineiramente, até perceber que o uso de pesticidas não era mais necessário.
A vinícola Odfjell, nos arredores de Santiago do Chile, vai mais longe: é adepta da agricultura biodinâmica. Arturo Labbé, agrônomo responsável pelos vinhedos, explica com um entusiasmo quase infantil os procedimentos e ritos: preparados que levam esterco, casca de ovo e chifre de boi; o respeito ao calendário zodiacal; a compostagem de todos os dejetos do campo para adubar o parreiral. Este último faz muito sentido. “As bactérias que decompõem a matéria orgânica capturam o nitrogênio do ar”, diz Arturo. “Nós o devolvemos ao solo.”
A Odfjell, propriedade de um magnata norueguês do ramo dos estaleiros, pode se dar ao luxo de investir em excentricidades. Mas o patrão não é louco de rasgar dinheiro: Arturo só mantém o posto porque seu trabalho deu certo. E ele dispõe de um arsenal que vai além da rosa-dos-ventos pintada no chão de cimento. No bolso da jaqueta surrada, o agrônomo carrega um aparelhinho do tamanho de um celular.
A coisa se chama refratômetro. Arturo escolhe uma uva, extrai uma gotinha de suco, a aplica numa placa dentro da engenhoca, aperta um botão e pronto: um visor indica a concentração de açúcar da fruta. Esse conhecimento é crucial para saber se os cachos estão maduros o bastante para a colheita.
Colher no ponto ideal evita ajustes depois, na vinícola. “Nunca fazemos correções de acidez ou álcool”, afirma Filipa Pato, que estudou engenharia química e diz usar o conhecimento pela negativa, ou seja, pela não utilização de químicos. Também é contra modificações no estilo do vinho local pelo uso de variedades de uvas estrangeiras, e trabalha recuperando antigos vinhedos de castas nativas, sem o uso de herbicidas.
Menos produtivas, mas com frutas de sabores e aromas mais concentrados, as vinhas velhas fornecem as uvas que a enóloga trabalha em uma vinícola do século 19 dada de presente para ela pela avó. Semissubterrânea, a construção se aproveita da gravidade para levar os líquidos de um recipiente a outro e de um bom sistema de circulação natural de ar obtido pela orientação norte-sul, favorável à passagem do vento naquela localização.
Filipa também é uma entusiasta do uso das leveduras selvagens, outra tecnologia retrô que está em voga. Leveduras selvagens são os fungos presentes na casca da uva, que se multiplicam naturalmente para fermentar o vinho. Era assim que se fazia antigamente, mas os vinicultores descobriram que tinham muito mais controle sobre o processo quando adquiriam leveduras de cepas selecionadas.
O retorno à fermentação natural costuma trazer surpresas no resultado final, já que o mix de leveduras é desconhecido. Cada tanque de vinho é diferente do outro, e é essa imprevisibilidade que produtores como Filipa adoram.
Vinhos Doidos é o nome da empresa de Filipa e do marido, o sommelier belga William Wouters, um nome que já indica um tanto da disposição da dupla em experimentar (ainda que com métodos do passado). Já foram feitos testes de vinificação em ânfora – “A uva baga gosta de um solo de argila e calcário. Quis vinificar em um material igual”, diz Filipa.
Em vez de só em cubas de inox, parte da fermentação dos vinhos acontece em lagares de madeira parecidos com os que eram usados pelos romanos, o que gera taninos mais aveludados. E o envelhecimento ocorre em pipas de carvalho francês feitas, em sua maior parte, de madeira usada anteriormente (a madeira nova, de primeiro uso, passa mais aromas para a bebida).
A rejeição aos vinhos amadeirados é um traço característico do movimento que busca produtos mais “naturais”, “autênticos” ou “sem maquiagem”. Essa opção esbarrava em um pequeno entrave. O carvalho, com sua porosidade natural, contribui para a boa maturação de vinhos mais complexos: a troca de gases em escala ínfima modifica sutilmente a paleta de compostos químicos presentes na bebida. Deixar o vinho na cuba de inox por muitos meses não tem o mesmo efeito.
A solução veio com uma das inovações tecnológicas mais bacanas da enologia: o ovo. Trata-se de um enorme tanque feito de concreto, com controle de temperatura e válvulas de aço inox, em forma oval. A porosidade do material permite um envelhecimento similar àquele que ocorre na barrica, porém preservando o sabor natural da uva. Muitas vínicolas têm optado pelo método: na América do Sul, bons exemplos são a argentina Zorzal e a chilena Santa Ema.
Mas por que a forma de ovo? “Ela propicia a circulação natural do líquido”, explica Andrés Sanhueza, enólogo da Santa Ema. “E as leveduras se acumulam no fundo, podendo ser removidas facilmente por uma válvula embaixo do tanque.” Com seu design futurista e estranho, à primeira vista a coisa parece o ovo de uma criatura alienígena; mas se trata de uma tecnologia simples e eficaz que demorou para ser descoberta – um ovo de Colombo.
OS ESTILOS DE VINHO
De acordo com o perfil de cor, aroma e estrutura, a bebida se adequa a diferentes situações.
1 • Espumantes
São feitos, geralmente, a partir da segunda fermentação de um vinho base, que pode ser branco ou rosado. A esse vinho, que deve ter gradação alcoólica baixa e acidez alta, adicionam-se açúcar e mais leveduras. Esses aditivos geram mais álcool e bolhas de gás carbônico dentro de uma garrafa arrolhada (no método tradicional) ou de um tanque pressurizado chamado autoclave (no método charmat). Exemplos: champanhe (França), espumantes da Serra Gaúcha (Brasil), cava (Espanha) e prosecco (Itália).
Açúcar residual (em g/l), mede a sensação de doçura de cada categoria de espumante.
2 • Brancos secos leves
São vinhos de corpo leve, refrescantes e de aroma pouco pronunciado. Ótimos para beber puros, no calor, ou acompanhando frutos do mar de sabor suave, como camarões cozidos, ostras cruas ou lulas grelhadas. A acidez é um ponto positivo: ela se perde com o tempo, por isso busque pela safra mais recente possível. Exemplos: Vinho Verde (Portugal), albariño das Rías Baixas (Espanha), Chablis ou Muscadet (França).
3 • Brancos aromáticos
Apresentam fortes aromas de frutos ou de flores, o que os torna mais complexos e menos fáceis de beber em grandes volumes. Podem exalar maracujá (como a sauvignon blanc do Chile), lichia e rosas (como a gewürztraminer) ou pêssego (viognier). Aparecem tanto na versão seca quanto na meio-doce. Exemplos: riesling (Alemanha, França, Nova Zelândia e EUA), sauvignon blanc (Chile e Nova Zelândia), gewürztraminer (França e Alemanha).
4 • Brancos encorpados
Na maior parte das vezes, trata-se de um branco que foi fermentado ou envelhecido em barril de carvalho. Ele adquire aromas e sabores provenientes da madeira e da tosta da barrica: coco, baunilha, mel. Desenvolve também notas de frutas tropicais, como abacaxi. A chardonnay do Novo Mundo é o melhor exemplo. Exemplos: chardonnay (Califórnia, Chile e Austrália), Rioja branco (Espanha), Rhône branco (França).
5 • Rosés ou rosados
Feitos com uvas tintas que são espremidas e têm as cascas removidas antes que elas transmitam ao suco todos os pigmentos e taninos. A cor varia do salmão clarinho (o chamado casca-de-cebola) ao vermelho vivo translúcido. Os aromas e sabores costumam lembrar frutas vermelhas. Exemplos: Provence (França), Navarra (Espanha).
6 • Tintos leves
Vinhos que se aproximam dos rosés tanto na cor quanto no baixo teor de taninos. São vinhos frescos, frutados, que não passam por madeira e devem ser bebidos jovens: procure por safras recentes. Exemplos: Beaujolais (França), barbera (Itália), grenache (Espanha e Austrália), bonarda (Argentina) e merlot (exemplares mais leves do Chile, da Argentina e da Austrália).
7 • Tintos de corpo médio a alto
Nesta categoria se encontra boa parte dos melhores vinhos tintos do mundo, como os de Bordeaux e da Borgonha (especialmente depois de envelhecidos). São vinhos com uma dose razoável de taninos, mas que evoluem para apresentar sabores de frutas negras, violeta, chocolate e especiarias. Costumam ser envelhecidos em barril. Exemplos: Borgonha e Bordeaux (França), Douro (Portugal), malbec (Argentina), Barbaresco (Itália), pinot noir (Chile e Nova Zelândia).
8 • Tintos encorpados
Negros, densos e intragáveis quando muito jovens. Os tintos encorpados são uma porrada de taninos que precisam amaciar com muito envelhecimento em madeira e garrafa. Como regra geral, os vinhos tintos mais caros das melhores regiões produtoras (com exceção de áreas frias, como a Borgonha) costumam ter este perfil. Exemplos: syrah (Rhône e Austrália), cabernet sauvignon (Chile), tannat (Uruguai) e Toro (Espanha).
9 • Vinhos de sobremesa
Nas melhores versões, são feitos a partir de uvas com altíssima concentração de açúcar – adquirido por amadurecimento prolongado (late harvest), congelamento (ice wine, eiswein) ou infecção pelo fungo Botrytis cinerea. Nas piores, é adicionado açúcar. A doçura do vinho é compensada pelo açúcar da sobremesa, que o faz parecer refrescante. Exemplos: Sauternes (França), Tokaji (Hungria), Moscatel de Setúbal (Portugal), ice wine (Canadá).
10 • Vinhos fortificados
Tintos ou brancos, têm a fermentação interrompida pela adição de aguardente, que eleva o teor alcoólico e, em boa parte dos casos, preserva parte do açúcar da uva. A técnica foi desenvolvida para preservar a bebida em viagens longas. O vinho do Porto é o exemplo mais clássico. Exemplos: vinho do Porto e Madeira (Portugal), Jerez e Málaga (Espanha).