As próximas gerações
Sim, o Sars-CoV-2 já está sofrendo mutações: em média duas por mês, segundo o Nextstrain, um projeto que mapeia a evolução do vírus em tempo real (6). O coronavírus europeu já é diferente do chinês, como indica um estudo liderado por Paola Stefanelli, do Departamento de Doenças Infecciosas do Instituto Superior de Saúde de Roma. A equipe identificou duas cepas diferentes do CoV-2, que foram extraídas de dois pacientes: um turista chinês de Wuhan, diagnosticado em janeiro em Roma, e um italiano diagnosticado em fevereiro na Lombardia. “A cepa do paciente italiano é similar a outras identificadas na Alemanha e no México”, concluiu Stefanelli. “Já a do turista chinês, relacionada com a de Wuhan, é similar a outras cepas europeias e uma da Austrália.” (7)
Como é típico dos coronavírus, o Sars-CoV-2 está evoluindo em ritmo lento: metade da velocidade de mutação do vírus influenza, que causa a gripe comum. Como o genoma do Sars-CoV-2 tem quase o dobro do tamanho do influenza, sua taxa de mutação seria então quatro vezes mais lenta. Boa notícia para o desenvolvimento de uma vacina, então? Não necessariamente.
Os cientistas do laboratório Los Alamos constataram o seguinte: uma das mutações, que foi batizada de D614G, pode tornar o vírus mais contagioso – e prejudicar a eficácia de eventuais vacinas. O Sars-CoV-2 é formado por 30 mil pares de nucleotídeos, ou “letras” genéticas. Essa mutação aconteceu na posição 23.403, com a substituição de uma molécula de guanina por uma de adenina. Só essa mudança foi suficiente para que a cepa D614G, que surgiu no começo de fevereiro, se tornasse bem mais contagiosa – a ponto de dominar e sobrepujar o vírus “original”, de Wuhan.
“Quando é introduzida em novas regiões, [ela] rapidamente se torna a forma dominante”, escreveram os pesquisadores. Segundo eles, a mutação afeta diretamente a proteína spike, facilitando a conexão do vírus com células humanas. E as transformações do vírus nos próximos meses podem tornar ineficazes as vacinas que estão sendo desenvolvidas agora. “Se a pandemia se prolongar, isso pode exacerbar o acúmulo de mutações até a primeira vacina. Se lidarmos com esse risco agora, talvez possamos atentar para evoluções do vírus. Se as ignorarmos, elas talvez limitem a efetividade das primeiras vacinas”, afirma o estudo.
O ritmo de evolução do Sars-CoV-2 está diretamente ligado a algo que os cientistas chamam de “pressão seletiva”. É fácil entender o conceito. O vírus é atacado pelo sistema imunológico do hospedeiro, que mata muitas cópias dele – mas, em alguns casos, acaba permitindo a sobrevivência de versões mais aptas, que então se reproduzem. Quanto mais gente for infectada pelo novo coronavírus, mais ele será submetido a ataques do sistema de defesa do corpo humano: que poderá acabar selecionando, sem querer, as versões mais fortes. Em alguns casos, a ação malsucedida do sistema imunológico também produz alterações diretas nos vírus. Esse fenômeno se chama “aprimoramento dependente de anticorpos” (ADE), e já foi verificado nos vírus da aids, da zika, da dengue e da febre amarela. Ele costuma resultar em aumento na infectividade e agressividade dos vírus.
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Mas isso não vai, necessariamente, acontecer com o Sars-CoV-2. Os estudos que apontam mutações no vírus têm sido criticados por boa parte da comunidade científica, que os considera prematuros e talvez até irrelevantes: na prática, as alterações já verificadas não seriam grandes o suficiente para mudar o comportamento do vírus. Além disso, mutações nem sempre são ruins. Elas podem até produzir Tartarugas Ninja e X-Men no cinema, mas na vida real não passam de eventos aleatórios geralmente irrelevantes – que podem até deixar o vírus menos agressivo.
Do ponto de vista da evolução, para sobreviver o vírus precisa maximizar sua propagação e persistir. Se ele matar muito rápido, não será transmitido. “Por outro lado, se o vírus evoluir de modo a reduzir sua taxa de replicação numa pessoa, haverá tão pouco dele nas nossas secreções que não o transmitiremos”, diz o biólogo evolucionista Tom Gilbert, da Universidade de Copenhague. Por isso, talvez o ideal para o novo corona fosse se parecer com o influenza: ele nos faria tossir, espirrar e sentir mal, mas não a ponto de nos manter na cama – pois isso evitaria o contato do vírus com outras pessoas. De acordo com Gilbert, o Sars-CoV-2 já pode ter alcançado a forma ideal (ideal para o vírus, claro): não mata a maioria das pessoas. Menos ainda as mais capazes de espalhá-lo: jovens e crianças, que entram em contato com mais gente do que os idosos e enfermos. “Ficarei surpreso se o vírus se tornar muito diferente do que já é agora”, diz o biólogo.
“Os dados do sequenciamento de genoma sugerem que o vírus não está sob muita pressão evolutiva. Ele parece bem adaptado aos humanos, e ainda tem muitos hospedeiros com os quais se ocupar”, afirma Matthew Kosi. Faz sentido: se o número mundial de contágios até o fechamento desta edição estiver correto (3,2 milhões), então apenas 0,04% da humanidade foi infectada. Mesmo se o dado real for dez vezes maior, como muitos infectologistas especulam, o vírus ainda poderá infectar muita gente sem alterar o próprio código genético. A pressão seletiva só vai ficar mais forte quando houver uma grande porcentagem de população imunizada (assumindo que a imunidade será de longo prazo) ou uma vacina. Quando esse momento chegar, o CoV-2 só irá sobreviver se apresentar mudanças mais profundas.
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Se a vacina for eficaz e onipresente (com 95% da população vacinada, por exemplo, como no caso do sarampo), o vírus provavelmente será extinto. Se a porcentagem de pessoas vacinadas for um pouco mais baixa, de 60% a 80%, mesmo assim ela poderia proteger quem não se vacinou. É a chamada “imunidade de rebanho”: a vacinação e a imunização de quem se curou reduzem a quantidade de vírus em circulação, o que diminui a taxa de infecção de pessoas não vacinadas. Pode ser também que uma vacinação em níveis elevados, mas abaixo do limiar necessário, gere uma pressão seletiva que faça surgir um subtipo do vírus imune à vacina. Esse seria o pior dos cenários. Mas não é, necessariamente, o mais provável. Tudo pode acontecer.
O Sars-CoV-2 é o desafio mais complexo que a medicina moderna já enfrentou. Ele se esconde, muda de forma, age de maneiras diferentes em pessoas diferentes, segue caminhos difíceis de prever. Mas está diante de uma força igualmente rápida, adaptável e capaz de grandes saltos: a inteligência humana.
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(1) Temporal dynamics in viral shedding and transmissibility of COVID-19. Xi He e outros, 2020.
(2) The early phase of the COVID-19 outbreak in Lombardy, Italy. D. Cereda e outros, 2020
(3) Emergence of SARS-CoV-2 through Recombination and Strong Purifying Selection. Xiaojun Li e outros, 2020.
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(4) Characterization of the receptor-binding domain (RBD) of 2019 novel coronavirus. W. Tai e outros, 2020.
(5) Spike mutation pipeline reveals the emergence of a more transmissible form of SARS-CoV-2. B.Korber e outros, 2020.
(6) Nextstrain.org/ncov.
(7) Whole genome and phylogenetic analysis of two SARS-CoV-2 strains isolated in Italy in January and February 2020. P. Stefanelli e outros, 2020.