A globalização :você 3.0
Outro dia, sentei na minha casa em Paris para escrever uma reportagem encomendada por um jornal argentino que eu havia apurado em Miami
Texto Simon Kuper
Esta matéria foi escrita por um repórter inglês que vive em Paris, ilustrada por artistas da Rússia, Brasil, México, Japão e Espanha e coordenada por e-mail da redação da Super em São Paulo. Bem-vindo à nova era da globalização: primeiro foram os países, depois as empresas. Agora é a sua vez.
Eu sou inglês, ou pelo menos é isso que diz meu passaporte. Outro dia, sentei na minha casa em Paris para escrever uma reportagem encomendada por um jornal argentino que eu havia apurado em Miami. Dei os últimos retoques no texto dentro de um trem que atravessava a Bélgica. Ao chegar à estação central de Amsterdã, meu destino final, conectei o notebook à rede de internet sem fio e, sentado num cantinho, ao lado da minha esposa americana, enviei o artigo por e-mail para Buenos Aires. Me senti o perfeito trabalhador globalizado. Como diria o colunista do The New York Times Thomas Friedman em seu livro O Mundo É Plano, eu era uma minimultinacional trabalhando no meu escritório virtual global.
O Mundo está entre as obras mais importantes para entender esse novo fenômeno. O livro explica por que pessoas como eu são o seu futuro. Já está claro que, na sua e na minha carreira, a maior parte do dinheiro virá dos trabalhos globais. Agora só nos resta desvendar um detalhe – nada irrelevante, aliás: quem terá a chance de se tornar global e quem será atropelado pelo processo, sendo deixado para trás na corrida da globalização.
Mas como foi que chegamos a este estágio? Afinal, globalização (essa palavra horrível) costuma ser usada para se referir a empresas ou produtos. Pois Friedman decretou que essa globalização caducou. A coisa funciona assim: em 1492, Colombo pegou seu barco e mostrou que o mundo ia bem além da Europa. Começava a globalização 1.0, com as nações percebendo que poderiam fazer negócios no mundo todo. O marco seguinte veio por volta de 1800, com a Revolução Industrial, que forçou as empresas a se multinacionalizar em busca de novos mercados para vender seus produtos – e mão-de-obra barata para fabricá-los. Era a globalização 2.0. A era que estamos vivendo, a globalização 3.0, “é sobre indivíduos se globalizando”. As raízes desse fenômeno estão fincadas em uma variedade de tecnologias que, por volta do ano 2000, começaram a ficar disponíveis ao grande público (o preço ficou acessível, para ser mais claro). Vamos a elas: conexões à internet estão cada vez mais velozes. Os computadores, baratos. Softwares sofisticadíssimos ficaram tão simples que podem ser usados por semi-analfabetos tecnológicos. E o Google mostrou-se capaz de colocar pessoas sentadas na sala de casa em contato com boa parte da informação mundial. Por fim o número de usuários da internet teve um crescimento exponencial.
O resultado disso tudo é que quando se afirma que o mundo é plano não estamos falando na possibilidade de ficar de papo com qualquer pessoa no planeta através do computador de casa. É muito mais do que isso. Mundo plano quer dizer que após a queda do Muro de Berlim, a abertura dos mercados da Índia e da China e a redução dos impostos alfandegários, podemos muito mais do que conversar com todos: agora podemos nos conectar a qualquer habitante do planeta (desde que ele não viva nas ditaduras da Coréia do Norte ou de Mianmar, é claro).
Uma breve história global
Os imigrantes que deixaram Nápoles rumo a São Paulo na virada do século 20 estavam trocando um planeta por outro. Havia muito pouco em comum entre esses dois lugares. A comida era diferente, a música era outra e os hábitos sociais não se pareciam em quase nada. Hoje, com o ciberespaço, eles poderiam ter conseguido um emprego em outro país sem ter de abandonar a macarronada. Gerentes industriais e editores de revista contratam profissionais como eu, que eles nunca viram pela frente, e que trabalham sentados numa cadeira do outro lado do mundo. A Índia é hoje um dos principais pólos desse tipo de serviço. Friedman encontrou lá contadores cuidando, via internet, do Imposto de Renda de clientes americanos. Viu nerds programando jogos de computador para desenvolvedores na Califórnia. Atendentes de call center em Nova Délhi recebendo telefonemas feitos para o serviço de atendimento de empresas americanas. Achou raios X tirados na madrugada dos EUA sendo examinados em tempo real por médicos na Austrália, onde já era dia. Ao ler O Mundo, até eu pensei em importar da Índia umas pesquisas jornalísticas!
Nem sempre, porém, a nova realidade é uma maravilha. Talvez o melhor exemplo da nova logística global seja a rede terrorista Al Qaeda. Os ataques de 11/9 foram detonados nos EUA por um time de sauditas comandados por um egípcio educado na Alemanha e guiado por um chefe na zona rural do Afeganistão. As teorias conspiratórias que incluem os governos israelenses e americanos na trama costumam se esquecer o quão fácil se tornou para uma pessoa comum realizar um trabalho global altamente sofisticado – Mohammed Atta, chefe dos seqüestradores, comprou sua passagem no AA.com, site da American Airlines. Simples assim.
Ou então pegue a rede global de jornalistas e designers que criou esta reportagem. A idéia original – exemplificar na realização da matéria o fenômeno de que estamos tratando – partiu da redação da revista, em São Paulo. Por e-mail, fui convidado a escrevê-la aqui de Paris. Enquanto isso, o diretor de arte da Super fuçava sites especializados em busca de ilustradores. Os colaboradores escolhidos eram gente de que ele nunca ouvira falar, espalhados pelo Brasil, Canadá, Espanha e Rússia. Tudo parece muito elaborado, mas na prática o processo inteiro custou a mesma coisa e foi praticamente idêntico ao de qualquer outra reportagem da Super – a única diferença foi que precisamos nos comunicar por Skype ou Messenger em vez de fazer uma reunião ao vivo.
Agora vem a má notícia. A globalização não é uma festa para a qual todos estão convidados – esse é o drama de toda boa festa, aliás. Mesmo que a hostess da porta seja bonitinha, ela decide quem entra e quem não entra com a mesma crueldade de um leão-de-chácara. O que fazer para conseguir um convite? Aí vai o caminho das pedras. Para ser um trabalhador global, você precisa de duas ferramentas: um computador com internet e domar o inglês. Quando combinados, esses dois requisitos excluem mais de 90% da população do planeta. É um equívoco, portanto, acreditar que não há barreiras para a globalização 3.0. A maioria não tem essas ferramentas básicas.
Veja o caso do Brasil: numa população de 189 milhões de pessoas, cerca de 30 milhões têm acesso à internet. Globalmente estima-se em 694 milhões os maiores de 15 anos que acessam a rede – apenas 14% de toda a população mundial nessa faixa etária. Não pense, porém, que o fato de você fazer parte desses 14% de privilegiados lhe garante uma vaga no mercado de trabalho global. Você precisará se virar na hora de falar inglês, porque colaboradores têm de se comunicar e o inglês é a língua escolhida para essa tarefa. Quando um chinês conversa com um francês, ainda que de forma rudimentar, eles usam o inglês. Inglês é, também, a língua que eu usei para me comunicar com a Super. Se meu texto tivesse de ser traduzido do alemão ou do cantonês, isso significaria um acréscimo de tempo e de custo. Da mesma maneira, O Mundo É Plano teria muito menos chance de atrair a atenção de uma editora brasileira se tivesse sido escrito originalmente em sueco. Como no acesso à internet, a exigência de usar o inglês elimina da concorrência parcelas enormes do planeta. A revista The Economist apresentou (em inglês, é claro) os seguintes números sobre essa questão: apenas cerca de 25% da população mundial ao menos arranha o inglês.
Muitos outros estão tentando tirar o atraso. Tenho um amigo que viajou para a China para ensinar inglês. Ele dava aulas matinais em parques públicos que atraíam milhares de pessoas dispostas a pagar por elas. Paris há um século era a capital da língua global da elite, o francês. Hoje, as crianças parisienses começam a aprender inglês no jardim-de-infância. David Graddol, do Conselho Britânico, o braço cultural global do governo britânico, afirma que “em uma década, cerca de um terço da população mundial estará tentando aprender a falar inglês”. Por hora, quem não sabe falar inglês está fora do jogo – uma péssima notícia para o Brasil. Em minhas visitas ao país, nos anos 90, encontrei um país monolíngüe. Falar inglês não me levava a lugar nenhum.
É claro que também o Brasil está se globalizando. Mas até a localização do país atrapalha a jornada dos que tentam se tornar trabalhadores globais. Para quem tem essa idéia na cabeça, o melhor lugar para estar não é Bangalore, capital tecnológica da Índia, que Friedman tanto admira. Nem a multinacional, multicultural e multidinâmica Toronto, no Canadá, escolhida por Pico Iyer em seu excelente livro The Global Soul (“A Alma Global”, sem versão em português). Sem dúvida, não há lugar mais apropriado que um pequeno triângulo num continente freqüentemente acusado de estar se tornando asilo de luxo para sua população envelhecida: a região noroeste da Europa, centrada em Londres, Paris e Bruxelas. Essa área é um laboratório de observação do futuro do trabalho globalizado.
Velho mundo, novo mundo
O motivo tem a ver com a velha e fora de moda geografia: em nenhuma outra parte da Terra existem tantos países espremidos num espaço tão pequeno. A Europa Ocidental é desde sempre a região mais interligada do planeta, e não foi por outra razão que a revolução científica começou aqui há 500 anos: grandes pensadores podiam trocar idéias mais facilmente do que em qualquer outra área usando um idioma comum, o latim. Depois da 2ª Guerra, os políticos resolveram derrubar as fronteiras entre os países. O resultado é que, quando tomo um trem de Paris a Amsterdã, jamais sou solicitado a apresentar meu passaporte. Por toda a Europa, linhas de trem ultravelozes estão sendo estendidas. Do centro de Londres ao centro de Paris, hoje leva-se 2h35. A partir de novembro, serão 2h15. As duas cidades estão se tornando gêmeas. Eu me mudei de Londres para Paris há 5 anos, logo após perceber que, se na França eu poderia comprar todos os jornais e revistas em inglês que quisesse, eu bem deveria aproveitar os croissants mais gostosos e aluguéis mais baratos que Paris oferece.
Essa proximidade sem precedentes é um fenômeno tão forte que até as histórias nacionais estão sendo deixadas de lado. Eu escrevo com freqüência para editores alemães cujos avôs teriam metido os meus num campo de concentração se tivessem tido a chance. Mas trabalhadores globais não são racistas, porque não se ganha dinheiro sendo racista. E, como diz um amigo meu que vive na supremamente global Londres, “nesta cidade, o racismo reduz absurdamente o número de pessoas que você pode levar para a cama”. Friedman descreve esse fenômeno de maneira menos prática: “O novo mundo pertence a quem tem talento, não a quem é da panelinha”.
E como os brasileiros ficam nesse processo? Bem, se você quer entrar sozinho na guerra, a melhor aposta é tentar vender sua criatividade. Ou então você pode torcer para que uma empresa nacional entre na competição internacional e o convide para fazer parte da batalha. Infelizmente, as empresas do Brasil têm de superar dois obstáculos cruéis para lutar globalmente. O primeiro é enfrentar a China, algo tão frustrante quanto cair no grupo do Brasil na Copa do Mundo – os chineses são os maiores craques da competitividade. O segundo obstáculo é superar o Estado brasileiro, que não facilita a vida de quem quer participar do mundo plano. O que poderia ser feito? Tudo que ajude as empresas a se tornar mais competitivas – melhorar a estrutura de transportes, desburocratizar a vida de quem quer fazer negócios ou simplesmente ter um sistema judiciário capaz de julgar processos antes que a companhia vá à falência.
Isso tudo importa a você também. Afinal, não são apenas Estados ou empresas que ganham e perdem no novo mundo, mas, principalmente, nós, indivíduos. Cada vez mais, estamos competindo juntos no mesmo mercado. Se eu escrevi esta reportagem, é porque algum jornalista brasileiro perdeu seu lugar. [Nota da Super: não é bem assim. Deixamos de contratar um freelance para fazer a matéria, mas não demitimos ninguém. Ainda.] Se você tem alguma habilidade que pode ser vendida a outro país, você ganha. Se você ficar restrito ao mercado do seu país, você perde. E, se você trabalha em uma fábrica, há uma enorme chance de que alguém na China, ou em breve no Vietnã, tope fazer exatamente o mesmo trabalho por um salário muito menor.
E não é apenas a sua habilidade que definirá seu futuro. Setores industriais inteiros podem desaparecer – o meu, por exemplo: por que pagar por reportagens quando você pode ler coisas interessantes de graça na internet? Por outro lado, novas profissões estão sendo criadas: primeiro veio a onda dos designers de games. Agora é a vez dos otimizadores de ferramentas de busca. A globalização 3.0 está acontecendo numa velocidade nunca antes vista e, como nenhuma outra revolução tecnológica já vista, pode levar alguns de nós a ter várias profissões diferentes no curso da vida! Reclamar é perda de tempo: todos nós teremos de competir globalmente. Mas pelo menos podemos fazer isso da sala de casa – ou encostados num pilar na estação de trem.
Para saber mais
O Mundo é Plano
Thomas Friedman, Objetiva, 2006.
The Global Soul
Pico Iyer, Bloomsbury Publishing, EUA, 2001.