A vez em que Picasso foi acusado de roubar a Mona Lisa
Uma aventura muito louca pelas ruas de Paris

Eram as primeiras horas do dia 5 de setembro de 1911 e a madrugada francesa estava em paz. No dia anterior, o aviador Roland Garros havia quebrado o recorde de altitude em um voo (4.250 metros) e a Marinha francesa havia exibido com orgulho sua frota de 50 navios militares, pronta para uso. Os franceses dormiam tranquilos. Nas ruas de Paris, entretanto, duas figuras se esgueiravam pela noite, tomadas pelo medo, pela ansiedade e pela culpa: o pintor espanhol Pablo Picasso e seu melhor amigo Guillaume Apollinaire.
Picasso e Apollinaire estavam em posse de duas estátuas roubadas do Museu do Louvre, dois bustos ibéricos que faziam parte da coleção fixa. Os artefatos haviam sido enfiados numa valise e, em sua fugaz caminhada noturna, os dois artistas desejavam lhes dar um fim indigno: atirar os bustos no Rio Sena, livrando-se assim das evidências de um crime e proteger-se do rigor da lei.
A cena deve ter sido cômica para quem eventualmente possa ter visto: o robusto Apollinaire e o franzino Picasso tentando carregar a pesada valise entre eles, o objeto suspenso num ângulo diagonal por causa da diferença de estatura entre eles. Acabaram decidindo carregar sozinhos, em turnos.
Mas, talvez por empatia pelas obras que seriam para sempre perdidas, ou então pelo puro medo de serem vistos, os dois desistiram do plano. Resolveram retornar ao bairro de Montmartre com a valise e rever suas opções.
“Eles voltaram às duas da manhã, absolutamente exaustos. Ainda carregavam as malas e seu conteúdo. Tinham vagado para cima e para baixo, incapazes de se livrar de seu pacote. Achavam que estavam sendo seguidos. Suas imaginações criavam mil possíveis acontecimentos, cada um mais fantástico que o outro”, escreveu o jornalista Norman Mailer, que lançou uma biografia de Picasso em 1995.
As duas estátuas já estavam em posse dos dois artistas há alguns meses. O que havia engatilhado esse pânico repentino? Oras, até então, os roubos haviam passado completamente despercebidos. Mas, agora, o Louvre e a polícia francesa estavam em alerta máximo: a Mona Lisa havia sido roubada. E as autoridades estavam loucas para achar um suspeito.
O roubo
Alguns dias antes dessa aventura de Picasso pelas ruas de Paris, o pintor francês Louis Béroud entrou no Louvre e se dirigiu ao Salon Carré, a sala onde ficava a Mona Lisa — ele estava criando uma obra inspirada nela. Mas o quadro de Da Vinci estava misteriosamente ausente da parede. “Onde está La Gioconda?”, perguntou ele ao segurança, um brigadeiro ancião (na época, todos os funcionários de chão do Louvre eram ex-militares). A resposta: “não sei”.
Até aí, poucas novidades. Era comum que quadros fossem retirados para serem fotografados e que os guias não fossem informados, uma bela bagunça. Béroud, então, parou para fumar um pouquinho e depois se dirigiu ao estúdio fotográfico do museu. “Onde está La Gioconda?”, voltou a perguntar. E os funcionários, já sentindo o B.O. chegando, não sabiam o que responder. Como assim onde estava ela?
A polícia foi alertada e a primeira análise logo concluiu: a Mona Lisa havia sido roubada. E pior: o crime havia acontecido dois dias antes e ninguém havia notado. O acontecido era um choque, mas não uma surpresa: a segurança do Louvre na época era famosa por ser incrivelmente frágil. Jornalistas tinham o costume de roubar itens e devolvê-los depois sem serem notados, e há uma história curiosa de um repórter que teria se enfiado num sarcófago para passar a noite escondido, sem ninguém desconfiar (e ninguém desconfiou).
Pelas características do roubo, a polícia concluiu que não se tratava de um ladrão aleatório: o responsável já havia andado bastante por aqueles corredores, talvez até trabalhado ali. A moldura de segurança do quadro, que havia sido recentemente instalada, tinha sido deixada para trás em uma escada acessível somente a funcionários.
Quem poderia ter roubado a Mona Lisa?
Pablo Picasso, ladrãozinho?
O sumiço da Mona Lisa logo chegou aos jornais. E Picasso e Apollinaire, de posse de seus bustos ibéricos roubados, entraram em pânico: eles não tinham surrupiado a Mona Lisa nem sabiam nada a respeito do crime, mas e se as investigações levassem a polícia à sua porta? Ambos eram, afinal, imigrantes (Picasso espanhol e Apollinaire italiano), e temiam o que poderia acontecer se fossem descobertos.
No jornal, a polícia pedia informações e oferecia recompensas. O cerco parecia se fechar. E foi aí que os pintores trapalhões saíram na calada da noite para tentar jogar as estátuas no rio e acabaram desistindo.
Para entender toda essa história, precisamos voltar alguns anos antes, para 1907, quando Apollinaire tinha como secretário um jovem belga chamado Géry Pieret. Certa noite, enquanto Picasso, Apollinaire e Pieret jantavam, os pintores revelaram sua admiração pelas tais esculturas ibéricas expostas no Louvre. Pieret disse aos dois que a segurança do Louvre era terrível e que ele facilmente conseguiria roubar os itens para os amigos.
E assim foi. No mês seguinte, Pieret foi ao Louvre, colocou uma estátua no casaco e saiu andando com ela. Alguns dias depois, repetiu o feito com um segundo busto. Picasso pagou a ele 50 francos pelo feito. Embora Apollinaire tenha ficado com uma das estátuas por um tempo, eventualmente as duas ficaram sob a posse de Picasso, que as usou como inspiração para seu quadro Les Demoiselles d’Avignon, obra de 1907 que retrata cinco prostitutas nuas num bordel (e é um de seus trabalhos mais famosos e importantes).
O próprio Picasso afirmou, sobre o quadro, que duas das mulheres retratadas haviam sido inspiradas nos bustos ibéricos que ele havia visto no Louvre. O que ninguém suspeitava é que os tais bustos já não estavam mais no museu.
Quatro anos depois, quando a história do roubo da Mona Lisa explodiu nos jornais, o medo veio. E se Pieret tivesse sido o responsável pelo roubo? Ele poderia ser interrogado e acabar revelando que Picasso e Apollinaire haviam pagado para que roubasse as estátuas.
Pablo Picasso chora no julgamento
Na manhã de 5 de setembro, após voltar do passeio noturno malfadado, Apollinaire decidiu ir à imprensa. Visitou a sede do periódico Paris Journal, entregou as estátuas e disse que um conhecido, para o qual inventou um nome falso, costumava roubar itens do Louvre para ele e Picasso.
A imprensa não perdeu tempo em noticiar o furo. “L’Affaire des Statuettes” (“O Caso das Estatuetas”), estampavam as manchetes. Choque na sociedade francesa. Apollinaire logo foi levado para a delegacia prestar depoimento. Dois dias depois, os oficiais visitaram o apartamento de Picasso.
O pintor, que gostava de acordar tarde, foi despertado às 7 da manhã pelos policiais batendo à sua porta. Tremendo, precisou que sua namorada abotoasse sua camisa ao se vestir. Sem viatura disponível e com a polícia se negando a pagar um táxi, Picasso foi levado para a delegacia no ônibus que ia de Pigalle para Halle aux Vins. O evento foi tão traumático que Picasso nunca mais pegou esse ônibus na vida. Ah, e ele foi obrigado a pagar a própria passagem!

Pouco depois, no julgamento, Picasso e Apollinaire foram colocados frente a frente. Confusos e apavorados, os dois disseram histórias contraditórias e trocaram acusações. Apollinaire, que havia sido interrogado sozinho antes, já havia confessado tudo, mas Picasso estava convicto em negar qualquer envolvimento. No que deve ter sido uma cena deveras interessante para os policiais, os dois artistas choraram e imploraram por perdão.
Anos depois, durante uma conversa com o poeta Gilbert Prouteau, Picasso admitiu: “Quando o juiz me perguntou: ‘Você conhece este senhor?’, eu respondi: ‘Nunca vi esse homem’. Vi a expressão de Guillaume mudar. O sangue sumiu do seu rosto. Ainda sinto vergonha”.
Picasso foi solto, mas proibido de deixar Paris, enquanto Apollinaire ainda ficou detido por uma semana. A amizade acabou ali. Nas semanas seguintes, o pintor espanhol tornou-se paranoico, com medo de ser preso novamente. Saía apenas à noite e, convencido de que estava sendo seguido, trocava de táxi para despistar seu perseguidor. Dormia de forma agitada, sempre esperando uma nova batida em sua porta.
O verdadeiro ladrão
Quem de fato roubou a Mona Lisa foi um carpinteiro italiano chamado Vincenzo Peruggia, que trabalhava no Louvre, onde criava molduras novas com painel de vidro para pinturas que eram consideradas alvos de vândalos — na época, o museu passava por uma onda de crimes do tipo, com pessoas estranhas vindo jogar itens ou tentar fazer cortes nos quadros. O pior de Paris é o parisiense.
No dia 19 de agosto de 1911, ele se escondeu em um armário durante o período de visitação e, após o museu fechar, retirou o quadro de Da Vinci da parede, separou-o da moldura com uma chave de fenda e tentou fugir pela tal escada de acesso. No entanto, a porta do térreo estava trancada, de modo que ele ficou preso ali. Pela manhã, porém, foi libertado por um encanador que não suspeitou de nada. E assim Peruggia saiu pela porta da frente carregando o item no casaco.
Peruggia, assim como todos os outros funcionários do museu, foi interrogado pela polícia sobre o caso. O oficial de polícia o entrevistou em seu próprio apartamento, enquanto a Mona Lisa repousava insuspeita dentro de um armário. O carpinteiro não foi considerado pessoa de interesse.
Uma das teorias diz que Peruggia roubou a Mona Lisa porque ela o lembrava de uma de suas antigas amantes, Mathilde. Outra diz que ele tinha intenções patriotas: queria levar de volta o quadro para a Itália após Napoleão tê-lo roubado. Mas o mais provável é que a motivação fosse dinheiro: Peruggia pretendia cobrar resgate pela obra.

Vinte e sete meses se passaram com a Mona Lisa desaparecida e nenhuma pista concreta de quem a tivesse levado. Peruggia mantinha o quadro em uma caixa debaixo do seu fogão. Foi só em novembro de 1913 que ele tentou vender a obra para um comerciante de arte italiano, sob o argumento de que a obra deveria “voltar para sua terra”. A polícia foi chamada, Peruggia foi preso e a Mona Lisa foi devolvida — ela voltou à exibição no dia 4 de janeiro de 1914.
Após ficar preso por sete meses esperando o julgamento, Peruggia foi condenado em junho de 1914 a um ano e 15 meses de prisão. Em julho, estourou a Primeira Guerra Mundial e a pena foi reduzida para sete meses e nove dias. O crime de Peruggia repercutiu internacionalmente e quase enlouqueceu Picasso.
Peruggia voltou para seu vilarejo em Dumenza, na Itália, onde foi celebrado como herói. Em 1921, casado, voltou para a França com um novo primeiro nome: Pietro. Em 1923, decidiu levar a esposa para um passeio especial: foram juntos ao Museu do Louvre. Lá, eles andaram pelos corredores apinhados de estudantes e turistas, por entre os Géricaults e os Bellinis, até entrarem na Grand Galerie, onde a Mona Lisa, que uma vez repousou em seu armário e debaixo de seu fogão, estava de sorriso aberto a lhes esperar.