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AK-47 – A arma do século

Pelo cano do fuzil AK-47, que tem mais de 70 anos nas costas, passou muito mais do que bala. Passou o século 20.

Por Maria Carolina Maia
Atualizado em 2 dez 2019, 17h12 - Publicado em 30 jun 2007, 22h00

“Me chamaram pra plantar / na boca de AK-47. / Fuzil a noite toda / tem mulher à vera, / tem muito dinheiro / (…) E, quando os vermes brota, / o bagulho fica sério./ Eu pego o meu AK, é o meu critério.”

Os dados oficiais não dizem quantos são, mas notícias de jornais e letras de funks e raps proibidos, como esse, do PCC, mostram que os fuzis AK-47 já chegaram ao Brasil. É difícil, aliás, dizer aonde a arma não chegou. Criado na Rússia comunista, o AK-47 apareceu em 92 países, participou de 90% das batalhas da 2ª metade do século 20 (às vezes dos dois lados da disputa), e foi a arma usada para matar pelo menos 7 milhões de pessoas. Venceu os rifles americanos no Vietnã, substituiu a lança de tribos guerreiras da África, virou ícone da bandeira de Moçambique, monumento na Ni­­­carágua, bombou o cartel do narcotráfico colombiano e, hoje, está nas mãos de terroristas islâmicos e traficantes cariocas. Aos 60 anos, o AK-47 conta a história do século 20.

Na verdade, não todo o século 20 – mas a parte da 2ª Guerra para cá. Na década de 1940, os desenhistas de armas se deram conta de que as metralhadoras fixadas em tripés, muito usadas nas trincheiras da 1ª Guerra, estavam ul­tra­passadas. Com a invenção dos tanques blindados e da artilharia de longo alcance, quem ficasse parado num campo aberto levaria bomba na hora. Ao contrário dos conflitos demorados da 1ª Guer­ra, os novos combates eram rápidos, urbanos, com tropas móveis que se expunham por pouco tempo à procura de alvos também móveis. Foi assim que surgiu o primeiro rifle de assalto, o SturmGewehr, uma arma alemã leve e com poder de fogo intenso e instantâneo.

Quando a guerra acabou e o domínio da URSS se estendeu até a Alemanha, o líder soviético Joseph Stálin decidiu criar uma arma automática parecida, que fosse usada por todos os países comunistas. Com uma produção em larga escala, ficaria mais barato fabricar as armas e as balas. Para decidir qual seria o rifle de assalto que se tornaria a cara da URSS, o governo comunista promoveu, em 1947, um concurso entre desenhistas. O ganhador foi um ex-soldado da 2ª Guerra que tinha começado a desenhar a arma 5 anos antes, quando estava de cama no hospital.

Em 1941, Mikhail Kalashnikov tinha 22 anos e trabalhava com mecanismos dos tanques soviéticos da 2ª Guerra. Com a invasão nazista a Moscou, teve que ir para dentro dos tanques lutar contra as tropas de Hitler. Os alemães bombardearam 90% da cidade, e, no meio dela, o tanque de Kalashnikov. Ele teve o ombro direito destruído e foi mandado para o hospital, onde ficou por quase um ano. Sem nada para fazer, passou o tempo desenhando armas. “Uma vez o soldado da cama ao lado me perguntou: ‘Por que nós temos só um rifle para 2 ou 3 soldados enquanto cada alemão tem armas automáticas?’ Então resolvi desenhar uma para nós”, disse ele, em 2003, numa entrevista para o jornal britânico The Guardian.

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O projeto do Automático de Kalashnikov, de 1947, (daí AK-47) é quase um plágio do fuzil alemão SturmGewehr. Sua capacidade, alcance e peso também não são tão diferentes de outros fuzis de assalto, como os americanos AR-10 e o M-14, que dariam origem ao AR-15 e ao M-16. O traço particular do rifle russo é a simplicidade. Feito de apenas 8 peças, pode ser montado em menos de um minuto por qualquer criança que saiba brincar de Lego (não é à toa que crianças estão freqüentemente entre os usuários). Isso permite que um soldado no campo de batalha conserte a sua arma com a peça do primeiro fuzil que encontrar pela frente. Além de leve e fácil de manusear, o AK é praticamente indestrutível – “à prova de soldados”, como se diz na linguagem dos milicos. Pode rolar na areia, cair num barril de cerveja, cair na lama e, mesmo assim, dar centenas de tiros por minuto. Uma arma ideal para ser u­sada em guerrilhas do terceiro mundo.

Com tantas vantagens, o AK conquistaria Stálin. Teve licenças de fabricação distribuídas de graça a países comunistas do Leste Europeu, como Polônia, Hungria, Bulgária, Alemanha Oriental e Iugoslávia. Também passou a ser fabricado na Coréia do Norte e na China. Exemplares foram ofertados a qualquer grupo que pretendesse implantar o comunismo em seu país. E várias modificações o deixaram mais sofisticado, como as versões AKM, AK-74 e o AK-103.

O mais irônico é que o homem que criou a principal arma comunista havia tido a família destruída pelo próprio regime. Nas décadas de 1920 e 1930, quando Joseph Stálin dividiu as terras do país entre o povo, mandou para a Sibéria cerca de 25 milhões de agricultores considerados ricos – aqueles que tinham em casa mais animais do que as con­venções comunistas permitiam. Mes­mo que essas famílias tivessem mais bocas para alimentar – no caso de Kalashnikov, a mãe teve 18 filhos, dos quais 8 sobreviveram. Kalashnikov teve que fugir duas vezes do gulag, até arranjar documentos falsos e conseguir um lugar no Exército. Ele nunca culpou Stálin pela morte da família. “Eu achava que a culpa cabia a funcionários locais”, diz ele nas suas memórias.

Yankees, go home

Enquanto o oficial Kalashnikov desfrutava do sucesso na hierarquia militar so­viética, o rifle decidia guerras pelo mundo. A primeira em que ele teve um papel importante foi a Guerra do Vietnã. O AK-47 foi essencial para o Vietnã do Norte invadir o Laos, em 1958, com apoio da URSS. Seis anos depois, quando os EUA enviaram tropas para livrar o sul do Vietnã do comunismo, o AK-47 deu uma boa surra nas armas americanas. Na selva tropical do Vietnã, o AK-47 resistia a lama, poeira e era uma arma ágil para disparos de perto. Já o M-16 apresentou vários problemas de carregamento e disparo: não tolerava o contato com sujeira. “Enquanto o AK-47 conquistou a reputação de indestrutível, o M-16 ficou com fama de arma exigente, que precisou de várias modificações e que tinha um sistema de gases que entupia com freqüência”, afirma Ronaldo Leão Correa, diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Os militares dos EUA baseavam suas ações na teoria do dominó: se os comunistas tomassem o Vietnã, recém-libertado da França, a URSS acabaria influenciando os países vizinhos. Mas quem acabou conquistando o planeta num efeito dominó não foi o comunismo – foi o AK-47 (veja o mapa acima). “Nos anos que se seguiram à Guerra do Vietnã, o AK iria se espalhar pelo planeta, dando poder e prestígio a traficantes, assassinos e terroristas que mudariam a face do mundo”, afirma o jornalista Larry Kahaner, autor do livro AK – The Weapon That Changed the Face of War (“AK – A Arma Que Mudou a Face da Guerra”, sem edição brasileira).

Animados com a surra dada nos americanos no Vietnã, os soviéticos decidiram avançar sobre o Afeganistão, expandindo o comunismo pelo Oriente Médio. Primeiro, a URSS forneceu a arma para o país logo que ele se declarou de esquerda, em 1978. Um ano depois, o apoio virou invasão. As tropas soviéticas invadiram o Afeganistão e puseram no comando um político aliado. A URSS influenciou o país por 10 anos, até ser expulsa pelos mujahedin, os guerreiros islâmicos supridos e treinados pelos EUA. Mas o AK ficou para sempre na cultura afegã. “Na 1ª série, as crianças aprendiam o alfabeto assim: ‘J de Jihad – nosso propósito no mundo; I de Israel – nosso inimigo; K de Kalashnikov – nós venceremos; M de Mujahedin – nossos heróis; T de Talibã’ ”, conta a jornalista norueguesa Asne Seierstad no livro O Livreiro de Cabul. Hoje, a arma integra o arsenal dos terroristas islâmicos – Bin Laden costuma ser fotografado com um AK-47 nos braços.

Pergunte ao pó

Durante a Guerra Fria, a URSS montou imensos arsenais nos países do Leste Europeu. Se houvesse uma guerra com a Europa, a barreira já estava montada e as armas, prontinhas. Com o fim das repúblicas socialistas, tanques, helicópteros e milhões de AK-47 ficaram sem utilidade. Esse é o grande motivo de a arma ter sido a mais usada nas guerrilhas das últimas décadas. Com uma oferta muito maior que a procura, comprar um AK-47 ficou barato. As armas acabaram vendidas ilegalmente pelos próprios militares, ganhando o planeta de vez. “Houve um sumiço de estoque, o mercado negro cres­ceu e também a violência na África”, diz Domicio Proença Jr., professor de Estudos Estratégicos da UFRJ.

É por isso que os principais traficantes de armas eram do Leste Europeu – como o ucraniano Victor Bout, que inspirou o personagem Yuri Orlov, protagonista do filme O Senhor das Armas. Depois de conseguir estoques com os militares comunistas, os traficantes vendiam os armamentos a rebeldes africanos em troca de diamantes, pro­duto a­bun­dante na Á­frica. O pior aconteceu na Li­béria. Cabeça da Frente Patriótica Nacional do país, o rebelde Charles Taylor comprou carregamentos de AKs e chegou a armar crianças para a sua luta pelo poder. Taylor conseguia diamantes em países vizinhos, como Guiné e Togo, e os trocava por fuzis. De tão abundante, o AK chegou a ser vendido a US$ 10 ou trocado por um cacho de bananas no mercado liberiano. “Em alguns países africanos, as pessoas chamam o AK de African Credicard, porque ter um AK é sinônimo de so­­brevivência”, afirma Kahaner.

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Na América do Sul, o fuzil foi comprado com a mercadoria abundante por aqui: cocaína. O AK chegou à América na década de 1970 pela Nicarágua. Depois de 40 anos de ditadura da família Somoza, o presidente Anastasio Somoza foi deposto pela Frente Nacional de Liberação Sandinista, inspirada na figura do general Augusto Sandino. Os rebeldes de esquerda, armados com AKs, tomaram o poder e construíram na capital Manágua uma imensa estátua de um guerrilheiro erguendo um AK. “No final, só restarão trabalhadores e camponeses”, diz a frase de Sandino impressa no monumento.

Além de trabalhadores e camponeses, porém, os 40 anos de disputas internas na Nicarágua deixaram dezenas de milhares de AKs sobrando, que passaram aos vizinhos Honduras e El Salvador, e daí para traficantes do Peru, Colômbia e Brasil. “O AK-47 é muito barato: de 5 a 10 vezes mais que um M-16 ou um AR-15”, afirma Proença Jr. Um exemplar completo, com 5 carregadores, baioneta, bandoleira e kit de manutenção sai por US$ 90 nas fábricas da China. Além disso, é uma arma que impressiona. “Quanto mais mortífera a arma, mais admiração causa nos pares”, diz a antropóloga Alba Zaluar, especialista em violência urbana.

O contrabando de AK-47 prossegue. Ainda alimentado pelo antigo estoque soviético, e também por exemplares pirateados, o mercado negro representa de 10 a 20% do comércio total de pequenas armas, movimentando US$ 1 bilhão ao ano, de acordo com a ONU. Também segue firme o ex-soldado Mikhail Kalashnikov. Com 87 anos, ele leva uma vida tranqüila na Rússia, numa casa dentro de um bosque de pinheiros e à beira de um lago nos montes Urais.

A arma dos pobres

Guatemala
Durante a briga entre revolucionários sandinistas e a ditadura dos Somoza, no fim da década de 1970, o AK-47 chegou à América. Com o fim do conflito, o fuzil foi vendido por cocaína ao Brasil, ao Peru e à guerrilha da Colômbia, onde substituiu os rifles belgas FN-FAL.

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Venezuela
Em 2005, Hugo Chávez adquiriu da Rússia 100 000 AKs. Ele já anunciou a intenção de construir duas fábricas de AK-103 nos arredores de Caracas, projeto que deve custar US$ 300 milhões.

Vietnã
O primeiro sucesso do AK-47 foi na Guerra do Vietnã. Armados com o fuzil russo, os vietcongues deram um banho nos rifles americanos, que não resistiam à lama da floresta tropical.

África
Com o fim da URSS, enormes estoques da arma foram parar nas guerrilhas da África. Na Libéria, a arma sustentou o governo psicopata de Charles Taylor. Em Moçambique, virou ícone da bandeira nacional.

Os países que produziram o AK-47
Albânia, Polônia, Egito, Hungria, Bulgária, Alemanha Oriental, Iugoslávia, Coréia do Norte, China, Índia, Iraque, Romênia, Sérvia e Rússia.

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(Eber Evangelista/Superinteressante)

1. Corpo
É feito de chapa de aço estampada, que deixa a arma leve, barata de ser fabricada e resistente.

2. Gatilho
Dá para optar pelo tiro simples, quando cada aperto no gatilho provoca um disparo, e o automático, quando a arma atira sem parar. O idioma em que essas opções são escritas mostra a origem da arma.

3. Cartucheira
A cartucheira em forma de banana, peça mais característica do AK-47, tem capacidade para 30 balas, que acabam em menos de 3 segundos se a arma estiver no modo automático.

4. Tiro
A bala deixa o cartucho a 900 m/s, acompanhada de gases quentes e sob pressão. Parte desses gases volta para o pistão: o próprio gás gerado no cartucho reengatilha a arma.

5. Pistão
A força do AK vem de um pistão movido a gás. A cada disparo, o pistão é forçado para trás. Ao empurrar o pistão, um jato gasoso também aciona um dispositivo que joga para fora o cartucho vazio.

AK-47 – FICHA TÉCNICA

Peso (vazio) – 3,8 kg
Peso (carregado) – 4,3 kg
Alcance com precisão – 500 m
Alcance sem precisão – 900 m
Comprimento – 87 cm
Tiros por minuto – 600
Peso da munição – 8 g
Calibre – 7,62 x 39 mm

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