Como são feitas as ilustrações de animais pré-históricos? Paleoartista explica
Aquilo que era fragmentos de ossos vira uma criatura realista no papel. O trabalho exige rigor científico – e um pouco de imaginação.

Ilustrar um animal que viveu há milhões de anos pode parecer impossível. Restaram apenas ossos fragmentados, impressões em rochas e enormes lacunas sobre suas cores, texturas e comportamentos.
Ainda assim, essas criaturas extintas ganham forma em livros, museus e documentários. O trabalho de reconstrução cabe aos paleoartistas, profissionais que unem ciência e arte para traduzir fósseis em imagens compreensíveis para o público.
No Brasil, um dos principais nomes da área é Felipe Alves Elias, biólogo, mestre em paleontologia e museólogo do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP).
Ele acaba de lançar “Animais Pré-Históricos do Brasil: O Guia Ilustrado”, obra pioneira que reúne quase mil espécies que habitaram o território brasileiro ao longo de milhões de anos. O livro é resultado de 20 anos de pesquisa e 15 anos de ilustração contínua.
Durante sua formação acadêmica e profissional, Elias percebeu que boa parte do conteúdo consumido sobre paleontologia era condicionado ao material importado – livros, documentários e publicações em geral que, naturalmente, representavam uma realidade distante da brasileira.
“Não tínhamos muito material disponível sobre nosso patrimônio. O Brasil tem a maior diversidade biológica, e para compreender essa riqueza atual também precisamos conhecer seu passado. Senti essa lacuna e tentei entregar aos leitores algo que eu gostaria de ter tido quando era mais jovem, mostrando que também temos uma impressionante diversidade de fósseis e espécies”, conta à Super.
Do fóssil ao papel
O biólogo descreve o processo de reconstrução como “montar um quebra-cabeça com a maioria das peças faltando – e sem a figura da tampa da caixa”.
Tudo começa pelo fóssil, mesmo quando fragmentado. O ponto inicial, segundo ele, é responder a duas perguntas: qual a natureza do organismo e qual o grau de preservação do material. “Quanto mais preservado, mais informação ele me dá. Se for muito fragmentado, preciso encontrar formas de complementar essa informação de maneira mais ostensiva.”
A partir daí, entra em cena a biologia comparada. O paleoartista busca referências em fósseis aparentados e também em animais vivos. “Se eu tenho um fóssil de dinossauro incompleto, primeiro tento localizar espécies semelhantes com esqueletos mais preservados. Esgotadas essas possibilidades, recorro aos organismos atuais.”
Elias costuma dizer que a natureza funciona como um roteiro que se repete: os atores mudam, mas os papéis permanecem. Por isso, mesmo sem olhar diretamente para o passado, é possível estudar espécies de hoje e entender como desempenham funções semelhantes às de seus antepassados.
Com base no esqueleto, também é possível estimar músculos e volumes. “Dependendo da estrutura, consigo projetar o tamanho aproximado dos músculos e como se conectam”, explica.

Nessa etapa, as escolhas não são arbitrárias. Partes delicadas, como a pele, quase nunca se preservam. O paleoartista então se apoia em equivalentes atuais. “Se eu lido com um crocodilo fóssil, posso usar jacarés e crocodilos de hoje para entender a lógica das escamas e aplicar ao fóssil. O mesmo vale para mamíferos e outros organismos.”
A lógica se repete com as cores. Como o pigmento raramente se preserva, não há como saber a coloração exata do animal. “Na natureza, a cor não é apenas estética; ela tem funções biológicas, como camuflagem e comunicação”, explica.
A partir daí, ele busca analogias. Se uma espécie fóssil ocupava papel semelhante ao de um animal vivo, ele pode usar padrões modernos como referência.
“O resultado nunca é exato. Só poderíamos bater o martelo se tivéssemos o exemplar vivo. Mas conseguimos chegar a interpretações plausíveis e coerentes com o que a ciência conhece hoje.”

Além do estudo comparativo, cada reconstrução envolve uma longa pesquisa bibliográfica.
“Muitas vezes trabalhei com xerox antigas, fotografias com qualidade ruim de fósseis publicados em artigos de difícil acesso. Em vários casos, era a primeira vez que aquele organismo ganhava forma em ilustração fora do meio acadêmico. Esse aspecto foi muito marcante para mim.”
Elias defende que a paleoarte possui um papel educativo e reflexivo: “Mais do que saciar a curiosidade por essas criaturas tão diferentes do que estamos habituados, essas imagens ajudam a pensar sobre a biodiversidade atual.”
“Dinossauros viveram 160 milhões de anos e desapareceram. Nós estamos aqui há apenas 200 mil anos e já causamos impactos significativos. Isso nos traz algumas reflexões sobre como estamos conduzindo nossas ações.”
Ele também lembra que o cenário científico brasileiro mudou muito nas últimas décadas. “Até os anos 80, o Brasil tinha apenas duas espécies de dinossauros descritas. Hoje, já são quase 80”.
O avanço se deve não apenas ao crescimento acadêmico, mas também a fatores culturais. “O impacto do filme Jurassic Park, em 1993, foi enorme”. Segundo ele, a franquia “deu uma projeção e escancarou esse assunto para a sociedade brasileira, de uma forma que não tinha acontecido até então”.
“Isto criou uma demanda de consumo. As pessoas começaram a se interessar pelo tema, consumir conteúdos, o que estimulou a vinda de livros e materiais. Ao mesmo tempo, essa geração também começou a pensar na possibilidade de atuar no campo da paleontologia.”
Esse movimento resultou na formação de novos museus, laboratórios e programas de pós-graduação. “Hoje temos pesquisadores de excelência, com reconhecimento internacional, embora ainda haja muito a avançar. É animador ver esse crescimento e saber que o Brasil ainda guarda muitas descobertas a serem feitas.”