Desbravadores
Em 1930, os uruguaios receberam seleções que vieram de navio para a primeira das Copas. O motivo? Eles eram a maior potência do futebol mundial
Aproximava-se o verão na Barcelona de 1929. Mas, no elegante Salón Maria Cristina, da prefeitura local, mulheres desfilavam com casacos e adereços de pele, e os homens com terno, gravata e lenços alvos saindo calculadamente para fora do bolso do paletó. Ali, sem grande alarde, representantes de associações futebolísticas de 23 países, quase todas da Europa e das Américas, ratificaram o antigo desejo de realizar um torneio mundial entre seleções de futebol e escolheram o Uruguai como sede.
Na época, os uruguaios tinham um jogo de dribles e tabelas curtas que desconcertava rivais do outro lado do Atlântico. Além disso, o país vivia, desde o início do século 20, um período de enormes avanços sociais, graças aos quais chegou a ser conhecido como a “Suíça da América”. A euforia tinha repercussões no futebol com as duas medalhas de ouro conquistadas pela seleção uruguaia nos jogos de 1924 e 1928, que originaram o apelido de Celeste Olímpica. Sediar a primeira Copa do Mundo, no ano em que o país comemoraria os cem anos de sua primeira Constituição (daí vem o nome do estádio Centenário), era visto como uma forma de mostrar a todos esse país pujante escondido no sul do mundo. As reuniões no salón ocorreram entre os dias 18 e 20 de maio de 1929 no 18º Congresso da Fifa. A data por si só, a 14 meses do torneio, evidencia o abismo entre a preparação da primeira Copa e da 20ª edição – o Brasil foi eleito há sete anos. Horas antes do congresso, o parlamento uruguaio aprovou gastos de 500 mil pesos para o torneio (o equivalente hoje a quase US$ 7 milhões), dos quais 200 mil seriam destinados à construção de seu estádio principal. Com esse trunfo em mãos, os representantes uruguaios na Fifa ainda garantiram o pagamento dos custos de viagem e estadia a todas as seleções que participassem. O então presidente da Fifa, Jules Rimet, também gostava da ideia de levar o torneio para fora da Europa, o que foi determinante para a escolha do Uruguai.
Mas é difícil acreditar que os europeus que queriam receber o mundial (Espanha, Holanda, Hungria, Itália e Suécia) foram realmente convencidos: nenhum disputou o torneio, em uma espécie de boicote não declarado. Qualquer país filiado à Fifa podia se inscrever no Mundial e não havia eliminatórias. A data limite de 28 de fevereiro precisou ser prorrogada até o final de maio por falta de interesse das federações. Antes do prazo acabar, com o lobby de Jules Rimet, quatro europeus se dispuseram a atravessar o Atlântico (Bélgica, França, Iugoslávia e Romênia), além dos oito países das Américas (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Estados Unidos, México, Paraguai e Peru). A odisseia foi feita a bordo de transatlânticos, e delegações adversárias e árbitros dividiam o mesmo convés. Mexicanos tiveram de navegar até Nova York, de onde rumaram para a América do Sul no mesmo barco dos ianques. Os romenos, a maioria empregados de uma companhia de petróleo britânica instalada na Romênia, tiveram de receber o aval do rei Carol 2º para poder sair do país sem perder o emprego. Embarcaram em um vagão de segunda classe até Gênova, onde pegaram o navio SS Conte Verde. O transatlântico parou na costa da França, onde coletou franceses e o próprio Jules Rimet, cuja bagagem continha a taça que, em 1946, levaria seu nome – até então, a peça de ouro se chamava Vitória. Na próxima parada, Barcelona, embarcaram os belgas. O navio ainda demoraria quase duas semanas para chegar à América, período no qual as seleções se preparavam com treinos improvisados no convés. Os iugoslavos foram os únicos europeus que viajaram em outro navio.
Seleção de cariocas
No Rio, os brasileiros pegaram o mesmo SS Conte Verde que saíra da Europa. Em Santos, embarcou o único jogador de clube paulista a ir à primeira das Copas, Araken Patuska. Havia forte rivalidade entre dirigentes cariocas, que controlavam a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) – entidade extinta em 1979 que coordenava todos os esportes no Brasil -, e paulistas, o que fez com que o Estado boicotasse o torneio. Patuska só paticipou da competição porque estava brigado com a diretoria do Santos. Por causa da rusga, o Brasil não teve alguns de seus principais atletas, como o lendário Arthur Friedenreich, autor de 554 gols em 561 partidas na carreira. Os navios com as seleções atracaram no porto de Montevidéu no início de julho de 1930 – e os uruguaios ainda lutavam para colocar o Centenário de pé. Inicialmente, todos os jogos seriam realizados lá, mas a arena não ficou pronta. Oito jogos da fase de grupos foram realizados nos estádios Parque Central, que até hoje é a sede do Nacional, e Pocitos, demolido em 1933. A cerimônia de abertura, um mero desfile das delegações, aconteceu em 18 de julho, quando o Centenário finalmente ficou pronto – ou quase pronto: havia cimento fresco em partes do estádio e andaimes. Foi também a estreia dos uruguaios, diante do Peru. Um a zero apertado para a Celeste, em meio a uma atmosfera caótica. Torcedores denunciaram cambistas que inflacionaram o preço dos ingressos, houve tumulto dentro e fora do estádio e truculência policial. Nada disso ofuscou a emoção de quem conseguiu entrar no Centenário. Jules Rimet disse que contemplar o estádio lotado foi uma das sensações mais intensas de sua vida. Dias depois, os uruguaios goleariam a Romênia e confirmariam a classificação. “Os jogadores uruguaios me deleitaram com seu jogo”, disse o goleiro Lapesnau, após levar quatro gols.
Os donos da casa eram um dos cabeças-de-chave, junto com Argentina, Brasil e EUA. Os quatro europeus ficaram no segundo pote, e os demais sul-americanos no terceiro. Essa divisão fazia sentido: mesmo que na Europa se praticasse futebol há mais tempo, o continente americano era superior naquele momento. Nos EUA, o futebol já era profissional antes mesmo do Uruguai, que só profissionalizou o esporte em 1932. No início do século 20, havia a ideia de que era uma desonra praticar esporte por dinheiro, e a Copa de 1930 ainda teve resquícios dessa ideologia. Os ianques fizeram jus a seu cartaz, vencendo Bélgica e Paraguai por 3×0 e avançando às semifinais. As vitórias fizeram o The New York Times estampar que a seleção era a favorita. O Brasil provavelmente teria se classificado se os paulistas tivessem jogado. Na estreia, levou 2×1 dos iugoslavos. A derrota praticamente eliminou os brasileiros, pois o grupo era um triangular complementado pela fraca Bolívia. Como os iugoslavos bateram os bolivianos, o último jogo brasileiro foi melancólico, apesar dos 4×0 sobre os andinos. No Brasil, jornais transmitiam os jogos com alto-falantes nas ruas, divulgando informações que chegavam de telegrama, numa espécie de minuto-a-minuto ancestral. Em frente às redações paulistanas, a eliminação “carioca” chegou a ser comemorada. A Argentina se classificou e contou com uma ajuda insólita da arbitragem brasileira. No jogo contra a França, os hermanos venciam por 1×0 quando Langiller apareceu cara a cara com o arqueiro argentino. O juiz Almeida Rêgo encerrou a partida nesse exato instante – só que ainda faltavam seis minutos. O árbitro voltou atrás, mas a França não conseguiu marcar. Nas semifinais, a escola riopratense confirmou seu favoritismo.
As seleções vizinhas venceram seus jogos por 6×1 sobre os iugoslavos e norte-americanos. Disputar o primeiro mundial acirrou a rivalidade já existente. Para apitar a final, o belga John Langenus exigiu um seguro de vida e um navio à sua espera no porto para fugir rapidamente em caso de vitória da Argentina. Não foi necessário: os uruguaios venceram por 4×2, numa disputa em que a bola do jogo pode ter feito a diferença. Naquela época, não havia um esférico oficial da Copa. Os argentinos traziam uma bola; uruguaios, outra. A solução foi jogar um tempo com cada. O primeiro tempo, com bola argentina, terminou 2×1 para a Argentina. No segundo, com bola uruguaia, a Celeste virou o jogo e garantiu o título. A taça foi erguida pelo capitão, José Nasazzi, que havia sido cortador de mármore antes de vestir a camisa celeste. O meia José Leandro Andrade era engraxate e se tornou o primeiro ídolo negro do futebol. Nasciam ali heróis populares de um esporte que, até então, era dominado pelos ricos. Numa história familiar para nós, brasileiros, a primeira Copa extrapolou seu orçamento de 500 mil pesos, totalizando 800 mil pesos, o equivalente hoje a US$ 10,6 milhões, corrigidos pela inflação. A metade foi investida no Centenário, que ainda é o principal estádio uruguaio. Com o custo da Copa de 30, não dá para erguer nem um terço das arquibancadas temporárias do Itaquerão.
RADIOGRAFIA DA COPA DE 30
Data – 13 de julho a 30 de julho de 1930
Seleções participantes – 13
Jogos – 18
Campeão – Uruguai
Artilheiro – Guillermo Stábile, da Argentina (8 gols)
Cidades-sede – Apenas Montevidéu
Estádios – Centenário, Parque Central e Pocitos
Estádios construídos para a Copa – Centenário
Gastos públicos – 800 mil pesos (US$ 10,6 milhões hoje)
Arrecadação com bilheteria – 255 mil pesos (US$ 2,98 milhões hoje)
Era tudo diferente
A Copa teve apenas uma cidade-sede.
Transmissão só por rádio e, mesmo assim, apenas para Uruguai e Argentina.
Não havia nem bola oficial, quanto mais qualquer outro tipo de produto licenciado.
Não aconteceu nenhum jogo noturno. Mesmo o Centenário, construído especialmente para a Copa, só foi ter iluminação em 1932.
Jogadores de vários países não eram profissionais, inclusive das melhores seleções, como Uruguai e Argentina. Eles já recebiam para jogar, mas era disfarçado.
É tudo igual
O governo precisou se comprometer com a Fifa em cobrir custos do evento, embora fossem bem menores.
A Copa motivou a construção de um grande estádio, o Centenário.
Destacar-se no torneio podia render um bom contrato na Europa. O artilheiro da Copa, Guillermo Stábile, foi contratado pelo Genoa, da Itália. Outro destaque argentino, Luis Monti, foi para a Juventus após receber oferta de US$ 5 mil mensais.
O Uruguai era um país que tomava medidas arrojadas. Se hoje é pioneiro na legalização da maconha, em 1930 era um dos primeiros países do mundo a aceitar o divórcio pela simples vontade da mulher.
Já havia patrocínio a seleções. O Brasil recebeu a doação de 30 caixas da Água Santa Cruz, que se declarou a “água oficial dos jogadores brasileiros”.