Encontro de civilizações
Há 500 anos, quando chegou ao Caribe, Colombo não imaginava que sua aventura colocaria frente a frente mundos tão estranhos. De um lado, a Europa, dividida entre a modernidade e o passado feudal. Do outro, a rica cultura de astecas e incas, que infelizmente não sobreviveu ao confronto.
Cadu Ladeira com Gisela Heymann
O Grande Khan não foi recebê-lo. Mas Cristóvão Colombo estava convencido de que a capital chinesa talvez não distasse muito das terras que avistou no dia 12 de outubro de 1492. O olhar europeu de quem sabe o que faz abastecia de segurança o navegador. Quando deixou para trás o porto de Palos — atual Huelva, no sul da Espanha — no dia 3 de agosto de 1492, tinha até certeza de que a aventura não tomaria muito tempo. Por suas previsões, baseadas no livro Guia para a Geografia, de Ptolomeu (90-168 d.C.), as praias da China não ficavam a mais do que 2 700 milhas do reino de Isabel e Fernando. Errou no destino e na distância.
Nada tão sério, porém, que abalasse suas convicções. O Oriente, sabe-se hoje, ficava quase quatro vezes mais longe. O genovês esperava encontrar o país descrito por Marco Polo (1254-1324) no Livro das Maravilhas e não se apercebeu de que aquelas areias que pisava eram outro mundo. Deslumbrante e impensável, o encontro da Europa com a América aconteceu exatamente assim, como uma grande ilusão: o descobridor desembarcando no litoral da China, os índios vendo nele um deus. Diante dos caribenhos nus que o receberam — Colombo sempre entendeu canibas que traduzia como “gente de Khan” —, o europeu transpirava superioridade. Vinha de um continente em transe. “A Europa vivia uma espécie de febre de expansão naquele momento. Os árabes foram expulsos, os estados nacionais começavam a se formar e a curiosidade intelectual recuperava o tempo perdido durante a Idade Média”, conta o professor de História Moderna Modesto Florenzano, da Universidade de São Paulo. Brilhavam as primeiras luzes do humanismo.
A Europa reencontrava suas raízes gregas, mercadores caçados pelo pecado da usura agora se enchiam de poder e todos os dias novas invenções pipocavam: a impressora de Gutenberg, armas de fogo eficientes, bússola, caravelas. Capacetes reluzentes, arcabuzes e espadas, a cruz e seus navios ao fundo, os espanhóis desembarcaram a civilização sob o olhar de pasmo dos índios. Gente “de boa estatura, que fariam bons cristãos”, como escreveu Colombo em seu diário, referindo-se aos habitantes da ilha de Guanabani, hoje São Salvador. Mas a cena que registra a chegada do navegador à América tem pouco a ver com a realidade do encontro. Os historiadores estimam que em 1492 havia na América um população de cerca 80 milhões de pessoas. Alguns eram nômades. Outros estavam integrados à vida das florestas tropicais.
Boa parte, porém, principalmente na América Central e na região da Cordilheira dos Andes, se agrupava em sociedades complexas e hierarquizadas. Impérios tão vastos, que nenhum europeu se atreveria a imaginar domínios dessa dimensão em seu continente. Na primeira excursão espanhola à América Central, em 1519, quando se deparou com a capital asteca, Fernando Cortez descobriu que, passear por Tenochtitlán era como visitar a Atenas de Aristóteles: milhares de índios, com capas sobre os ombros, fervilhavam entre mercados, palácios e oficinas espalhadas por todos os cantos. Sua população girava em torno de 300 000 habitantes, num período em que 50 000 almas eram mais do que suficientes para dar a qualquer cidade européia o status de grande centro urbano. Era essa, aliás, a população de Gênova, terra natal de Colombo.
Em 1594, um século após a descoberta, a glamurosa Paris contava com apenas 180 000 habitantes, ao passo que Londres, a megalópole européia daquele tempo tinha 250 000. As ruas de Tenochtitlán eram tão bem varridas que se podia andar descalço, sem perigo de ferir os pés”, escreveu um dos religiosos que seguia Cortez. Impressionante, considerando que, em 1512, o rei francês proibiu a população de Paris de jogar o lixo para fora da cidade por cima da muralha da capital: os montes eram tão altos que qualquer inimigo poderia transpor os muros escalando as pilhas de dejetos. Na Itália de Colombo, algumas municipalidades resolveram melhorar seu padrão de higiene proibindo a criação de porcos e cabras dentro da cidade. Mudaram de idéia, no entanto, frente à triste constatação de que, mais do que sujar, os animais ajudavam a limpar ruas sem esgotos nem saneamento. Sob o verniz do humanismo, a Europa escondeu durante muito tempo as traças medievais. Em pleno século XV, três em cada cinco crianças européias morriam ao nascer e, dos sobreviventes, metade não alcançava os 20 anos.
A Peste Negra ainda era uma ameaça presente. Um mal que o acaso transformou em arma útil para a conquista das novas terras. Cortez é dono do mérito de ter inaugurado a “guerra bacteriológica”: um escravo negro doente, trazido por ele de Cuba, espalhou a varíola entre os astecas e dizimou aos milhares. Com os incas, não foi diferente. Entre 1524, quando Francisco Pizarro, o conquistador da região andina da América do Sul, fez o primeiro reconhecimento da costa, e 1532, data em que prendeu o imperador Ataualpa, a doença ceifou a vida de mais de 200 000 índios. As sociedades encontradas por Cortez e Pizarro, os verdadeiros conquistadores do novo continente, eram muito diferentes da que Colombo pressentiu. Os astecas conheciam o papel, possuíam uma escrita pictórica e suas crianças tinham escolas. Os incas não sabiam escrever, mas eram bons matemáticos e usavam o sistema decimal. A metalurgia era especialidade dos povos dos Andes: já fundiam a platina, coisa que na Europa só iria acontecer no século XVII. Todos dominavam a astronomia, sabiam prever eclipses e mediam o tempo, como nós, pelo ano solar.
Suas roupas, apesar do exotismo das penas, eram de algodão de boa qualidade, e a arquitetura grandiosa. Só a capital asteca tinha 25 pirâmides onde eram realizados cerimônias religiosas e os sacrifícios humanos que tanto chocaram os forasteiros. Do outro lado do oceano, porém, rituais tão violentos quanto esses, embora sem cunho religioso, faziam a alegria de multidões. Na Europa de então, condenar ladrões e assaltantes à morte era comum. Isso sem falar em bruxas. Os dias de execução viravam festa. Miseráveis vinham esmolar na cidade e vendedores ambulantes se espalhavam pela ruas. Cultuava-se a violência. Em certas situações, com esmero sádico. Há registro de casos em que a turba, ao ver que as autoridades planejavam uma execução sumária, tratava de comprar o condenado e supliciá-lo a seu modo. Não raro, amarrando suas mãos e pés a cavalos para vê-lo esquartejado.
Nos Países Baixos, onde hoje está a Holanda, algumas festas populares incluíam como atração verdadeiras “rinhas” de cegos: os pobres coitados eram colocados em ringues e, com bastões, tentavam rachar o crânio do oponente diante de uma assistência de desdentados e malcheirosos. Não que os astecas fossem menos violentos, mas seu cheiro era mais ameno. Não só conheciam o banho de vapor, tão prezado na Europa, como mantiam o hábito do lavar-se diariamente, enquanto, no Velho Mundo, entrava na moda o perfume, agradável ardil para evitar a água. Quantas vezes por ano um camponês europeu tirava todas as suas roupas de cima do corpo? Poucas, principalmente nas regiões frias. Dormia-se com o traje de trabalho e trabalhava-se com o de dormir. Os gigantescos impérios americanos, cuja organização faz lembrar as civilizações do Egito, da Babilônia ou da China, também deixaram monumentos arquitetônicos grandiosos. Os aquedutos que abasteciam Tenochtitlán, trazendo água de fontes localizadas a quilômetros, não ficavam muito atrás das obras do período áureo do Império Romano. Tal qual Veneza, a cidade asteca também foi construída sobre um mangue e tinha problemas para conseguir água potável.
Cuzco, a primeira capital dos incas — o último imperador, Ataualpa, havia transferido a corte para Tumipampa, ao norte —, foi descoberta em 1533 e causou espanto. “Está repleta de palácios senhoriais, pois nela não vive qualquer pobre”, escreveu Sancho de la Hoza, companheiro de Pizarro. É pouco provável que, com seus 60 000 habitantes, não houvesse pobres em Cuzco. Mas parece que a grandeza cegou o espanhol. O Império inca, por sinal, foi o mais extenso de todos embora também o mais atrasado. Com 10 milhões de habitantes, reunindo uma centena de etnias, seu domínio se estendia por 950 000 quilômetros quadrados, do Equador à Argentina, e deixou uma herança de 16 000 quilômetros de estradas pavimentadas. Tinha um sistema de correio tão organizado, que em apenas dois dias uma mensagem — transmitida de boca em boca, já que não possuíam escrita — podia percorrer 2 000 quilômetros. Técnicas eficientes de irrigação eram conhecidas e ainda hoje, 500 anos depois, os terraços construídos para plantar milho enfeitam as encostas ardinas como escadarias monumentais. Nessa mesma época, na Europa, enquanto um gênio contemporâneo de Colombo chamado Leonardo da Vinci (1452-1519) esboçava em desenhos futuristas criações como a bicicleta e o helicóptero, o máximo de tecnologia que um camponês poderia se orgulhar de ter visto eram os moinhos. Além, é lógico, do seu arado.
Como os americanos nunca usaram animais para tração, eles não conheciam nenhum dos dois. Apenas os incas domesticaram animais — a lhama —, e só para carga. Curiosamente, no entanto, com todas as suas estradas e lhamas, o comércio jamais teve qualquer expressão entre os incas, restringindo-se à venda de balas de coca e barras de sal. A moeda, como meio de troca, não era conhecida por essas civilizações. O que não impedia uma intensa atividade comercial entre astecas. Grandes feiras vendiam de tudo em Tenochtitlán: tecidos, milho, aves, calçados e bebidas. Caravanas de negociantes cruzavam o império — que na época de Montezuma II contava com 38 províncias e vinte povos — trocando manufaturados da capital por jade, esmeraldas, plumas, conchas do mar e uma infinidade de outros produtos de luxo. Numa sociedade que nem conhecia a roda como utensílio para o transporte, isso não era pouco. Mas, apesar de todo esse esplendor, as culturas nativas não resistiram ao susto que veio do mar.
Em 1519, quando chegou ao México, Cortez contava apenas com 508 soldados e 100 marinheiros para enfrentar um império que, imagina-se, somava cerca de 25 milhões de habitantes. Francisco Pizarro, o conquistador da civilização inca, comandava 100 homens quando desembarcou na América do Sul, e com esse grupelho conseguiu aprisionar o imperador Ataualpa, que tinha ido ao seu encontro à frente de 40 000 soldados. Fechados em seu próprio mundo, protegidos por um Estado que cuidava de tudo e de todos, esses povos foram derrotados mais pela sua incapacidade de lidar com o desconhecido do que pelos canhões. “Quando soube, através de seus emissários, que Cortez queria vê-lo, Montezuma II ficou sem voz. O imperador, em asteca tlatoani, aquele “que fala”, ficou mudo e perdeu seu poder”, lembra o historiador Jorge Luiz Ferreira, professor de História da América, da Universidade Federal Fluminense.
Os espanhóis representavam o impensável e souberam se aproveitar disso. Frente às tropas astecas de cavaleiros-águia e cavaleiros jaguar, Cortez mostrou-se um hábil dissimulador e estrategista. Sabia que o confundiam com um deus — Quetzalcóatl — e portava-se como tal. Quando descobriu que eles não conheciam o cavalo. ordenou a seus homens que os animais mortos nas batalhas fossem enterrados para que os índios não descobrissem que eram de carne e osso. Segundo os códices dos astecas, documentos que eles escreviam para registrar sua história, ao receber a comitiva de embaixadores de Montezuma. o conquistador mandou que seus soldados fizessem os cavalos galopar e disparassem os canhões ao mesmo tempo para impressionar os emissários do imperador. O impacto foi tão forte que todos desmaiaram. No sul, Pizarro deixou-se candidamente atrair por Atanalpa até Cajamarca.
Encontrou-se cordialmente com o monarca-deus, que transbordava segurança cercado por sua gigantesca tropa e, na primeira oportunidade, tratou de aprisioná-lo. Os espanhóis também souberam tirar proveito da insatisfação dos povos submetidos por astecas e incas e transformá-los em aliados para destruir aqueles impérios. Habituado a conviver com a diversidade, o cosmonolitismo europeu triunfou com sua estranha mistura de internacionalismo tecnológico. Marinheiros italianos, em caravelas idealizadas por portugueses, podiam agora enfrentar o oceano graças à vela triangular latina, uma invenção árabe que permitia navegar mesmo com ventos contrários. Consultavam mapas gregos e, para se orientar, usavam a bússola, roubada aos chineses, e o astrolábio, dos árabes enquanto um pó preto de nome pólvora, trazido da China por Marco Polo, munia os canhões com que espantavam os novos adversários. Com esse aparato tecnológico recolhido através do planeta. a Europa incorporou a América ao resto do mundo. Para os americanos, porém, o ingresso custou caro. Em apenas trinta anos, os massacres e as doenças reduziram sua população de 80 milhões para pouco mais de 10 milhões de habitantes. Sem contar a parcela paga em ouro.
Para saber mais:
Colombo, herói (ou vilão) do novo mundo?
(SUPER número 11, ano 5)
O esplendor que a mata escondeu
Entre as sociedades que floresceram no continente americano, todas deslumbrantes e sofisticadas, a mais esplendorosa nunca foi alcançada pelos olhos ávidos dos conquistadores. Quando Cortez desembarcou na América Central, a riqueza da cultura maia repousava tranqüila, envolta pelas matas da Península do Yucatán, no México. Sete séculos antes do desembarque espanhol, sem que ninguém até hoje saiba com exatidão por que, os maias abandonaram suas cidades, que só seriam redescobertas no século XIX.Das grandes civilizações do Novo Mundo, apenas os maias desenvolveram um sistema de escrita fonética, capaz de compor palavras. Os astecas, com sua escrita pictórica, podiam no máximo descrever situações e personagens: o resto tinha que ser complementado pela narrativa do mensageiro. Os incas nunca dominaram a escrita. Na arte da escultura. eram inigualáveis. Suas estátuas beiravam a perfeição. As vezes, como na Grécia, prestando-se ao papel de colunas para prédios espetaculares. Outras, reproduzindo divindades que lembram as obras de artistas indianos. Tudo para enfeitar cidades lotadas de construções públicas. Quase sempre pirâmides, como as que os espanhóis encontraram em Tenochtitlán, ladeadas nas quatro faces por escadarias. Ou então inovadoras, como o observatório cupular de Chichén Itzá, ainda hoje fonte de dúvida: seria uma construção ritual ou uma antecipação da arquitetura dos observatórios feita por um povo de mestres da astronomia? Essa resposta dificilmente alguém um dia terá.