Exorcismo: vade retro!
Praticado desde o nascimento da civilização, o exorcismo - arte de expulsar demônios e afins - resiste à ciência e está mais vivo que nunca.
Uma dor excruciante atacava os braços e as pernas da jovem. Era tão intensa que fazia de cada passo um suplício – assim, a moça permanecia na cama até o pesadelo passar. Só que o tormento voltava toda semana, e ela viveu coisas que pareciam saídas de um filme de terror. Perdeu a consciência e passou a falar palavras sem sentido. Manchas de sangue afloraram na sua pele – e caprichosamente desenharam cruzes, letras, palavras e pequenas frases: “Tenha paz”, “Estou contigo”, “Você é minha”. Numa crise mais forte, a possuída foi levada a uma igreja católica e atendida por um padre. Ele pôs as duas mãos sobre a cabeça dela e falou algumas palavras em aramaico. O ritual prosseguiu com orações e ordens para expulsar o demônio. No mesmo dia, a jovem estava totalmente curada.
Em um templo da Igreja Universal do Reino de Deus, uma mulher conversava com o pastor minutos antes da chamada Sessão do Descarrego. O religioso segurou firme sua cabeça e cochichou palavras em seu ouvido. De repente, a moça começou a grunhir e a falar palavras ininteligíveis. “Manifeste-se! Quem é você?”, gritava o pastor. “Eu sou Lúcifer! Vou destruir a família dela! Matar a filha dela!”, respondia a mulher com voz cavernosa. Por uns 20 minutos, ela cambaleou com os braços para trás e mãos contorcidas. Por fim, o pastor sentenciou: “Você está liberta em nome de Jesus”. E a moça, como se nada houvesse ocorrido, escolheu um assento para assistir ao culto.
Um pedreiro contou sua história em um centro espírita: ele disse que não conseguia trabalho e que ouvia barulhos estranhos em casa. Sentia também uma presença misteriosa se aproximar durante a noite para puxar seus pés – como nas histórias clássicas de fantasmas. No mesmo dia, sentou-se numa cadeira rodeada por 5 médiuns. Um deles gesticulou com os braços, como se estivesse jogando algo invisível sobre o homem. Após 4 sessões semanais, ele recebeu novas propostas de serviço e voltou a dormir tranquilamente.
Essas 3 histórias ocorreram nos últimos dois anos em cidades diferentes do Brasil – elas são uma breve seleção dos muitos relatos ouvidos na apuração desta reportagem. Ninguém precisa acreditar no Diabo (nem na veracidade das narrativas acima), mas seria leviandade dizer que todas as histórias de possessão e exorcismo são inventadas para ludibriar os crédulos. Ainda assim, a ciência não se dedica muito a esclarecer esses fenômenos – a postura das mentes ditas esclarecidas oscila do total desdém ao interesse específico por sintomas particulares. Demoníacas, espirituais ou manifestações de alguma condição peculiar da mente, elas ocorrem muito mais frequentemente do que a maioria de nós supõe. Para ouvir casos assim, basta zapear os canais de televisão durante a madrugada, sintonizar rádios religiosas ou visitar uma igreja neopentecostal. Ou ainda conversar com religiosos das mais diversas crenças – de monges budistas a pastores evangélicos, de xeques muçulmanos a dirigentes de centros espíritas. Para todos eles, seres malignos – não necessariamente demônios, mas também espíritos com má intenção – podem invadir sorrateiramente o corpo dos mortais. Eles têm a capacidade de controlar os movimentos, a fala e a vontade do possuído. A solução de tal problema, seja qual for a religião, é uma só: exorcismo.
O nascimento do Diabo
A história da humanidade já começou endiabrada. O mal infligido foi a primeira idéia que passou pela cabeça de nossos antepassados para tentar explicar as doenças – obras malignas de alguma força invisível que interfere no funcionamento do corpo ou da mente. Para curar o enfermo, expulsava-se o agente perverso. E esse era um serviço para alguns dos primeiros médicos do mundo: os exorcistas. Entre os babilônios, esses doutores bruxos eram chamados de ashipu. O exorcismo medicinal também é mencionado nos textos sagrados hindus, os Vedas, escritos no primeiro milênio antes de Cristo. “Na literatura sânscrita, existem muitos mantras [sons, palavras ou frases repetidos várias vezes] com o objetivo de fazer conjurações e expulsar demônios”, diz Carlos Eduardo Barbosa, especialista em cultura e religião indianas do Instituto Narayana, em São Paulo.
A coisa toda ganhou uma nova dimensão com o advento do cristianismo – e de sua crença na luta do bem contra o mal. O Novo Testamento narra nada menos que 37 casos de exorcismo. Em um dos episódios mais sensacionais, Jesus atende um homem atormentado que se recusava a usar roupas ou ter uma casa – dormia no cemitério. As pessoas da comunidade já haviam tentado amarrá-lo com correntes e algemas, em vão: ele sempre as arrebentava. Tamanha força vinha de uma legião de demônios, segundo respondeu a voz do encapetado a uma pergunta de Jesus. Acuados pela palavra de Deus, pediram para ser transferidos para uma vara de porcos. Dois milhares de suínos possuídos atiraram-se ao mar e morreram afogados.
Histórias assim se repetem nos 4 evangelhos. Sozinho, o Cristo curou 7 possessos. Porém havia muitos exorcismos a fazer, e Ele passou a incumbência para outros – os 12 apóstolos e, segundo alguns trechos da Bíblia, os 72 discípulos e todos que acreditassem em Deus. Essa foi a deixa para que, nos 20 séculos seguintes, cristãos de diversas regiões e correntes se sentissem encorajados a praticar exorcismos e a sofisticar o método.
A Europa possuída
O primeiro relato de um ritual católico de exorcismo foi escrito por Tertuliano, um apologista cristão que viveu entre os séculos 2 e 3. O texto descreve a imposição das mãos sobre o possuído, o sopro no rosto dele e o ato de pronunciar o nome de Jesus, gestos que ainda pontuam as cerimônias atuais. No século 4, já havia em Roma uma ordem de clérigos especializada em esconjurar espíritos das trevas: o exorcistado. Nessa época, disseminou-se a crença de que os demônios eram poderes que desciam do ar e tinham relações sexuais com as mulheres. Até santo Agostinho, um dos maiores pensadores do cristianismo, acreditava que as bruxas eram o produto dessas uniões proibidas. Esse tipo de pensamento imperou por toda a Idade Média, mas os casos de exorcismo se tornaram corriqueiros de verdade no Renascimento, quando a Igreja procurou aumentar sua influência na sociedade. “A partir do século 15, a caça às bruxas, a peste negra, as guerras e a fome fizeram com que as pessoas passassem a pensar que o Diabo estava tomando conta do mundo”, afirma Carlos Roberto Nogueira, historiador da USP e autor do livro O Diabo no Imaginário Cristão.
Vários textos foram então redigidos para orientar os exorcistas na sua luta contra o mal. Um deles chegava a elaborar uma lista com 17 itens para ajudar na identificação de pessoas possuídas. Os textos recomendavam que se perguntasse às vítimas o nome do demônio, da mesma maneira como Jesus fez com o endemoninhado do cemitério – e esse era certamente um dos pontos altos dos rituais. Fazer muitas perguntas por pura curiosidade, no entanto, não era recomendado pelos grandes conhecedores do assunto. O italiano Girolamo Menghi (1529-1609) orientava aos exorcistas que fossem moderados no interrogatório – o demo pode aproveitar a conversa para entrar em ação. As questões, segundo ele, deveriam ter apenas o intuito de descobrir coisas que pudessem ser usadas para combater o mal.
E haja mal para se combater. O juiz francês Henri Boguet, perseguidor implacável das bruxas, narrava num texto de 1602 o estranho caso ocorrido poucos anos antes com a pequena Louise Maillat, de 8 anos. A menina perdeu os movimentos nos membros e afirmou estar possuída por 5 demônios – de nomes Lobo, Gato, Cachorro, Alegre e Grifo. Alguns anos antes, uma jovem vienense de 16 anos chegou a hospedar 12 652 súditos de Satã em seu corpo. Sob tortura, a avó da menina confessou que criava os demônios, sob a forma de moscas, em um pote de vidro. A adolescente foi exorcizada, mas o destino da avó foi morrer na fogueira – de fato, os padres da época estavam atrás de colaboradores do Diabo.
Se os demônios andavam em legiões, os possuídos também podiam se agrupar. O século 17 foi marcado por casos de possessão coletiva, como o descrito pelo escritor inglês Aldous Huxley no livro Os Demônios de Loudun. Em setembro de 1632, o convento da ordem das ursulinas em Loudun, França, tornou-se palco de acontecimentos estranhos. Freiras afirmaram que viram a sombra de homens andando na noite, sendo alguns com o rosto do padre local, Urbain Grandier, notório devasso e desafeto de metade do alto clero do reino – incluso nesse rol o cardeal Armand Richelieu, que viria a ser o homem mais poderoso da França.
No episódio de Loudun, 27 freiras ursulinas foram classificadas como possuídas, atormentadas ou enfeitiçadas. Oito delas foram submetidas a sessões de exorcismo e reagiram de maneiras anormais, levantando seus hábitos e falando obscenidades. As sessões ganharam divulgação e atraíram a atenção de turistas. Mais: o espetáculo das monjas indecentes viajou pela França em um esquema semelhante a uma trupe circense. A platéia raramente saía decepcionada, pois o ritual suscitava nas freiras uma espécie de êxtase acompanhado de frases ininteligíveis, contorções e caretas horrendas. Quem se deu mal foi o padre Grandier. A irmã Joana dos Anjos, líder das possuídas, nutria uma paixão proibida pelo pároco e o acusou de ser o responsável pela histeria no convento. Era o que todos os inimigos de Grandier precisavam para prendê-lo, torturá-lo e queimá-lo em praça pública.
O exorcismo moderno
A fogueiras que mataram muitos homens, ao que parece, não fizeram grande mal ao Diabo. Assim, os navios que aportaram no Brasil traziam também os demônios que assombravam seus tripulantes. Os primeiros relatos de exorcismo genuinamente nacional datam do século 18. Como na antiga Mesopotâmia, tratava-se de uma prática terapêutica: Luís de Nazaré, um frade de Salvador, tinha como ofício “exorcizar os energúmenos e outros que recorrem a ele em suas enfermidades”. Quando não conseguia curar os pacientes, ele os encaminhava para os negros – e os atabaques dos cultos africanos tentavam dar conta do recado.
A partir dessa época, contudo, o avanço científico revelou explicações menos fantásticas e mais plausíveis para doenças e atitudes esquisitas. No lugar da legião de Lúcifer, organismos microscópicos assumiram o papel de principais culpados pelos males dos mortais. “Muitas alegações de possessão passaram a ser diagnosticadas como distúrbios emocionais, pesadelos ou doenças mentais – como a esquizofrenia, que provoca alucinações e delírios”, diz Maciel Santos da Silva, parapsicólogo que integra um grupo interdisciplinar da PUC de São Paulo.
Foram golpes duros no Diabo, mas ele não se deu por vencido. Na década de 1970, o crescimento das igrejas pentecostais trouxe a ampla divulgação da idéia de que as pessoas podem sofrer a intervenção direta do Espírito Santo – e, por analogia, de espíritos demoníacos. Paralelamente, os rituais para afastar esses espíritos se tornaram fenômeno pop, em grande parte graças ao clássico filme O Exorcista, de 1973. Nele, uma garotinha tem a vida infernizada pelo demônio Pazuzu, um dos muitos integrantes da corte de Lúcifer. Com a película, o número de interessados no assunto aumentou, principalmente na Itália, onde atualmente a prática de exorcismos por padres da Igreja Católica funciona a todo vapor. Só em Roma, 9 sacerdotes se dedicam a expulsar demônios, e existe até um curso para padres exorcistas, que atende aproximadamente 130 interessados de todo o mundo anualmente. Gabriele Amorth, exorcista oficial do Vaticano, se orgulha de já ter feito 40 mil exorcismos.
O aumento do número de exorcistas fez com que, em 1999, a Igreja editasse na Europa o Ritual de Exorcismos e Outras Súplicas. O manual foi lançado no Brasil em 2005, vendendo 2 100 exemplares. Nele, o leitor encontra instruções detalhadas para empreender um ritual de exorcismo. O livro relaciona os gestos que o padre deve seguir, dá sugestão de trechos do Evangelho para serem lidos e de cantos para serem entoados.
Há toda uma série de exigências a serem cumpridas por quem quer enxotar demônios do corpo alheio. Antes de mais nada, é preciso pedir permissão ao bispo da diocese. E o padre designado precisa ser dotado de uma série de atributos: piedade, ciência, prudência, integridade de vida e preparo específico.
Existe ainda outra qualidade que diferencia o bom exorcista dos demais padres bons, prudentes etc.: a vocação. “Os padres exorcistas precisam ter um chamado oficial. Eles já nascem com isso”, afirma o padre exorcista Paulo César do Prado, da igreja Imaculada Conceição, em São Paulo. Apesar de existir um manual de exorcismo editado pela Santa Sé, a maioria dos representantes católicos no Brasil prefere fazer vista grossa a essa prática (outras religiões também procedem assim). Alguns padres dizem até mesmo que essas cerimônias não existem mais no catolicismo. Não obstante, a Igreja é bastante descentralizada, e o ritual segue sendo celebrado em muitas pequenas comunidades, com alguma inventividade. Há padres exorcistas que mostram textos em aramaico para os possuídos e pedem que eles os leiam. Outros, para espantar o mal, falam palavras desconexas que nem eles entendem.
Possessão ou doença?
Diagnosticar a possessão verdadeira (segundo os parâmetros cristãos) é uma tarefa inglória num mundo que parece ter mais fé na ciência que na própria fé. Hoje, os clérigos só se arriscam a declarar que uma pessoa está possuída quando todas as causas racionais para seu estado tiverem sido eliminadas. Segundo a própria Igreja Católica, apenas 3% dos casos tidos como possessão demoníaca no passado poderiam ser levados a sério hoje em dia. Os outros 97% seriam fruto de fingimento ou de doenças diversas.
O Ritual de Exorcismos, portanto, tenta evitar a confusão entre endiabrados e portadores de doenças de difícil diagnóstico. O livro estabelece 4 sinais para reconhecer uma possessão: o domínio de línguas desconhecidas pelo sujeito hospedeiro, o conhecimento de assuntos altamente improváveis (como detalhes da vida privada da família do exorcista, por exemplo), a força sobre-humana e a aversão ao sagrado.
O que a Igreja julga inexplicável, entretanto, também é objeto de controvérsia. “Um indivíduo epiléptico, por exemplo, pode ter uma convulsão e adquirir grande força”, diz o médico André Perdicaris, da Universidade Católica de Santos, especialista em sintomatologia. “Ele pode apresentar espasmos musculares capazes de gerar uma energia além do normal. E isso não é possessão.” Há ainda na literatura médica o fenômeno chamado sansonismo (sim, derivado de Sansão): ele ocorre quando uma pessoa, em momentos de tensão, consegue reunir todas as suas forças. “Um grupo de 5 enfermeiras teria dificuldade para segurar uma menina nesse estado”, diz o padre jesuíta Oscar Quevedo, estudioso de fenômenos paranormais. Segundo ele, alguns relatos podem ser ainda mais exagerados que a força do suposto possuído. “É impossível que uma garota consiga levantar um piano de cauda com um único dedo.”
Na possessão coletiva em Loudun, por exemplo, a confusão com doenças pode ter sido a regra. O show de insultos e obscenidades corresponde a um distúrbio chamado coprolalia – é assim que a psiquiatria chama a compulsão mórbida por falar palavrões e baixarias em geral. Já as caretas horrendas eram, possivelmente, um sintoma da doença de Huntington – um distúrbio cerebral que provoca movimentos bruscos frequentes e irregulares do tronco e de membros. Entre as características das pessoas “possuídas” por esse mal estão as contorções faciais, os gemidos, a fala desarticulada e um jeito de andar bastante peculiar, como se o indivíduo estivesse dançando.
A habilidade de falar em línguas desconhecidas está catalogada na literatura médica: seu nome é glossolalia. Sabe-se que pessoas submetidas à hipnose se lembram de palavras ou frases estrangeiras ouvidas no passado – e aparentemente esquecidas. Só que, até agora, nunca foi provado que alguém pudesse falar um idioma sem ter tido algum contato com ele. “No caso do garoto Robbie, que inspirou o filme O Exorcista, há relatos de que ele falava palavras em latim”, diz Maciel dos Santos Silva, da PUC-SP. “Mas um dos exorcistas notou que as frases constavam do próprio ritual de exorcismo que estava sendo empregado nele.” Palavras em outras línguas poderiam ficar armazenadas em alguma gaveta escondida no fundo da mente e voltar à tona de vez em quando. “Podemos estar ouvindo uma rádio em outra língua e não prestar atenção, mas nosso inconsciente não deixa escapar nada”, afirma Quevedo.
Por trás da discussão fria sobre patologias e seus sintomas, há portadores de condições mentais ou neurológicas que sofrem preconceito por influência de líderes religiosos – gente que carrega o estigma de ser hospedeiro do Diabo. Os epilépticos são vítimas históricas desse preconceito. “No passado, a epilepsia era frequentemente confundida com possessão”, diz o neurologista Li Li Min, da Unicamp. Segundo ele, uma convulsão apresenta sintomas que, no passado, podem ter sido considerados sobrenaturais: a pessoa tem movimentos involuntários e repetitivos, pode se despir, gritar e até adquirir uma tonalidade arroxeada – isso porque ela pára de respirar. A questão é que hoje a epilepsia já é uma doença bastante conhecida. “Mas ainda é muito comum a gente ver algumas igrejas exorcizando epilépticos”, afirma Min.
Exorcismo em várias fés
Em sua luta obsessiva contra o mal, o catolicismo romano é a religião que mais estudou, documentou e normatizou o exorcismo. Isso não significa que a luta contra a ação de espíritos malignos em corpos alheios seja exclusividade dos súditos do papa. O exorcismo é praxe para o tratamento dos males “da alma” em outras vertentes cristãs. Enquanto os católicos fazem sua cerimônia em ambientes isolados, nas igrejas evangélicas neopentecostais preferem-se ritos coletivos – melhor ainda se transmitidos ao vivo pela televisão. Na Universal do Reino de Deus, por exemplo, eles têm até dias certos para acontecer: todas as terças e sextas-feiras. A frequência dos rituais reflete a demanda por eles – e a procura é enorme porque, segundo a doutrina da Universal, os demônios são culpados por uma série de males grandes, médios e pequenos.
A Universal prega que forças demoníacas podem atormentar pessoas de uma mesma família durante gerações. As consequências possíveis vão do desemprego às dores de cabeça. Essa maldição familiar é a explicação da Universal para o fato de parentes serem acometidos por doenças semelhantes, como o câncer – o que leva os pastores a serem acusados (com alguma frequência) de exercício ilegal da profissão médica.
Outras religiões aparentadas com o cristianismo também possuem seus rituais de exorcismo, ainda que algumas não acreditem em demônios. É o caso do judaísmo, do qual se originou a fé cristã – os judeus crêem no assédio de espíritos de pessoas que morreram, os chamados dibbuks, capazes de “grudar” nos vivos. O islamismo, surgido mais tarde, além do espiritismo e da umbanda – que incorporaram alguns elementos da fé cristã –, também celebram cerimônias que podem ser consideradas exorcistas.
Assim como os cristãos, muçulmanos crêem em anjos. E também partilham a crença nos anjos caídos – Satanás e seus filhos, chamados de gênios, demônios e duendes. Nem todos são maus, porque possuem o livre-arbítrio. Alguns, porém, desobedecem a Deus e possuem o corpo das pessoas, tornando necessária a sua expulsão. No ritual, realizado num lugar calmo para que haja concentração, um xeque lê o Alcorão sobre a pessoa afetada e faz súplicas por ela.
Os métodos são bastante diferentes no espiritismo. A começar pelo alvo dos rituais – Diabo ou demônios não fazem parte do repertório espírita. “É ilógico e contraditório que quem faz da bondade um dos atributos essenciais de Deus suponha haver Ele criado seres destinados ao mal e a praticá-lo perpetuamente”, escreveu Allan Kardec, o codificador do espiritismo, em O Livro dos Espíritos. Quem pode importunar a vida dos encarnados (é assim que os espíritas chamam pessoas como você – vivas) são espíritos perversos, desequilibrados ou ignorantes daqueles que já morreram. Como na possessão demoníaca, essas almas podem assumir o controle do corpo e da mente de sua vítima, que deve procurar ajuda em um centro espírita.
Além de não contar com demônio algum, o ritual espírita pode dispensar a presença da pessoa atormentada. Na maioria das vezes, o socorro acontece a distância: o espírito inconveniente empresta a voz de um médium para se comunicar com o dirigente do centro espírita. Sucede-se uma conversa em que o espírito é levado a se arrepender de sua conduta e convencido a ir embora. Em situações mais raras, pode ser necessário que a vítima compareça à reunião, seja para receber passes, seja para fazer com que o espírito visitante converse com os integrantes do centro. Libertada do problema, a pessoa recebe orientação sobre o que fazer para evitar que outros espíritos venham a dominá-la no futuro.
Na umbanda, que mescla conceitos do catolicismo, do espiritismo e de religiões africanas, os vivos são importunados pelos eguns, espíritos zombeteiros de gente que já morreu. Para espantar essas entidades, há 3 tipos de cerimônias: o descarrego, a desobsessão e o sacudimento. O primeiro ritual acontece em um ambiente com velas acesas e ervas queimando, ao som de orações e cânticos. O guia (ser espiritual como um preto-velho ou um caboclo, entre outros) toma posse do corpo da mãe-de-santo ou do pai-de-santo, que faz passes supostamente mágicos sobre a pessoa que está sendo perturbada.
A desobsessão é parecida com os rituais do espiritismo: envolve conversas com o espírito para que ele retorne para seu caminho em direção à luz. No sacudimento, a natureza desempenha um papel purificador – por isso, muitas vezes ele é feito ao ar livre. “Dependendo do caso, pode ser preciso ir a uma cachoeira, à praia ou à mata, que são pontos de energia”, diz a mãe-de-santo Liliana d’Oxum, de São Paulo. Flores e alimentos são oferecidos para diversas entidades, no intuito de convencê-las a ajudar a pessoa afligida a livrar-se de seu tormento. Muitas vezes, Exu – entidade demonizada pelos pregadores evangélicos, mas que na mitologia africana corresponde a um mensageiro – é invocado durante esse ritual para conduzir o espírito trevoso de volta à luz e para longe da pessoa.
Existe exorcismo também em religiões que nada têm em comum com o cristianismo. “Todos temos a tendência de procurar afastar de nós aquilo de que não gostamos e que consideramos como ameaça”, diz o antropólogo Raymundo Heraldo Maués, da Universidade Federal do Pará. Algumas tribos africanas, por exemplo, convocam mulheres xamãs para dançar e expulsar os espíritos malignos dos possuídos.
Nos templos budistas que seguem a linha tibetana, os rituais exorcistas podem durar até 49 dias e são conduzidos por monges ou lamas. “São feitas orações e realizadas oferendas de lamparinas, incensos, alimentos e flores”, afirma o monge Bhikshu Rinchen Khyenrab, de Cabreúva, interior de São Paulo. Entre os hinduístas, acredita-se que os deuses também podem se apossar do corpo humano – além dos demônios habituais, é claro. Para mandar embora os intrusos, há curandeiros que andam em torno da pessoa afligida. Eles batem varetas, passam unguentos e ervas e recitam versos sagrados.
Aos olhos dos céticos, essa ampla oferta de rituais só existe porque há uma demanda perene por eles. Uma explicação possível para essa popularidade é o alívio que o exorcismo traz – ele pode ser simplesmente uma maneira confortável de lidar com os próprios defeitos. “Em vez de imaginar que têm culpa pelo que está acontecendo, as pessoas preferem remeter a uma terceira pessoa a responsabilidade pelos seus tormentos. E isso acaba funcionando”, diz Carlos Roberto Nogueira, historiador da USP. Assim, mesmo o mais simples dos rituais, como o praticado no islamismo, pode ter um impacto reconfortante para o indivíduo. As cerimônias mais espalhafatosas teriam um efeito adicional, o de provocar a catarse. Nesse tratamento, em que drogas também são usadas, aquele que tem problemas com traumas do passado é induzido a revivê-los intensamente. A carga emocional liberada é tão forte que leva a pessoa ao colapso. Depois dessa excitação violenta, ela sente-se livre das preocupações e dos medos antigos.
Acontece que as certezas são sempre frágeis nesse campo. Se a fé não exige provas, a ciência algumas vezes não consegue obtê-las. O comportamento humano é uma área ainda repleta de mistérios a ser desvendados – é nas brechas do conhecimento que se alojam os demônios e outras assombrações. Casos sem explicação racional continuam a acontecer a todo instante, só que não há como atestar a atuação do sobrenatural nessas situações. É uma dúvida do diabo, que promete viver em nossas entranhas por um bom tempo.
Manual católico
Nada de platéia. O ritual deve ocorrer em local reservado, longe da multidão. Cada detalhe é descrito minuciosamente por uma cartilha do Vaticano.
Sinal demoníaco
Para o padre Gabriele Amorth, do Vaticano, os Rolling Stones pertencem a uma seita satânica. Trata-se de um exemplo de influência de Satanás.
Torcida
Familiares e amigos podem comparecer e rezar fervorosamente. Em hipótese alguma podem conversar com o atormentado, para não serem enganados pelo Diabo.
Água benta
O rito começa com aspersão com água benta, que pode ser adicionada de sal.
Palavras santas
Durante o ritual, o padre recita um ou mais salmos que exaltam a vitória de Cristo sobre o maligno e proclama o Evangelho.
Sopro
O exorcista invoca o Espírito Santo e sopra a face do atormentado. Como a vítima pode ter força sobre-humana, pode ser necessário amarrá-la.
Poder da cruz
O exorcista mostra ao atormentado a cruz e traça o sinal sobre ele.
Ordem para sair
Fórmulas em que o Diabo é esconjurado a sair do atormentado são proferidas. Por fim, conclui-se o rito com canto de ação de graças, oração e benção.
Libertação na Universal
As Sessões de Descarrego ocorrem em teatros amplos. Monotonia não está na pauta do dia
Começa a luta
Os obreiros andam pelos corredores para atender os fiéis. Quando um deles se sente mal, o obreiro segura sua cabeça com força e diz: “Queime em nome do Senhor!”
Na marra
O Diabo é trapaceiro e gosta de derrubar as pessoas. Quando isso ocorre, o obreiro rapidamente a socorre. Às vezes, puxando pelo cabelo.
Alívio imediato
Depois que o perigo passou, o obreiro diz ao fiel: “Agora você está liberto em nome do Senhor!”
Cura para os males
Desemprego, cancer, violência doméstica, epilepsia e tudo o mais é considerado obra do Diabo e alegadamente pode ser curado em sessões como essa.
Sinais de possessão
Hoje a Igreja reconhece somente 4 sintomas exclusivos da possessão demoníaca – falar línguas estranhas, conhecer fatos inacessíveis, ter força descomunal e abominar tudo o que é sagrado. Mas essa lista já foi bem maior: conheça abaixo alguns dos sinais que já foram usados por padres e curandeiros para reconhecer o Diabo no corpo alheio:
• Não conseguir comer carne de cabra por 30 dias.
• Apresentar fisionomia assustada, olhar espantado e aspecto hediondo.
• Tornar-se surdo, mudo, lunático ou cego.
• Apresentar dores ou sintomas extraordinários, como se vermes, formigas e rãs estivessem correndo desde a cabeça até o resto do corpo.
• Por alguma razão secreta, deixar de assistir à missa, de rezar, de tomar água benta, de ouvir a palavra de Deus.
• Quando uma bolha se elevar na língua e logo sumir. Ou quando se elevarem diversas bolhas na língua (cada bolha representaria um demônio alojado no corpo).
• Mostrar-se inquieto, buscando lugares solitários e desertos.
• Apresentar-se tolhido de todos os movimentos, mantendo-se adormecido e como morto.
• Não suportar o aroma de rosas ou outros perfumes.
• Revelar fatos secretos e os denunciar, manifestando desprezo por Deus e dirigindo injúrias aos vizinhos.
• Soltar suspiros lastimosos sem nenhuma razão legítima.
• Tornar-se impotente.
Mas que diabo!?
Diabo, demônio, Satã, Satanás ou Lúcifer? Afinal, qual é o nome certo do coisa-ruim? Essa é uma questão que ocupou a mente dos teólogos a partir do século 13. Depois de muitos debates, concluiu-se que ele era conhecido como Lúcifer – em latim, “aquele que carrega a luz” – na época em que chefiou uma rebelião de anjos contra Deus. Por essa ousadia, passou a ser chamado de Satã ou Satanás (do hebraico shatan), que significa “adversário”. Traduzido para o grego, shatan virou diabolos (“o acusador”), de onde se originou o nome Diabo. Os demônios, por sua vez, seriam os anjos decaídos que se aliaram a Lúcifer. Para calcular o número de soldados das trevas, os estudiosos recorreram novamente ao Apocalipse: ele afirma que o Dragão, ao ser derrotado, “arrastou a terça parte das estrelas do céu”. Assim, os seguidores do Diabo compunham 1/3 das ordens angelicais. O bispo Alfonso de Spina, do século 15, tentou ser mais específico. Calculou que, sob as ordens do tinhoso, estavam 66 príncipes infernais, cada qual comandando 666 legiões de 6 666 soldados. Resultado do censo infernal: mais de 290 milhões de demônios! Outra tarefa a que os teólogos se dedicaram foi traçar o retrato falado do Diabo. Além das imagens da serpente e do dragão, mencionadas na Bíblia, a ele também se atribuiu a aparência de um bode, associado ao mal por seu fedor e belicosidade. Para denunciar sua natureza bestial, muitos artistas o pintaram como uma pessoa deformada ou um misto de homem e fera. Daí ele aparecer com chifres, rabo, patas, garras e asas de morcego. Mas isso não esgota as possibilidades de metamorfose do Diabo, o mestre dos disfarces. Contam as lendas cristãs antigas que ele entrou na arca de Noé disfarçando-se de gota de mel e se escondeu em um pé de alface para possuir uma abadessa alemã.
Bate-papo com o além
Nos centros espíritas, tudo é muito simples, da decoração aos gestos
Problema leve
Os espíritas acreditam que as pessoas podem ser atormentadas por espíritos de pessoas já falecidas. Quando uma delas pede ajuda, pode receber um passe de um dirigente.
Em volta da mesa
Depois de a vítima retornar para casa, médiuns recebem, no centro, o espírito que a está afligindo. Com a ajuda de espíritos bons, eles conversam com o maligno e tentam convencê-lo a parar com suas traquinagens.
Rebeldia
Muito raramente, pode ser necessário que a pessoa afligida esteja presente na reunião. Nesses casos, o espírito maligno pode provocar reações indesejadas e ser repreendido.
Fim da história
Depois de muita conversa, os espíritos bacanas convencem o encrenqueiro a ir no caminho da luz.
Para saber mais
Novos Relatos de um Exorcista – Gabriele Amorth, Paulus, 2003
Ritual de Exorcismos e Outras Súplicas – Paulus, 2005
Demonic Possession and Exorcism in Early Modern France – Sarah Ferber, Routhedge, Inglaterra, 2004
O Diabo no Imaginário Cristão – Carlos Roberto Nogueira, Edusc, 2000