Lenda aborígene pode ser história mais antiga conhecida pela humanidade
Um gigante que se tornou um vulcão: essa pode ser a história mais antiga que ainda sobrevive, com incríveis 37 mil anos de existência. É o que afirma um novo estudo.
Nós, humanos, contamos histórias o tempo todo. O costume de passar informações de geração em geração pela tradição oral é milenar e, aparentemente, presente em todas as culturas do mundo. Ninguém sabe ao certo quando a prática surgiu; sua existência parece se confundir com a própria humanidade. Mas um novo estudo pode ter descoberto a história mais antiga já contada pela humanidade que se tem registro: uma lenda típica do povo aborígene Gunditjmara, habitante do sudoeste do estado de Victoria, na Austrália.
A lenda é a seguinte: há muito tempo, quatro seres gigantes chegaram à Austrália, em uma área conhecida como Stony Rises, ao sul do Lago Condah. Eles foram enviados por Prenheal (o Grande Espírito Criador, uma espécie de deus supremo) para construir as paisagens do local. Três deles assumiram a forma de humanos e partiram para norte e oeste, se tornando os primeiros de uma linhagem semidivina que, segundo a lenda, existe até hoje (os Gunditjmara conferem status especial aos descendentes desses primeiros homens).
O quarto gigante ficou pelo sul mesmo. Lá, ele se agachou e seu enorme corpo deu origem a dois vulcões: o Tappoc (conhecido pelos ocidentais como Monte Napier) e o Budj Bim (ou Monte Eccles). Segundo a lenda, as rochas vulcânicas e a lava liberadas por esses vulcões seriam os dentes carbonizados do gigante.
Agora, pesquisadores da Universidade de Melbourne encontraram indícios de que o Budj Bim tenha se formado há 37 mil anos, em um processo que envolveu sucessivas erupções de lava. E não há registros de outras erupções relevantes desde então. Esse primeiro e talvez único evento pode ter sido testemunhado por humanos, que depois o eternizaram em uma lenda. Se confirmado, isso tornaria o mito a história mais antiga já conhecida na humanidade. A descoberta foi feita através de técnicas de medição do decaimento radioativo de elementos como potássio e argônio em rochas vulcânicas da região, que indicaram que sua formação ocorreu há 37 mil anos.
Não há consenso sobre quando humanos chegaram à essa região em específico – as pistas mais antigas até agora datavam de 13 mil anos, ou seja, bem mais recentes do que propõe o novo estudo. (Na verdade, não há consenso científico nem sobre quando os humanos chegaram à Austrália pela primeira vez. Isso se deve à falta de artefatos de cerâmica e estruturas fixas antigas no continente.)
Mas os pesquisadores têm um bom ponto: em 1940, arqueólogos encontraram um antigo machado soterrado na região. E ele estava embaixo dessas rochas vulcânicas, indicando que foi soterrado durante uma erupção. Isso pode significar que os humanos estavam por lá antes mesmo de o vulcão entrar em atividade.
Já se sabia que as lendas dos aborígenes australianos podem ter um fundinho de verdade sobre eventos naturais passados, como terremotos e impactos de meteorito. Em 2017, um estudo sugeriu que os povos nativos de lá preservavam a memória de uma grande enchente, que ocorreu há sete mil anos, numa história contada de geração em geração.
O fato de os aborígenes australianos migrarem muito pouco também pode ajudar nessa transmissão de conhecimento, já que as pessoas que vivem na área hoje são descendentes diretos dos povos antigos de lá – e suas lendas também são.
Mesmo assim, outros pesquisadores veem com cautela o novo estudo. Em entrevista à revista Science, o arqueólogo Sean Ulm, da Universidade James Cook, elogiou a pesquisa, mas disse que nenhuma outra tradição oral conhecida existe há um tempo tão longo, e por isso são necessários outras análises. A própria autora principal do estudo, Erin Matchan, lembra que a pesquisa não crava que a história é a mais antiga conhecida – como geóloga, ela só mediu a idade das rochas. Mas só a possibilidade já é interessante.