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Lendas que começam antes de Cristo e seguem pela Idade Média

O celta pertence ao universo da linguística, como o árabe. Em seu apogeu, entre os séculos 5 e 3 antes de Cristo, os celtas fundaram assentamentos num território que começa nas ilhas britânicas, cobre um bom pedaço do norte da Europa, onde se bifurca nas direções da península Ibérica e das margens dos rios Reno e Danúbio, e termina na atual Turquia. Já no século 6 a.C., referências aos celtas aparecem em textos dos gregos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h25 - Publicado em 19 mar 2011, 22h00

Texto Tiago Cordeiro

Os celtas dominavam um bom pedaço da Europa, mas nunca estabeleceram um império. Com a ascensão dos romanos, a cultura celta ficou restrita às ilhas que hoje formam a Grã-Bretanha, no que hoje é a Escócia, a Irlanda e o País de Gales. Por ali, na Idade Média, monges transcreveram vários mitos da tradição oral dos celtas. Uma delas, com certeza você conhece bem (ou acha que conhece). É a do rei Arthur.

O primeiro a registrar a saga de Arthur foi Geoffrey of Monmouth, em sua História dos Reis da Bretanha, no século 12. Falava de um rei virtuoso e de seus seguidores, que se estabeleceram na Bretanha ali pelo século 5 ou 6 (ainda que não existam evidências históricas). O mito conta como foi traído por seu parente Mordred. Os outros elementos conhecidos – a távola rendonda, a busca do santo graal e seus cavaleiros, a traição de Guinevere e Lancelot – apareceram muito tempo depois. Mas a base da história era uma antiga lenda celta.

O cão de Culann

Para os especialistas em mitologia celta, o relato de Táin Bó Chuailgné é compável à Ilíada grega, com o herói Cuchulain fazendo as vezes de Ulisses. A história costuma ser situada no século 1 da era cristã e faz parte de um grupo de relatos conhecido como “Ciclo de Ulster”. A forma como ela sobreviveu até nossos dias é significativa: em duas versões escritas, em prosa, compiladas nos séculos 12 e 14. Em geral, assim é a mitologia celta que conhecemos: compilações realizadas na Idade Média a partir dos relatos orais de uma pequena parte do extenso território ocupado por esse povo.

Cuchulain é um grande herói celta, mas nem tinha esse nome quando nasceu. Ele se chamava Sedanta e era filho do deus Lugh, o deus Sol dos irlandeses e um grande guerreiro. Sua mãe era a mortal Deichtine. Quando era apenas um garoto, o rei de Ulster, Conchobar, o convidou para uma festa na casa de Culann, o Ferreiro. Mas ele chegou tarde e foi atacado pelo cão de guarda do ferreiro. O menino matou o cachorrão com as próprias mãos e o dono da casa ficou inconsolável. Para acalmá-lo, prometeu ele mesmo fazer a guarda da casa até que o ferreiro pudesse treinar outro cão. Então, ganhou o nome de Cuchulain, “o cachorro de Culann”. O cão, para os celtas, era considerado um animal ao mesmo tempo forte e leal – os principais atributos do nosso futuro herói.

Certa vez, Cuchulain dirigiu-se a Conchobar. Pediu armas e uma carruagem. Voltou carregando as cabeças de 3 soldados inimigos, que haviam derrotado vários guerreiros de seu monarca. Quando realizou tal façanha, tinha 7 anos de idade.

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Em sua última grande batalha, enfrentou fantasmas e feitiçarias. Ele havia matado tempos antes um grande guerreiro, Cailidin. Mas a mulher do inimigo teve 6 filhos, 3 meninas e 3 meninos, que foram enviados para bem longe, para estudar magia. Quando voltaram para se vingar da morte do pai, transformaram folhas e gravetos em soldados-fantasmas para atacar Cuchulain.

O herói imaginava combater os soldados sem trégua, até que os filhos de Cailidin enviaram 3 javalis mágicos e um deles o feriu gravemente. Debilitado, amarrou-se a uma pedra para continuar lutando de pé. Durante 3 dias ninguém teve coragem de se aproximar dele, até que uma das filhas de Cailidin tomou a forma de um corvo e pousou na pedra onde estava. Aos 27 anos de idade, o grande Cuchulain, herói dos celtas, estava morto.

O deus chifrudo

“As culturas celtas mais antigas apareceram no continente europeu”, diz Benjamin Bruch, professor de línguas celtas da Universidade de Bonn, na Alemanha. Surgidos por volta de 1200 a.C., eles foram marcados pela influência dos povos do sul da Europa que se desenvolveram a partir do século 5 a.C. “Os celtas abrigaram um vasto número de culturas, incluindo a dos gauleses, e foram influenciados pelo contato com os gregos, os romanos e, depois, com os cristãos”, diz Bruch. Há quem inclua no vasto ramo de povos celtas grupos que viveram na atual Espanha e até mesmo os gálatas, que habitaram a região onde hoje fica a Turquia – a própria palavra “celta” para definir esse povo é de origem grega; eles mesmos nunca se denominaram assim. Em tanto espaço, a cultura era o traço de união.

A mitologia desses povos continentais foi diluída pelos romanos, que transcreviam as histórias que ouviam, mas adaptando os personagens a seu próprio panteão. Depois, foi incorporada pelos cristãos, que tomaram para si vários relatos e, principalmente, datas comemorativas.

Antes da contaminação por outras culturas, os celtas criaram um vasto panteão de deuses e divindades ligados à natureza. Um deles, cuja presença se espalhou por quase toda a Europa, era Cernunnos, o deus chifrudo. Ele tinha forma humana, mas de sua cabeça brotava uma galhada de veado. Ele era cabeludo e barbudo e vestia no pescoço uma espécie de anel, conhecido como torc, um símbolo celta de nascimento nobre. A imagem mais antiga do deus é do século 4 antes de Cristo. E sua iconografia é encontrada em toda a Europa.

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Num paralelo com a mitologia grega, Cernunnos era um deus selvagem, tal como Pã. As imagens o mostram cercado de animais, como serpentes, veados e javalis. Os chifres, dizem os antropólogos, são um símbolo de fertilidade – entendida aí como sinônimo de boas colheitas no campo e, claro, com um forte componente sexual. Ele é o senhor dos animais, provedor de alimentos e de riqueza.

Os chifres, entre os celtas, também estão relacionados à virilidade e à violência. Há histórias de viajantes que comem maçãs e ganham chifres, ou de guerreiros nos quais nascem frondosas galhadas na testa na véspera de uma batalha.

Contar até 3

“Os celtas eram fascinados por coisas que acabavam em 3”, registra Philip Wilkinson em Myths & Legends. São comuns imagens de touros com 3 chifres e deuses com 3 cabeças. Irlandeses e galeses escreviam tríades, pequenos poemas com 3 versos (tais como os haikais japoneses) que descreviam 3 conceitos. Há um monte de lendas que envolvem 3 filhos ou 3 filhas. Algumas esculturas celtas mostram as “3 mães”, um símbolo poderoso da cultura. Elas carregam cestos com alimentos, e especialistas as relacionam com a generosidade da terra e com a fertilidade das mulheres.

A abundância estava relacionada ao sagrado. E um dos instrumentos míticos mais recorrentes nas antigas histórias celtas é um prosaico caldeirão, a “panela do grande pai”. Não era tão prosaico assim, na verdade. Aqueles que comiam da comida preparada nele ganhavam vida eterna. Entre os antigos irlandeses, havia a história do caldeirão dos Da Derga, tão generoso que nunca faltava alimento para os homens. O de Dagda, o druida supremo, era uma fonte que nunca deixava ninguém com fome. O culto à natureza era uma forte marca dos celtas. Quando um raio caía num lugar, por exemplo, eles imediatamente o transformavam num local sagrado. O responsável pelos raios era Taranis, o deus do céu. Quando os romanos invadiram a Bretanha no século 1, Taranis foi descrito como o deus da guerra e imediatamente identificado com Júpiter. Um dos cultos ao deus envolvia sacrifícios humanos (tais como os povos americanos antes de Colombo). Os escolhidos eram queimados vivos em barcos de madeira ou afogados.


O saber do dedão

Há um grupo de mitos celtas conhecido como Ciclo Feniano que relata as aventuras do herói Finn mac Cool e seus seguidores, os fian. São histórias em prosa e verso que foram compiladas por copistas em mosteiros e castelos da Irlanda entre os séculos 9 e 16, muitas atribuídas a Oisin, o filho do herói que você conhecerá a seguir. A história começa quando o menino Demhre vai procurar um poeta e druida na floresta, Finn, o Vidente. Chegou na hora certa. Depois de 7 anos de tentativas, o druida pescou um salmão. Não era um peixe qualquer – era o Salmão do Conhecimento, que lhe daria toda a sabedoria do mundo. Finn pediu ao menino que o cozinhasse, com instruções expressas para que não o comesse.

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Na cozinha, sem querer, Demhre queimou o dedão no peixe e instintivamente o levou à boca. Ele contou ao vidente o que havia ocorrido. O druida respondeu que, então, estava autorizado a comer o salmão e a partir daquele instante passaria a se chamar Finn. Depois do jantar, o novo Finn (lembre-se, esse era o nome do druida vidente) tornou-se sábio e ganhou o dom da profecia. Quando precisava de sabedoria, bastava pôr o dedão na boca. Ele virou guerreiro, caçador e um grande atleta. E combinava esses atributos com os dons que ganhou do salmão. Repeliu todas as tentativas de invasão da Irlanda e enfrentava não só coisas deste como do Outro Mundo celta. Os fian, que seguiam o herói, formavam um time curioso. Goll mac Morna era um grande lutador, Diarmaid, amado pelas mulheres e Conan era um sujeito mau, que trapaceava às vezes. Mas todos se tornaram defensores da Irlanda. O quarto integrante era Oisin, o filho de Finn e um dos maiores poetas lendários da Irlanda. Sua mãe era uma cerva do Outro Mundo e ele cresceu livre na natureza.

A mulher das flores

A literatura do País de Gales oferece uma rica narrativa dos mitos e lendas celtas. A história, dividida em 4 partes, é conhecida como Mabinogion. Uma delas: Lleu Llaw Gyffes, o Brilhante Habilidoso, foi proibido por sua mãe de se casar com uma mortal. Mas seu tio Gwidion era mágico e, com a ajuda de outro mágico, Gwynedd, usou seus poderes para criar uma linda mulher com flores de 3 árvores. Mas, tão logo ganhou vida, a moça se apaixonou por outro homem e pediu que o namorado matasse Lleu. O Brilhante se transformou numa águia e voou para um carvalho, uma árvore que os celtas consideravam mágica e cuja casca era usada pelos druidas em suas poções. O tio correu para lá, lhe devolveu a forma humana e ele matou o amante da ex-futura mulher. A beleza vinda das flores se transformou em coruja. E Lleu virou o rei de Gales.

Halloween

Uma região se manteve isolada do intercâmbio e da incorporação cultural de gregos, romanos e católicos. Na faixa onde hoje ficam Irlanda, Escócia e País de Gales, os costumes e o sistema de mitos dos celtas foram preservados. “O que hoje conhecemos como mitologia celta é na verdade o sistema de costumes e tradições de uma pequena parte desse povo, que, favorecida pela distância, conseguiu preservar sua cultura”, afirma James MacKillop, autor do livro mais respeitado sobre o assunto, o Dicionário Oxford da Mitologia Celta.

Quando os cristãos intensificaram sua presença na região, já durante a Alta Idade Média, a abordagem inicial foi marcada pelo intercâmbio. A partir do século 11, começaram a surgir nos mosteiros as primeiras transcrições dos relatos ouvidos ali. “A mitologia celta que chegou até nós é na verdade a versão, compilada por cristãos, dos relatos de uma região bem específica. Os celtas mesmo não transcreviam suas histórias, eles tinham medo do poder mágico da palavra escrita”, diz Joseph Nagy, especialista em literatura celta e professor da Universidade da Califórnia. Prova da influência cristã é o fato de muitos santos católicos da região, como são Patrício,o padroeiro da Irlanda, serem objeto de relatos de feitos heroicos.

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Marcadas pelo politeísmo, pelo temor à natureza, pelo respeito aos poderes mágicos dos animais e pela grande importância dada aos guerreiros, essas histórias foram incorporadas à tradição anglo-saxã. São heranças celtas as histórias dos druidas (sacerdotes e curandeiros), dos duendes (espíritos que se apresentam na forma de anões verdes e vivem dentro das casas), dos gnomos (artesãos anões que vivem dentro de árvores) e dos elfos (magos quase imortais). Também a festa de Halloween é uma herança celta. Para eles, a noite equivalente a 31 de outubro no nosso calendário era marcada pelo início do Samhain, uma celebração que marcava o fim da colheita, o Ano-Novo e o início do inverno.

Conchobar, o rei de Ulster, a atual Irlanda, selecionou 150 garotos para transformá-los em guerreiros. O sobrinho Cuchulain queria fazer parte da turma, mas sua mãe não deixou: ele era muito pequeno. Os garotos tiraram onda e ele ficou tão furioso que sua cabeça e seus olhos ficaram vermelhos. Cuchulain deu uma surra nos 150 de uma vez e o rei o recrutou. Quando Medb, a rainha de Conhhaught, resolveu tomar à força o Touro Castanho de Cualgne, que pertencia a um fazendeiro de Ulster, os dois reinos entraram em guerra. Cuchulain, duelou contra cada um dos heróis enviados pelo inimigo. Matou todos, e nos intervalos perseguiu e trucidou 100 adversários por dia com sua funda e sua lança mágica.

Arthur e Merlin
As origens célticas da lenda do rei Arthur passam pela ocupação romana da ilhas britânicas. Seu nome deriva do latino Artorius. De qualquer forma, o mito primordial de Arthur o mostra com um bravo guerreiro, que combateu as invasões saxônicas. Nas várias histórias antigas, ora ele é apresentado como um gigante, ora como humano que enfrenta monstros e animais mágicos. Uma de suas aventuras o coloca no Outro Mundo, em busca do caldeirão mágico, fonte de abundância. A figura mais misteriosa das narrativas sobre Arthur é a de Merlin. Os antigos celtas o chamavam de Myrddin, um vidente maluco que morava no sul da Escócia e era conhecido como o “Louco da Floresta” e que não tinha nenhuma relação com os cavaleiros da távola redonda. O exílio na natureza é explicado pela expiação dos crimes que cometeu em batalha e pelas mortes que causou.

Morrigan
Seu nome significa “A Grande Rainha”. Usa um vestido vermelho, uma capa também vermelha e carrega uma lança cinzenta. Quando o herói Cuchulain recusa seu amor, Morrigan assume a forma de um corvo e o ataca durante uma batalha.

Cernunnos
Uma das mais antigas entidades da crença deste povo, representada desde pelo menos o século 4 a.C., Cernunnos é o grande senhor dos animais, capaz de aparecer para os humanos como cobra, lobo ou cervo.

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Com a palavra, os monges copistas
As lendas celtas foram compiladas em mosteiros por monges cristãos. Os verdadeiros celtas tinham medo do poder mágico da palavra escrita.

Lugh
É a divindade mais citada nos relatos da mitologia celta. Popular, deriva de outro deus mais antigo, Lugus. Até hoje é homenageado na Irlanda, em um festival chamado Lughnasad. Considerado o último deus a ser aceito no panteão, Lugh é o senhor e criador de todas as artes.

Dagda
Representante supremo da classe dos sacerdotes, é considerado o druida supremo. Considerado um deus bom, senhor da magia e da sabedoria, costuma ser representado usando um taco com duas pontas: uma pode matar 9 homens de uma vez, a outra ressuscita os mortos.

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