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Na onda do surf

Há 5 mil anos, tem gente achando que os melhores momentos da vida acontecem em cima de uma onda.

Por Dilson Branco
Atualizado em 22 fev 2017, 15h51 - Publicado em 30 jun 2005, 22h00

Uma cadela dentro de uma cápsula dando voltas no espaço. Era sobre isso que o mundo falava naquele 7 de novembro de 1957. Apenas 4 dias antes, a União Soviética lançara o Sputnik 2 carregando Laika, o primeiro ser vivo da história a entrar em órbita. Mas para um grupo de jovens estacionados numa estrada havaiana aquilo pouco importava. Em minutos, seriam eles que entrariam para a história. E reafirmariam um antigo dogma da filosofia do surf. “Nós estamos lá fora nos divertindo horrores enquanto o resto de vocês está fazendo qualquer outra coisa” – incluindo aí a conquista espacial.

Aqueles jovens faziam parte de um grupo de californianos que foi para o Havaí surfar o máximo possível e dar um jeito de sobreviver no resto do tempo. Comiam o que pescavam e dormiam em colchões doados pelo Exército de Salvação. Atraídos pelas grandes ondas da praia de Makaha, no litoral oeste da ilha de Oahu, logo ouviram falar de um lugar ainda mais desafiador. O north shore, ou litoral norte, é uma faixa com pouco mais de 10 km de extensão onde estão alguns dos melhores locais de surf do planeta. Mas, nos anos 50, era ainda pouco explorado e estava cercado de lendas.

As histórias sinistras envolviam principalmente a praia de Waimea. Desde que o adolescente Dickie Cross desaparecera naquelas ondas em 1943, falava-se em fantasmas, sacrifícios humanos e num castigo horrível para quem ousasse surfá-las. Com mais de 9 metros de altura, elas eram as ondas mais perigosas conhecidas até então – e continuaram assim pelas 3 décadas seguintes. Mas, naquele 7 de novembro de 1957, um dos jovens parados no acostamento decidiu que era hora de fazer o impossível.

Greg Noll, então com 19 anos, vestia seu tradicional calção listrado, mas o estilo irreverente foi substituído por um ar solene. Atrás dele seguiram os outros. Não há certeza sobre quem conseguiu descer a primeira onda com sucesso, mas a maioria das versões aponta para Noll. Ao chegar ileso à base e ver a onda explodir às suas costas, ele iniciou uma nova era na história da vertente mais temida do surf: as ondas gigantes. “Waimea era minha garota”, diz no documentário americano Riding Giants (“Pegando Gigantes”, não lançado no Brasil), uma coletânea de alguns dos melhores momentos da história do surf. “Eu surfei com uma linda mulher e ela me permitia delírios, desde que eu não passasse dos limites com ela.”

Limite é uma palavra-chave no surf. Encontrá-lo a tempo pode salvar sua vida. Vencê-lo é a glória. E é por isso que a maior parte das histórias memoráveis de surf é feita de 3 ingredientes:

• Medo – um componente tão útil quanto inevitável (imagine o que é estar dentro de uma mandíbula de água do tamanho de um prédio tentando engoli-lo);

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• Pioneirismo – a qualidade principal daqueles que conseguem se destacar no meio de milhões de surfistas anônimos;

• E paixão.

Pelo surf, os apaixonados são capazes de despir-se de tudo. Fred D’Orey, veterano das praias cariocas, que o diga. Quando ele tinha 15 anos, uns amigos foram buscá-lo em casa dizendo que o mar estava perfeito. Ele estava no banho, saiu desesperado, pegou a prancha e entrou no carro. Só quando chegou à praia percebeu que ainda estava enrolado na toalha. O que ele fez? O óbvio! Caiu no mar peladão e, para não chocar os banhistas, pegou ondas até o anoitecer. “Isso não é nada demais. Só demonstra como a gente fica demente para surfar”, escreveu no ano passado na coluna que assina na revista especializada Fluir.

Uma expressão típica dessa “demência” é viajar o mundo em busca de ondas. Todo surfista já teve esse sonho. Vários o realizaram. Quando tinha vinte e poucos anos, o paulista Reinaldo Andraus, o Dragão, um dos melhores jornalistas de surf do país, vendeu a Brasília, juntou as economias e foi desbravar a Indonésia, a Austrália e o Havaí. Numa baía paradisíaca do oceano Índico, passou 10 dias bebendo água de coco, comendo coco e pegando ondas perfeitas. “Foi a melhor coisa que eu fiz na vida”, diz hoje, com 48 anos e uma família para sustentar. A vida de adulto tornou difícil a idéia de embarcar numa surf trip e, para quem mora a dezenas de quilômetros do mar, isso causa crises de abstinência: “Se eu fico 3 fins de semana sem surfar já me dá uma loucura, começo a ficar nervoso”.

A dependência atingiu níveis incríveis na vida do americano Ken Bradshaw. Em 1998, no Havaí, ele desceu uma onda de 20 metros, 4,5 metros maior que qualquer outra já surfada até então. Depois, ficou 1 ano em depressão. “Era como se, por mais que tentasse, nunca pudesse viver aquilo de novo. Como iria me sentir tão bem novamente depois daquela experiência?”

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A paixão pelo surf também costuma adquirir caráter de fé. Em 1978, a Sociedade de Navegação Polinésia construiu uma réplica perfeita da canoa que os polinésios teriam usado para migrar do Taiti para o Havaí. O plano era refazer o trajeto histórico. Como convidado de honra, chamaram o havaiano Eddie Aikau, melhor surfista de ondas grandes da época. Na viagem, um buraco no casco deixou a tripulação à deriva. Aikau pegou sua prancha e acreditou que poderia remar sobre ela 22 km em alto-mar até a ilha mais próxima, para pedir ajuda. Horas depois seus companheiros de jornada foram resgatados. Eddie nunca mais foi visto.

Pioneirismo

Em memória de Eddie Aikau, foi criado, em 1984, um campeonato anual no Havaí, que premia o vencedor com 50 mil dólares. É um bom exemplo do nível de profissionalismo que o esporte atingiu nas últimas décadas. Mas, há 30 anos, tudo era muito precário. Principalmente no Brasil. Assim, quando Paulo Issa – um jovem que anos antes tinha desvirginado o litoral paulista com uma prancha improvisada feita de madeirite (aquele compensado barato usado em canteiros de obras) – decidiu organizar um Festival Brasileiro de Surf, em Ubatuba, seu nome entrou para a história.

Issa espalhou cartazes em praias vizinhas e no Rio de Janeiro. Atendendo ao chamado, 70 surfistas do Sul e do Sudeste do país chegaram com seus fuscas à Praia Grande, em janeiro de 1972. Só quem não quis participar da festa foram as ondas. Água parada no mar, gente frustrada na areia, Paulo Issa subiu num palanque e gritou: “Pessoal, tá adiado prá julho”. O vencedor não ganharia nenhum tostão. Mesmo assim, 6 meses depois, todos aqueles fuscas voltaram.

Na mesma época, outro garoto fazia história na Califórnia. Durante anos, Jeff Clark observou, do alto de um pontal, uma majestosa onda de mais de 10 metros de altura quebrando a 1 km da costa. Numa tarde quente do verão de 1975, sozinho, o jovem de 17 anos pegou sua prancha, remou até o recife e, pela primeira vez desde que a natureza a criou, aquela onda teve companhia.

Por 15 anos Jeff Clark seria o único homem na vida dela. Apenas no início da década de 1990 ele convenceria outros malucos a surfá-la. Mas seu nome, Maverick’s, só ficaria conhecido no mundo inteiro em 1994, sob circunstâncias trágicas. No dia 23 de dezembro, as lendas vivas do surf havaiano Brock Little e Mark Foo foram conhecê-la. A presença daqueles homens ali tornou-se emblemática porque tradicionalmente eram os californianos que iam para o Havaí em busca dos paredões. Foo perdeu o equilíbrio numa onda de apenas 5 metros e desapareceu no mar. Seu corpo só foi encontrado 1 hora depois. A morte de Mark Foo – que já havia declarado várias vezes que morrer surfando ondas grandes seria uma boa maneira de partir – tornou-se a notícia mais divulgada da história do surf e conferiu a Maverick’s a fama de maldita. “Essa praia precisa de padres”, escreveu o jornalista Tom Riddle no New York Times. “O corpo de um surfista experiente desapareceu engolido pelas ondas que crescem como ervas-daninhas e, ainda assim, seus pares continuam entrando no mar.”

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Medo e limite

Hoje, a fama de maldita pertence a outra onda. Teahupoo (lê-se “cho-pu”), no Taiti, quebra bruscamente num recife de coral quase seco, formando um dos tubos mais volumosos, belos e fatais do planeta. No campeonato mundial de 2000, o turbilhão fraturou em 3 lugares o pescoço e as costas do polinésio Briece Taerea, que entrou em coma e morreu. Apenas 1 semana depois, era a vez do catarinense Neco Padaratz enfrentar a fúria do turbilhão.

O mar o engoliu. Suas pernas ficaram presas nos corais. Submerso, sendo revirado pela violência dos vagalhões, Neco sentiu que estava num quarto escuro, sem janelas nem portas, onde não precisava mais de ar. Então pediu a Deus uma chance. Mais uma onda bateu e suas pernas se soltaram. Mesmo livre, ele teria morrido de exaustão se um jet ski não resgatasse seu corpo.

Nos meses seguintes, Neco perdeu o gosto pelas competições. “Eu tomava uma onda de meio metro na cabeça e achava que estava morrendo”, conta. Com a ajuda de um psicanalista, ele conseguiu voltar à velha forma. E a Teahupoo. Em 2004, Neco surfou, mas não venceu nenhuma bateria. Em maio deste ano, pegou um tubo perfeito – e ganhou nota 10 unânime. “Foi como se Deus estivesse batendo nas minhas costas e dizendo que era bom eu estar ali, querendo continuar a aprender.” Perseverança. Eis aí a outra palavra-chave do surf.

Ondas em série

Outros episódios fundamentais para a história do surf

• 3000 a.C.
Moradores da atual costa do Peru já deslizavam sobre ondas em embarcações de fibra de junco.

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• 1000 d.C.
A intensa dedicação do povo havaiano faz surgir as primeiras pranchas, de madeira maciça, que permitem surfar de pé.

• 1777
O navegador James Cook faz o primeiro relato escrito sobre surf ao ver um taitiano deslizar sobre a água.

• 1820
Missionários calvinistas instalam-se no Havaí. A cultura nativa é considerada imoral, e o surf, praticamente banido.

• 1900-1907
O Havaí é anexado pelos EUA e as lideranças religiosas são substituídas. Pranchas improvisadas reaparecem nas praias.

• 1956
A espuma de poliuretano substitui a madeira na fabricação de pranchas, tornando-as muito mais leves e fáceis de manobrar.

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• 1967
Pranchas menores (com no máximo 2 m) e mais leves (cerca de 6 kg) tornam-se padrão em todo o mundo.

• 1971
Surge a cordinha que prende a prancha ao tornozelo. Antes, tombos rendiam uma boa nadada até alcançar a prancha.

• 1982
É criada a Associação dos Surfistas Profissionais (ASP), a FIFA do surf que organiza o campeonato mundial.

• 1992
Os havaianos Buzzy Kerbox, Darrick Doerner e Laird Hamilton criam a town-in, modalidade que lança o surfista na onda usando um jet ski. Paredões com mais de 9 m de altura, impossíveis de se pegar remando, tornam-se acessíveis.

• 2003
O havaiano Pete Cabrinha bate o recorde mundial de altura ao surfar uma onda de 22 m, em Jaws, no Havaí.

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