Texto Maurício Horta
Todo ano, 200 milhões de toneladas de cocô são lançadas ao ar livre por 2,6 bilhões de seres humanos sem acesso a um banheiro apropriado. A inhaca é tamanha que as Nações Unidas declararam 2008 o Ano Internacional da Sanitização, depois de 150 especialistas de 44 países terem se reunido em 2007 na Conferência Mundial de Banheiros (tradução aproximada de World Toilet Summit), feita no ano passado em Nova Délhi. E poucos lugares seriam melhores para uma conversa de banheiro do que a capital indiana.
A primeira civilização a criar uma privada com descarga ligada a um sistema de esgoto surgiu na Índia. É uma pena que, 4 500 anos mais tarde, o país tenha o maior problema sanitário do mundo. Sua taxa de sanitização de 33% pode estar bem acima dos 9% do africano Chade; mas, do 1,136 bilhão de indianos, cerca de 750 milhões têm que descomer seus curries em campos abertos ou em latrinas secas. Isso equivale às populações inteiras dos EUA, da Indonésia e do Brasil juntas evacuando fora do banheiro.
Tradicionalmente, a cultura indiana valoriza a higiene pessoal, mas observa menos a do ambiente comunitário. Lá, deve-se sempre tomar banho antes de entrar numa cozinha ou depois de fazer o número 2. Nas ruas, ambulantes fazem e servem comida a menos de 1 metro das valas onde o esgoto corre a céu aberto.
Por falar em esgoto, somente 232 cidades das mais de 4 700 cidades indianas têm um sistema de escoamento de dejetos. Que mais transborda do que escoa, por sinal: em Calcutá, cidade de 14 milhões de habitantes no sul do país, a rede é praticamente a mesma instalada pelos ingleses no século 19 – dimensionada para o uso por 600 mil pessoas.
Mas a situação está melhorando. Em 1990, 1% do campo indiano tinha sanitização e 12,3% das crianças morriam antes dos 5 anos. Hoje, o acesso no campo subiu para 22% e a mortalidade infantil caiu para 7,4% – número ainda alto, se comparado com os 3,3% no Brasil e com o 0,6% no Reino Unido. O país pretende universalizar o acesso ao banheiro até 2012. Soluções paralelas não faltam: elas vão de usinas de biogás em banheiros públicos a fazendas de peixes alimentados com o esgoto de Calcutá.
• 120 mil toneladas é a massa diária de fezes produzida na Índia.
• 1,2 bilhão de litros é o volume diário de urina.
• 18 bombas atômicas seria o potencial explosivo diário do excremento indiano, caso ele fosse completamente convertido em biogás.
• R$ 0,46 é o salário mensal de um limpador de fossas indiano (veja boxe ao lado).
O pior emprego do mundo
Seu emprego é uma m…? Talvez, mas provavelmente está longe de ser a pior profissão do mundo.
Mulheres, imaginem esvaziar fossas sépticas e carregar os excrementos humanos numa cesta sobre a cabeça. É do mal, mas pode ficar pior: espere chegar a época das monções para as chuvas diluírem as fezes, que fatalmente escorrerão em seu rosto e roupa.
Já os homens, pensem num bueiro de onde, ao abrir, saiam baratas e ratos. Quando o movimento diminuir, mergulhe no caldo fétido e escuro, só de tanga fio-dental, para desobstruir as tubulações. Nada de luvas nem máscaras para amontoar do lado de fora a massa escura feita de fezes, absorventes femininos, camisinhas e embalagens plásticas. No máximo, pás, baldes e carriolas. Muitos morrem afogados no excremento ou envenenados pelo gás metano – resultante da fermentação das fezes – que se acumula nas galerias e ainda causa explosões letais.
Esse é o trabalho dos 650 mil scavengers indianos. Em inglês, scavengers são os animais que se alimentam de carniça (como urubus e hienas), mas, na Índia, a palavra se tornou apelido para a profissão daqueles que nasceram na fossa da hierarquia hindu. Os dalits são a mais baixa casta, mas mesmo eles, os intocáveis, estão divididos em subcastas. Para grupos como os bhangis, pakhis, balmikis e sikkaliars, o cocô é a opção única – e hereditária. Pouca gente parece se incomodar com isso na sociedade indiana. Tanto que os mergulhadores de bueiros são contratados por empresas a serviço do poder público em cidades como Mumbai e Nova Délhi.