Os arquitetos que inventaram São Paulo
João Carlos Cauduro e Ludovico Martino projetaram a Av. Paulista, o zoológico e a sinalização do transporte de São Paulo – e de mais de 350 empresas do país.
“O Ludovico adorava coisas antigas. Relógios, caixas de música, a casa dele só tem coisa de museu. Só para você ter uma ideia”.
Pausa. Quem conta a história é o arquiteto João Carlos Cauduro, 87, que usa óculos redondos de armação rosa mais modernos que os meus. Com um armário preto, cadeiras vermelhas e todo o resto branco, seu escritório – um apartamento antigo e arejado próximo à Av. Faria Lima, em São Paulo – é como sua obra: apenas o necessário, tudo direto ao ponto. Seu sócio e amigo por toda a vida, Ludovico Martino era conhecido por sua paciência com os clientes, seus surtos de inspiração e sua coleção de objetos históricos, selecionados com muito, muito critério.
“Uma vez”, continuou Cauduro, “ele foi a um leilão e tinha uma escultura de uma mulher pelada, branca. Ela estava em cima de um pedestal. Ele foi lá e fechou o negócio, depois chegou no cara e falou: ‘você fica com a escultura que eu só quero levar a base’. Era uma base excepcional, devia ter uns 400 anos!”
Martino morreu em junho de 2011, e não deixou para trás só seu lar com jeito de antiquário steampunk – que incluía até um piano mecânico, engenhoca do início do século que lê rolos de papel para tocar músicas sozinho. Da fundação da Cauduro Martino Arquitetos Associados, em 1964, até sua morte, aos 78 anos, Martino e o amigo seriam responsáveis pela identidade visual de mais de 350 empresas públicas e privadas do País – do Banco do Brasil à TV Cultura, passando pelos aviões da TAM, as escolas da Cultura Inglesa e as lojas Riachuelo.
De quebra, eles deram rosto à maior cidade do Brasil: foram responsáveis por toda a sinalização dos sistemas de trens, ônibus e metrô de São Paulo, bolaram a arquitetura do zoológico da cidade e criaram as calçadas e postes que deram a identidade única à Avenida Paulista.
O berço do “clean”
Hoje é impossível andar pela cidade (ou pelo País) sem tropeçar em alguma obra desses ilustres desconhecidos. Mas, para entender as referências da dupla, é preciso voltar à Europa de cem anos atrás.
Até 1918, a Alemanha foi um país fragmentado, um conjunto de territórios mais ou menos autônomos comandado pelo reino da Prússia. Ao final da 1a Guerra Mundial, uma revolução proclamou a República de Weimar e, com a democracia, o governo alemão começou a correr atrás do atraso econômico.
Para ajudar na industrialização, foi fundada, em 1919, a primeira escola pública de design do mundo: a Bauhaus. De casas inteiras a simples chaleiras, os produtos projetados ali eram funcionais e se adaptavam bem à produção em série. Prédios baseados em formas geométricas e cores primárias – como o do MASP, o Museu de Arte de São Paulo – ilustram bem esses princípios.
A tendência chegou ao Brasil no final da década de 1950 e, em 1962, foram incluídos cursos de programação visual e desenho industrial no currículo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, a FAU – na época, sediada em uma mansão em Higienópolis, no centro da capital. Para a geração de João Carlos Cauduro e Ludovico Martino, a grande lição dos alemães foi que arquitetura não é só desenhar prédio.
O projeto de uma cidade ou de uma empresa deve abraçar tudo: construções, calçadas, placas de trânsito, latas de lixo, mobiliário, uniformes e veículos de manutenção. E o melhor jeito de combinar coisas tão diferentes é manter tudo simples. Mais ou menos como você faz quando está com preguiça de se vestir: um All-Star preto e uma calça jeans nunca estarão errados. A filosofia foi chamada pelos dois de “design total”.
“O design total é a crença no poder do projeto, na onipotência do arquiteto. Não há nada fora do planejado”, explica o designer Celso Longo, autor de uma dissertação de mestrado sobre a dupla. “E essa é a crítica que muita gente faz ao movimento moderno: a de que ele é utópico.” A utopia não era fruto do acaso: Cauduro se formou no mesmo ano da inauguração de Brasília – e todo jovem arquiteto tinha a ambição de projetar sua própria cidade.
Apesar da mãozinha da história, a estética alemã não caiu logo de cara nas graças dos empresários. No Brasil do início dos anos 1950, marcas famosas como os ônibus Cometa e as geladeiras Brastemp ainda adotavam o art decó que hoje é sinônimo de retrô em lojas de decoração.
“O Ludovico era importante porque ele nunca falou ‘não’ para ninguém, mas o cliente também não conseguia convencê-lo”, avalia Cauduro. “O dono da empresa queria a todo custo manter tradições familiares, a gente perdia um tempão, tinha que catequizar. Eu não tenho muita paciência, mas ele era ótimo, muito educado.”
Os projetos mais famosos da dupla
O império do simples
Superada a tradição, na década de 1970 o modernismo passou a ser visto com mais naturalidade – inclusive pelo poder público, que encomendou à Cauduro Martino seus projetos mais famosos. Os tótens pretos da Avenida Paulista são um pequeno milagre do combate à poluição visual. Concentram semáforos, nomes de ruas, sinais de trânsito e pontos de referência. Nas calçadas, eles projetaram bancas com revistas, flores e abrigos para chuva e sol, com bancos de acrílico, todos pré-fabricados. A ideia era garantir a ocupação do espaço público. Nos anos 1990, o projeto já estava descaracterizado pela falta de manutenção – e, na gestão da prefeita Luiza Erundina, acabou destruído. “Ela arrancou todos os abrigos, eram 2 mil m² de abrigo”, relata Cauduro. “Quando eu vi, não dava nem para processar.” Os tótens sobreviventes, no entanto, dão cara à Paulista até hoje.
O Zoológico de São Paulo foi um projeto ainda mais abrangente. Além de placas discretas com informações como peso, altura, nome científico etc., cada animal ganhou seu próprio ícone quadrado. O resultado foi um conjunto de simpáticas ilustrações minimalistas que estavam por toda a parte, nas jaulas, em mapas e em folhetos de divulgação.
Deles também foi a ideia de abandonar as grades de metal: eles separaram os animais do público usando fossos invisíveis e criaram cenários parecidos com os naturais, o que melhorou a qualidade de vida de grandões como tigres e ursos. O espaço dos animais sobrevive até hoje – ao contrário das placas, que foram substituídas por montagens coloridas e de gosto duvidoso.
O metrô de São Paulo foi outro que ganhou um projeto que acabou desvirtuado. A sinalização proposta pela dupla até saiu do papel, mas foi alterada. Nas plataformas, foram mantidos os nomes das estações em branco sobre faixas com a cor da linha – mas complementos essenciais, como ícones que mostram a posição relativa da estação na linha e as baldeações possíveis, foram abandonados.
Meio século depois da fundação do escritório, as soluções de Cauduro e Martino ainda têm muitos fãs. “Os sistemas de metrô com sinalização modernista funcionam e têm vida longa. Mesmo hoje eu não descartaria aplicar o trabalho que eles desenvolveram para os ônibus de São Paulo”, afirma Chico Homem de Melo, autor de A Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil. “A escola de design formal, em São Paulo, era a FAU, da USP. Mas a escola informal era a Cauduro Martino. Foram eles os formadores de muitos dos principais designers que atuam hoje.”
Cauduro, por sua vez, pega leve na autoavaliação: “Qual é a sensação de andar pela cidade e ver sua obra por toda parte?”, perguntei. “Ah, a gente estava acostumado. Eu nem percebia.”