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Paracelso: mago e cientista

Ele saiu de casa aos 14 anos em busca da pedra filosofal. Médico e alquimista, venceu a peste, antecipou em 500 anos a cura da sífilis e revolucionou a Medicina.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 17 dez 2021, 13h05 - Publicado em 31 mar 1994, 22h00

Ousadia e irreverência certamente não faltavam ao garoto Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim. Zombar dos professores durante as aulas pode ser classificado, ainda hoje, como um sinal de intolerável rebeldia de um adolescente de 14 anos, na oitava série do primeiro grau. Imagine-se fazer o mesmo, em 1508, com os catedráticos de Medicina da Universidade de Viena. Quem esse fedelho pensava que era? Paracelso, ele responderia, adotando esse nome três anos depois, ao bacharelar-se em Medicina. Para — além de, maior que — Celso. Melhor que Aulus Cornelius Celsus, o grande médico romano do século I, autor de De Medicine, a bíblia de todos os médicos da época. Pretensioso? O jovem Theophrastus não estava nem um pouco preocupado com a opinião de seus escandalizados mestres.

Nos trinta anos seguintes, Paracelso percorreria a Europa e o Oriente Médio. Estudando ciências ocultas e magia negra, curando feridos nas frentes de batalha e vencendo a peste. Aprendendo com ladrões, curandeiros e ciganos para ensinar nas principais universidades. Queimando os manuais de Medicina e escrevendo tratados sobre duendes e cirurgia. Buscando a pedra filosofal, capaz de transformar chumbo em ouro e tornar o homem imortal, e criando a homeopatia e a quimioterapia. Assim, tornava-se um dos grandes cientistas de todos os tempos, enquanto era acusado de charlatão e pretensioso pelos médicos da época. “Pretensiosos”, respondia, “são eles.” Afinal, que sabiam sobre química ou mineralogia?

Sem contar o que aprendera de prático em disciplinas não científicas, como a alquimia, ou a cabala, que começara a estudar ainda na infância na cidadezinha de Einsiedeln, próxima de Zurique, onde nasceu em novembro de 1493. Quando não estava acompanhando as consultas do pai, médico do povoado, o irrequieto Theophrastus fugia para ler na igreja atrás de sua casa. As calmas tardes de leitura do pequeno Theophrastus na igreja terminariam com a morte de sua mãe e a mudança do pai para Villach, no sul da Áustria. Nessa cidade, o futuro Paracelso aprenderia teorias e práticas daquilo que, mais tarde, se tornaria a Química.

Aprendia com o próprio pai, doutor von Hohenheim, professor na Bergschule, uma escola criada pelos Fugger, uma rica família de banqueiros de Augsburg, para formar técnicos para suas minas de ouro, ferro e cobre. Em 1507, o garoto Theophrastus deixa Villach para unir-se aos grupos de jovens andarilhos. A Europa vivia as mudanças e lutas políticas do fim da Idade Média e o começo da Renascença, com a consolidação do absolutismo. Surgiam os primeiros processos de unidade nacional, que levariam aos Estados modernos.

À procura de saber, ele vai estudar com Iean Tritemio, abade do mosteiro de São Jorge, em Würzburg, autor dos primeiros livros que lera na infância, mas rompe com o mestre por divergência em algumas experiências de magia negra. Passa de uma universidade a outra — Viena, Wittenberg, Leipzig, Heidelberg e Colônia —, mas seu espírito rebelde decepciona-se com todas. “Como as faculdades conseguem produzir tantos idiotas?”, zomba, com sarcasmo típico. “As universidades não ensinam tudo. Um médico deve procurar as parteiras, ciganas, feiticeiros, andarilhos e ladrões para aprender com eles.” Nos anos seguintes, trabalha nas guerras dos Países-Baixos como cirurgião militar, ocupação desprezada por outros médicos. Vai para a Rússia e chega até a Tartária onde é feito prisioneiro. De passagem pela Alemanha, é preso em Nördlingen, por ressentimento de colegas médicos, a quem chamava de “admiradores de urina”. Escapa para a Suécia e, em 1521, trabalha de novo como cirurgião militar na Itália. Depois, viaja pelo Egito, Arábia, Terra Santa e Constantinopla.

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Em todos os lugares procura aperfeiçoar seus conhecimentos sobre o que chamava de forças latentes da natureza. Condenava a prática vigente à época, de cobrir os ferimentos com musgo ou esterco. “As feridas devem ser drenadas. Prevenida a infecção, a natureza se encarregará de curá-las.” Repudiava também as pílulas milagrosas, receitadas para qualquer doença, assim como infusões, bálsamos, ungüentos e fumigações usadas indiscriminadamente. Foi o primeiro a usar venenos em pequenas doses para curar, e criou a quimioterapia, preparando medicamentos com enxofre, ferro, cobre e mercúrio.

Em 1530, irritou o conselho médico de Nuremberg por escrever a melhor descrição da sífilis até então. Afirmou que a doença podia ser tratada por via interna com compostos de mercúrio — diagnóstico que seria comprovado quase quatro séculos depois, em 1909, pelo alemão Paul Ehrlich. Este criou o Salvarsan, à base de mercúrio, o primeiro remédio eficaz contra a sífilis. Paracelso foi também o primeiro a ligar o bócio aos minerais da água potável, especialmente o chumbo. Freqüentando ta-ver-nas, em meio a prostitutas, ladrões, soldados e trabalhadores, escreveu o livro As enfermidades dos mineiros, considerado o primeiro tratado de Medicina do trabalho. Aí identificou pela primeira vez como causa da silicose a aspiração do pó de silício (esse livro levou o então jovem Karl Marx a escrever uma biografia do autor, em 1841, para registrar o tricentenário de sua morte). Mas os trabalhos práticos não eram o único interesse de Paracelso. Ele também formulou idéias gerais onde afirmava que todos os corpos eram compostos de três princípios: energia, solidez e fluidez. Na linguagem dos alquimistas, esse trio correspondia, respectivamente ao fogo, ou enxofre alquímico; à terra, ou sal; e ao líquido, ou mercúrio. Adepto do esoterismo, estava convencido de que o conhecimento dividia-se em cinco estádios: uma doutrina secreta, ou filosofia hermética; o misticismo; o conhecimento científico; a prática alquímica e da medicina; e a ars magna, ou arte maior, uma síntese dos quatro anteriores. Como conseqüência desse método, acreditava na existência de um princípio vital benéfico — que talvez se possa comparar ao sistema imunológico. A ação de tal princípio, dizia Paracelso, devia ser preservada durante a doença, mantendo-se o doente no que chamava de “expectativa higiênica. Por isso, opunha-se radicalmente aos vomitórios e sangrias usuais na época, que debilitavam o doente.

Como obtinha curas espetaculares, suas histórias espalhavam-se de cidade em cidade. E quando correu a notícia de que aceitara lecionar Medicina na universidade de Basiléia, em 1527, para aí foram estudantes de todas as partes da Europa. Orgulhosas, no início, as autoridades municipais ficaram apreensivas quando ele convidou para suas conferências não apenas os estudantes, mas todo o povo. Essa apreensão iria virar escândalo quando Paracelso, cercado por uma multidão, queima em praça pública livros dos pais da Medicina: o grego Galeno (129- 199) o árabe Avicena (980- 1037) e o romano Celso. O resultado foram violentos choques com farmacêuticos, médicos e juízes da cidade. Paracelso já não era bem visto porque sempre se recusara a usar adornos e distintivos próprios dos médicos medievais, que por sua vez o chamavam de Lutero Médico, em alusão a Martinho Lutero (1483-1546), fundador do protestantismo.

Adivinhando a intenção dos inimigos, Paracelso defendeu-se. “Lutero Médico? Lutero que defenda o que ele diz, eu só me responsabilizo pelo que digo. Mas o que vocês querem para Lutero é o mesmo que querem para mim: a fogueira.” Na primavera de 1528, a fogueira parecia já estar pronta, pois Paracelso é obrigado a fugir de Basiléia na escuridão da noite, só com a roupa do corpo. Ele passa os três anos seguintes entre Colmar e Nuremberg e mais três em Saint Gall. Foi seu mais longo período de vida sedentária e durante esse tempo escreveu O livro da cirurgia.

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De Saint Gall é chamado para enfrentar uma epidemia de peste na cidade de Stertzing. Salva centenas de vidas dando aos doentes pãezinhos feitos com um pouco das secreções do próprio paciente, que coletava com a ponta de uma agulha. “O que provoca a doença também pode curá-la, se administrado em pequenas doses”, ele enuncia pela primeira vez o que seria mais tarde a base da homeopatia. O sucesso na luta contra a peste o transforma em uma lenda viva que aumenta o impacto do lançamento de O livro da cirurgia, em 1536.

O livro amplia ainda mais a fabulosa reputação que obtivera durante os meses em que lecionara em Basiléia, e os aristocratas fazem fila na sua porta. Rico, famoso e respeitado aos 45 anos de idade, retira-se para Mildenheim para redigir sua obra. Nos dois anos seguintes, escreve sem parar. Sobre a peste e as epidemias, as feridas abertas e as chagas, as úlceras dos olhos e o glaucoma. Tratados sobre normas para as análises químicas e livros como A arte de receitar, Os princípios ativos que se obtêm pela trituração dos remédios, A preparação do heléboro — uma planta medicinal — e obras sobre alquimia.

Trata, também, de filosofia e ocultismo. Sobre filosofia, escreve O livro dos prólogos e O livro das entidades, composto de quatro tratados pagãos e um teológico. Sobre ocultismo, Filosofia oculta e o Tratado das ninfas, silfos, duendes, salamandras e outros seres. Finalmente, um livro de profecias sobre o final dos tempos, com o título de Prognósticos, composto de 32 textos sobre gravuras alegóricas que recordam as do também médico e contemporâneo Nostradamus (1503-1566).

Muda-se então para Salzburgo, a convite do príncipe-arcebispo duque Ernst da Baviera, que o nomeia médico oficial da cidade. No início do verão de 1541, porém, interna-se em um hospital e passa a escrever sobre misticismo e comentários de passagens bíblicas. No último dia do verão, é um abatido Paracelso que aluga um aposento na Pousada do Cavalo Branco e chama o tabelião para redigir seu testamento. Quando o escrivão se retira, escreve, até nos mínimos detalhes, as instruções para seu enterro. Três dias depois está morto.

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O enterro, conforme seu desejo, foi na igreja de Santo Estêvão, em Salzburgo, onde em 1591 os moradores mandaram colocar uma placa de mármore: “Aqui jaz Philippus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, famoso doutor em medicina que curou toda classe de feridas, a lepra, a gota, a hidropisia e outras várias enfermidades do corpo com ciência maravilhosa. Morreu em 24 de setembro do ano da graça de 1541”.

O mundo no século XVI

Ainda não existiam nações, no sentido atual do termo. Eram divididas entre centenas de senhores feudais. Como médico militar ou mero andarilho, Paracelso percorreu a Europa e parte da Ásia, onde curou o filho do Grande Khan

A lenda do superior desconhecido

Junto à sua obra científica, às vezes mesclada com ela, Paracelso nos deixou sua interpretação do Universo. Nela, matéria e espírito, que chamava de corpo astral, convivem e se interrelacionam. A partir dessa visão, usa as ciências ocultas para chegar à Medicina científica e propunha atuar sobre o corpo astral como veículo para atingir o físico.

Acredita que a alma está constituída por uma substância natural fluida que não nasce com o homem, mas se forja nele, como o que chamamos hoje de personalidade. A mens divina, ou espírito, que dá o sopro vital, confere a forma, anima e reina sobre tudo. Nessa linha, distingue duas vidas no homem: a racional e a instintiva, que corresponde aos estados alterados da consciência, como o sonho e o êxtase.

Com a separação entre o corpo astral e o corpo físico, chega o momento de regressar ao grande oceano comum, algo muito próximo do que o psiquiatra Carl Gustav Jung chamou, no século XX, de inconsciente coletivo. No conceito paracelsiano, a morte não é um momento, mas um processo com um período de morte aparente. Alguns espíritos podem voltar à vida quando estão nesse estádio, como fizeram Lázaro e Jesus. Em um nível acima atuam os superiores desconhecidos, espíritos que inspiram grupos de pessoas para ajudá-los a despertar. Apesar da fama de mago, foi prin-cipalmente um místico, como Mi-guel Servet (1511-1553) e Nostradamus, dois outros notáveis médicos do século XVI parecidos com ele no temperamento e na heterodoxia.

Irônico, solitário e apaixonado

“Tudo o que digam os teólogos e sofistas contra mim não me atinge. Que me chamem de mago, feiticeiro ou sacrílego, que me tratem como os judeus ou os fariseus trataram a Cristo”, afirma Paracelso na obra Filosofia oculta.

Esse homem tem uma paixão natural, na mesma linha que outros grandes heterodoxos do Renascimento, como Giordano Bruno ou o espanhol Miguel Servet. Certamente é um gênio solitário, que tem consciência da importância de suas contribuições e da influência que exerceu sobre o establishment. “Pouco me importa que me acusem de apaixonado ou ignorante”, escreveu em O livro dos prólogos, “bem sei que dirão que minha física, minha cosmologia, minha teoria e minha prática são singulares, surpreendentes e até absurdas — Não me assustam, posso dizer-lhes, as multidões de seguidores, sejam de Aristóteles, de Ptolomeu ou de Avicena.”

Quanto à questão do mau humor, não é fora de propósito pensar que se tratava de uma estratégia defensiva para manter-se a salvo de olhares perigosos sobre as explorações místicas e próprias da tradição hermética que constituíam sua prática intelectual. Não esquecer que Giordano Bruno (1548-1600) e Miguel Servet acabaram supliciados e mortos publicamente por expor idéias bem menos perigosas. Finalmente, o cientista Paracelso nos assombra pelos conceitos modernos sobre muitos temas médicos: o mecanismo das infecções, a opção pelo princípio ativo em lugar dos polifármacos, a observação da morte como um processo — hoje falamos de morte clínica, com as reversíveis e irreversíveis, por exemplo. De certa forma, intui o inconsciente coletivo, cujo conceito Carl Gustav Jung desenvolverá no século XX. Também são atuais suas observações sobre o sonho, no qual distingue fases e causas distintas para seus conteúdos e que hoje são endossadas pela Psicologia, como os sonhos superficiais, com causas endógenas ou exógenas, e sonhos do inconsciente profundo.

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