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Rituais mágicos

Invocar anjos e demônios, transformar metal em ouro, criar vida usando barro: para os praticantes da chamada cabala prática, corrente que ganhou força na Idade Média, nada parecia impossível. Conheça os rituais mágicos usados por esses cabalistas para entrar em contato com o sobrenatural.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h36 - Publicado em 19 mar 2011, 22h00

Texto Michelle Veronese

O rabino Moisés de Viena gostava de contar aos amigos sobre o dia em que estivera na cidade de Rosenburg, na Áustria. Mal havia chegado e um mensageiro bateu à sua porta, dizendo: “Um homem está morrendo e quer um pouco de seu vinho”. Ele achou o pedido um tanto estranho, mas atendeu sem fazer perguntas. Mais tarde, descobriu do que se tratava. Corria a lenda, na Idade Média, de que os judeus dominavam as artes ocultas, sendo capazes de invocar anjos e demônios. Também se acreditava que o vinho usado em cerimônias judaicas tinha poderes mágicos e era capaz de curar doenças. O moribundo, como deduziu o rabino, pedira a bebida na esperança de escapar da morte.

Superstições como essas eram comuns no período medieval. Naquela época, o imaginário coletivo estava povoado por bruxas, magos e demônios. E, se alguma crença destoasse da religião dominante, o cristianismo, logo surgiam especulações, boatos e crendices. Era o caso da cabala ma’asit ou cabala prática, que muita gente via com medo e desconfiança. Segundo os estudiosos do misticismo judaico, essa corrente teria se desenvolvido paralelamente à cabala tradicional. Mas, em vez de estudar ou meditar sobre as forças divinas, seus adeptos propunham maneiras práticas de experimentá-las. “A mística judaica sempre incluiu rituais de magia”, diz Michel Schlesinger, rabino da Congregação Israelista Paulista. “Encantamentos, exorcismos e outras práticas eram realizados por essas pessoas. Hoje, esses rituais são vistos pela comunidade judaica apenas como objeto de estudo e curiosidade.”

Apesar do caráter mágico, os praticantes da ma’asit rejeitavam a alcunha de magos. Eles eram chamados de ba’alem shem, do hebraico “mestres do Nome”. Para entrar em contato com o mundo sobrenatural, esses cabalistas do truque usavam uma série de métodos secretos. O mais importante consistia na recitação dos chamados nomes divinos. Retiradas das escrituras sagradas, eram palavras utilizadas tradicionalmente para se referir a Deus e a seus atributos. Os cabalistas acreditavam que, se essas palavras fossem declamadas no momento certo e seguindo determinados rituais, podiam interferir no curso dos acontecimentos.

A rotina dos adeptos da ma’asit incluía rituais que teriam o poder de alterar a matéria. Esses rituais eram transmitidos de mestre para aluno, geração após geração: estudiosos acreditam que sua origem está na Antiguidade, em regiões como o Egito e a Pérsia. “O que se tornou conhecido como cabala prática era, na verdade, um conjunto de todas as práticas mágicas encontradas no judaísmo desde o período talmúdico até a Idade Média”, diz o historiador Gershom Scholem, no livro A Cabala e Seu Simbolismo.

A maioria desses procedimentos se perdeu com o tempo: somente alguns deles foram registrados em livros e tratados de magia. Entre os poucos exemplares conhecidos do gênero está o Sefer ha-Razim (“Livro dos Segredos” ou “Livro dos Amuletos”), do século 4, que ensina como invocar anjos. O Harba de Moshe (“A Espada de Moisés”), organizado entre os séculos 1 e 4, apresenta uma lista de nomes de anjos que teria sido transmitida diretamente a Moisés, o patriarca bíblico. Seu autor ensina a utilizá-los em todo tipo de encantamento, desde poções para atrair o amor e curar doenças até fórmulas secretas para conseguir andar sobre a água.

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Os encantamentos, por sinal, eram muito populares entre os cabalistas mágicos. Acreditava-se que, fazendo uso de determinados comandos verbais, lidos em voz alta, seria possível conjurar entidades sobrenaturais. Essas práticas se baseavam na crença em uma dimensão invisível – chamada de mundo intermediário ou mundo do meio – habitada por milhares de anjos e demônios. Mas, para invocar tais entidades, era necessário usar os elementos certos e recitar as palavras adequadas no número de vezes indicado. Do contrário, o feitiço poderia dar errado e despertar forças incontroláveis.


Forças sobrenaturais

A crença em anjos e demônios tinha como base alguns trechos específicos do Zohar. Segundo o livro sagrado da cabala, haveria 3 classes de demônios: um grupo parecido com os seres humanos, outro que lembraria anjos e um terceiro em forma de animais. A mais temida, no lado das trevas, era Lilith, a rainha dos demônios, que teria sido a primeira mulher de Adão. Lilith, dizia-se, era casada com Asmodeu e gerenciava suas hordas de uma caverna no fundo do mar. Para identificar a presença de um deles, os praticantes sugeriam afastar as camas e, sobre o chão empoeirado, procurar pegadas semelhantes às de pássaros. A tradição contava que alguns desses seres tinham pés de aves e, mesmo quando disfarçados de humanos, esse aspecto permanecia inalterado.

Durante séculos, essas lendas e rituais foram deixados de lado. Quando a cabala se popularizou e se tornou acessível a todos, no século 20, alguns deles voltaram a ganhar espaço, mas de maneira bastante simplificada. É o caso das recitações ou visualizações de letras e palavras hebraicas, com intuito de atrair equilíbrio e saúde para o praticante – o que não deixa de ser um tipo de magia. “No fim das contas, pouco importa se esses rituais, magias, superstições são reais ou não, se são fatos ou lendas”, diz Schlesinger. “Se o real e a fantasia enriquecem a nossa vida de alguma maneira, se nos fazem pessoas melhores, isso é o mais importante”.


Para invocar anjos e demônios

Origem
Foi descrito na Chave de Salomão, famoso livro de magia produzido entre os séculos 14 e 15. A obra era muito popular na Itália durante o Renascimento, quando diversos pensadores passaram a ler e produzir tratados sobre cabala e ocultismo.

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Os ingredientes
• Roupas brancas, de linho ou seda
• Sapatos brancos
• Uma coroa branca

O ritual
É um ritual longo e complexo. Depois de vestir as roupas indicadas, escreva os nomes de Deus na coroa e coloque-a na cabeça. Trace no chão dois círculos, um dentro do outro. Os nomes de Deus devem ser novamente escritos entre um círculo e outro. O iniciado entra no círculo (no qual estará protegido) e profere uma série de orações e palavras mágicas para que a invocação ocorra. A entidade chamada realizará as tarefas que forem ordenadas.

Para voar e levitar

Origem
Não se sabe a origem ritual, mas dizem que era praticado pelos cabalistas desde a Antiguidade. Foi registrado no livro Grimório do Poder, atribuído a Aptolcater, um mestre dessa tradição que teria vivido na Turquia do século 17.

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Os ingredientes
• Madeira branca e vermelha
• Óleo e neve
• Vesícula de carneiro
• Um livro

O ritual
Acenda uma fogueira com a madeira branca e vermelha. Aqueça um punhado de neve com óleo e guarde a mistura em um saco feito com a vesícula de um carneiro. Em seguida, lance o saco nas chamas e deixe-o queimar. O material, por fim, deve ser triturado e transformado em pó. Quando desejar levitar ou voar, sente no chão e pense no local onde deseja estar naquele momento. Você será transportado para onde quiser, voando mais rápido do que um falcão.

Para transformar metal em ouro

Origem
Este procedimento, também encontrado no livro de Aptolcater, lembra as práticas da alquimia.

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Os ingredientes
• Pedaço de madeira, pedra ou metal
• Mercúrio, pó preto e pó vermelho
• Recipiente de barro


O ritual

Desenhe, sobre um pedaço de madeira, pedra ou metal, uma sequência específica de números e letras, dispostos na forma de um quadrado. A figura funcionará como amuleto de proteção: use-a durante o procedimento. Misture o mercúrio, pó preto e pó vermelho ao chumbo durante 8 dias e noites. Depois, lance a mistura em um vaso de barro. No exterior do recipiente, desenhe as letras consideradas mágicas e espere mais algum tempo. Ao abri-lo, segundo a tradição, encontrará ouro puro.

O golem de Praga
Criar a vida usando barro era uma das metas dos adeptos da cabala ma’asit. A tradição conta que vários rabinos teriam conseguido esse feito, usando seus poderes para criar um tipo de criatura chamada golem (a palavra vem do hebraico gelem, que significa “matéria crua”), que obedeceria às ordens de seu criador. Eles seriam semelhantes aos seres humanos, mas só na aparência, pois não teriam intelecto nem personalidade. O rabino Yehuda Leow, que viveu em Praga entre os séculos 16 e 17, ficou conhecido como o criador do mais famoso golem. Seu intuito, dizem, era usar a criatura para proteger os judeus que viviam na cidade. Mas, com o tempo, ela teria ficado violenta e se voltado contra o mestre. O golem de Praga virou estátua (foto acima) e foi tema de um filme rodado em 1936 (abaixo, à esquerda). A lenda cabalista também foi citada em um episódio da série de TV Arquivo X chamado Kaddish (abaixo, à direita).

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