Sinais de trânsito milenares
Enigmáticas figuras gravadas no deserto do Chile começam a ser associadas a trilhas de mais de 1 000 anos e revelam a sensacional história de uma civilização perdida.
Claudio Angelo, de Arica, Chile
É uma miragem, você pensa, quando as linhas na encosta se organizam e uma imagem de 115 metros de comprimento aparece com nitidez. O gigante ao longe carrega uns discos em volta da cintura e das pernas. De sua cabeça saem doze raios. Os braços estão dobrados para cima, como quem abençoa o viajante (e não há dúvida de que o viajante, naquele lugar inóspito, precisa de bênção). Antes mesmo que o olhar consiga percorrer por inteiro a figura colossal, surgem as perguntas: quem a terá desenhado ali, no meio do nada? Para quê?
Enigmáticos desenhos como esse, espalhados pelo Deserto do Atacama, norte do Chile, desafiam os arqueólogos há décadas. Alguns são enormes – chegam a ter mais de 200 metros de comprimento –, mostrando arranjos geométricos, animais da região, seres humanos e outros, não tão humanos, que sugerem estranhas divindades. Já houve quem atribuísse gravuras ainda maiores, encontradas no Peru, à influência de ETs. Para Luis Briones Morales, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Tarapacá, no Chile, um dos maiores especialistas do assunto, a explicação, no entanto, é mais terrena. O totem de raios na cabeça teria sido gravado naquele local para sinalizar aos que andavam por lá 1 000 anos atrás que o lar estava próximo.
É só uma hipótese, mas o professor Briones fala dela com entusiasmo. De fato, a idéia de que os geoglifos (escrituras na terra, em grego) tenham sido monumentais placas de trânsito é tão ou mais fascinante que a possibilidade de que eles sejam obras de extraterrestres. É que, se Briones estiver certo, eles iluminam um pedaço quase desconhecido da pré-história americana: os 500 anos durante os quais a civilização tiwanaku controlou uma região que englobava o oeste da Bolívia – onde ficava a sua capital –, o norte do Chile e o noroeste da Argentina.
Depois de construir complexos sistemas de irrigação e instituir uma vasta rede de intercâmbio através do deserto com os povos da costa, o império tiwanaku, considerado pacífico e de grande religiosidade, desapareceu, misteriosamente, perto do ano 1000 d.C. Mais tarde, os incas, que, vindos do Peru, dominaram a mesma área, adotaram os deuses tiwanakotas, tal como, na Antiguidade, os romanos incorporaram as divindades gregas. “A cultura que fez os desenhos não existe mais. Por isso, talvez nunca consigamos traduzi-los”, disse Briones à SUPER. Mas o esforço vale a pena. Ao decifrar os geoglifos deixados ao longo das trilhas, os cientistas ajudam a recuperar a grandeza da civilização que encheu os vales e montanhas do Atacama de estradas e de símbolos.
Mensagens nas pedras
Conhecida como Gigante do Atacama, esta imagem representa Wiracocha, divindade que passou dos tiwanakotas para os incas, dois impérios que controlaram o deserto antes de os europeus chegarem
Os deuses dão o recado
Os estudos de Briones e outros colegas, como a antropóloga Persis Clarkson, da Universidade de Winnipeg, no Canadá, levam a crer que os geoglifos demarcam uma rede de estradas, usadas por homens e lhamas, que cortou o deserto entre os anos 500 e 1500 da nossa era.
Participar de uma das caravanas que andavam por ali – descendo da Bolívia pela Cordilheira do Andes e algumas vezes cruzando o Chile até chegar ao litoral – era uma aventura perigosa. Imagine as conseqüências de um desvio de rota num lugar onde a água é artigo de luxo. “Saber a localização das fontes era fundamental”, diz Briones. “E o cálculo das possibilidades de chegar a elas tinha de ser preciso.” Acredita-se que muitos murais podem ter sido feitos para ajudar nessa orientação. Como os desenhos de sapos ou lagartos, animais sagrados associados à água, que foram encontrados em lugares onde havia chance de achá-la.
Figuras rituais, aliás, aparecem bastante entre os geoglifos, embora praticamente a metade seja constituída por formas geométricas. “Os tiwanakotas eram muito religiosos e não separavam a vida espiritual da terrena”, diz Luis Briones. Mas nem sempre a associação entre as duas jurisdições é tão fácil de detectar.
Os arqueólogos ainda deverão apanhar muito até descobrir o real significado da maioria das imagens e entender por que cada uma está no lugar em que está. “Se alguém desenterrar uma placa de trânsito das nossas daqui a 1 000 anos, é possível que jamais descubra a sua função”, compara Briones, ao volante de um velho jipe na Rodovia Panamericana, que corta o Atacama.
Para complicar mais as coisas, o império tiwanaku quase não foi estudado. O pouco que se conhece dos geoglifos chilenos se deve ao trabalho quase solitário de Briones, que ganhou no ano passado o auxílio de Persis Clarkson. Relacionando as gravuras do Atacama com a decoração de cerâmicas e estampas de tecidos achados na região, eles estão começando a fazer um “quem é quem” dessa galeria de arte ao ar livre. Já sabem, por exemplo, que o grandalhão que você viu na abertura desta reportagem era Wiracocha, deus do sol e criador do mundo.
Diz a lenda que Wiracocha teria emergido das águas do Lago Titicaca, a 3 800 metros de altitude, na Bolívia, para criar o primeiro casal humano. Ali nasceria Tiwanaku, a cidade que se tornaria a sede do império, considerada o centro do mundo. Wiracocha era o símbolo principal do povo do altiplano e a sua representação em lugares estratégicos de algumas trilhas poderia indicar que o caravaneiro estava no caminho certo para Tiwanaku. Ou outra coisa, como um bom lugar para descanso. É como se, numa estrada brasileira, para avisar que faltam poucos quilômetros para se chegar a Brasília, aparecesse na estrada uma efígie gigante de Juscelino Kubitschek, o fundador da cidade. Pode soar estranho, mas, se você considerar que se tratava de um povo sem escrita, comunicar-se por meio de imagens parece uma saída natural.
Rabiscos na areia
Duas técnicas usadas para fazer geoglifos.
Limpeza
As pedras oxidadas do deserto, de cor escura, eram removidas, junto com a areia mais superficial. Produziam, então, um fundo claro, contrastante com o resto da paisagem. A profundidade, no centro, chega a 15 centímetros.
Empilhamento
Nos lugares onde a superfície é mais arenosa, pedras vulcânicas de tamanhos variados eram organizadas até formar o desenho, em relevo. A altura desses geoglifos não ultrapassa 20 centímetros.
Onde as linhas se cruzam
Um ex-gerente de hotel atribuiu desenhos peruanos aos extraterrestres e transformou-os em símbolo místico.
Em 1968, um conjunto de geoglifos do deserto peruano, perto da cidade de Nazca – alguns com centenas de metros de extensão –, deixou de ser sítio arqueológico para virar centro de peregrinação de esotéricos. Naquele ano, o suíço Erich von Däniken, então gerente de um hotel nos Alpes, lançou o livro Eram os Deuses Astronautas?, onde relacionava uma série de mistérios do passado à presença de extraterrestres entre as civilizações antigas.
Em uma página e meia dedicada a Nazca, Däniken, que não tinha nenhuma formação científica, fez um enorme estrago. Disse que os desenhos eram um campo de aterrissagem para naves alienígenas e que haviam sido feitos a mando de “deuses” ETs. Como os arqueólogos tinham pouco a dizer sobre aqueles geoglifos, a tese pegou. Em setembro de 1998, Däniken – que foi procurado pela SUPER, mas recusou-se a dar entrevista – voltou ao assunto no livro Arrival of the Gods (a chegada dos deuses). A nova obra apenas reafirma a tese anterior. Não leva em conta as novas pistas levantadas pelos cientistas. Estes acreditam que, como no Chile, as linhas geométricas peruanas sinalizavam a água, vital para os agricultores nazca, que moravam à beira do deserto. E a arqueóloga canadense Persis Clarkson, que trabalha no local desde os anos 80, não descarta a possibilidade de que lá também houvesse caravanas.
Entre os desenhos chilenos, os que mais se assemelham aos de Nazca são os da região de Ariquilda, que só podem ser vistos com perfeição do alto (foto acima). Mas Ariquilda é uma exceção ali. De maneira geral, os geoglifos do Atacama estão em morros, visíveis do chão mesmo. “Não há necessidade de evocar aliens para explicá-los”, ironiza Clarkson. Sobre Nazca ela ainda não pode dizer o mesmo. Mas não desistiu de buscar uma solução para o quebra-cabeça com os pés bem fincados no chão.
A longa marcha no vazio
As caravanas que se orientavam pelas gravuras geralmente eram formadas por trinta animais e três pessoas e podiam passar de uma semana a três meses viajando.
Passeios e estirões
Havia viagens de todo tamanho. As que faziam transporte de uma aldeia a outra duravam apenas alguns dias. As que precisavam atravessar o deserto até o litoral podiam levar meses.
A rainha do deserto
Domesticada por volta de 1000 a.C., a lhama (Lama glama), possibilitou a rede de trocas nos Andes, entre o deserto e a costa. Essa parenta americana do camelo fornecia lã, carne e insubstituíveis serviços como animal de carga. Para elas, só havia uma caravana. O esforço era tão grande que nunca mais viajavam de novo. Apesar de dóceis, os animais tinham lá seus caprichos: não andavam mais do que 30 quilômetros sem impor uma parada para descanso. E, mesmo que a cota não fosse cumprida, se recusavam terminantemente a caminhar à noite.
Pronta para o embarque
Os fardos eram amarrados ao dorso dos animais por faixas de tecido. Frágeis, as lhamas nunca carregavam mais de 25 quilos – não podiam, portanto, ser montadas. Um sino de madeira ia no pescoço da lhama-guia, que conduzia a caravana.
A chance da mulher
Só com a dominação inca, por volta de 1450, séculos depois de extinto o império tiwanaku, as mulheres começaram a ser presença obrigatória nas caravanas. Preocupados com a solidão dos homens nas longas viagens, os reis peruanos decidiram que as famílias teriam de acompanhá-los.
Modelito para viagem
O traje dos caravaneiros incluía poncho de lã ou de algodão (a temperatura variava de 45 graus Celsius no verão a 10 graus negativos no inverno). O gorro de quatro pontas, multicolorido, fazia parte da indumentária tiwanaku – o povo indígena da etnia aimará que dominou o deserto entre os anos 500 e 1000. Nos pés, sandálias de couro de lhama.
Próxima parada
Sempre que as lhamas empacavam, o que costumava acontecer a cada fim de tarde, o grupo parava numa paskana, refúgio onde havia água. Os viajantes acendiam fogueiras e faziam refeições à base de charque, chuño (batata seca) e peixe salgado. Dormiam, assim como os animais, em covas rasas que protegiam do vento.
Globalização pré-colombiana
O que ia e o que vinha no lombo das lhamas.
Descem as manufaturas
Do altiplano andino para os vales e para a costa iam couro, charque, chuño (batata seca), quinoa (um cereal), lã, roupas e cerâmica produzidos nas montanhas. Durante o império tiwanaku, a rota incluía o transporte de alucinógenos das selvas tropicais e objetos de culto feitos nos Andes. O sal era levado do Salar de Uyuni, na Bolívia.
O caminho das commodities
Milho, frutas e ají (um tipo de pimenta) eram levados dos vales férteis do norte para os Andes e para a costa; peixe seco e mariscos partiam do litoral para os vales e para o altiplano. Minérios como o cobre e a turquesa também saíam da costa para as terras altas.
Histórias que a montanha conta
O significados do maior conjunto de painéis do Chile.
Com 4 quilômetros de extensão e 420 desenhos, a cadeia de morros conhecida como Cerros Pintados é o mais importante sítio arqueológico do país. Aparentemente, foi um dos principais pontos de parada dos viajantes que atravessavam o deserto. Os arqueólogos começam a decifrar o que suas gravuras indicavam.
Quem pintou o deserto
Penas de pássaros tropicais encontradas em múmias de 6 000 anos na costa do Chile revelam que o hábito de atravessar o deserto é antigo. Mas os geoglifos só começaram a ser pintados por volta do quinto século da nossa era, quando Tiwanaku começou a expandir seus domínios para além das margens do Lago Titicaca, na Bolívia.
Esse povo percebeu a enorme utilidade das caravanas e criou, entre os anos 500 e 1000, a vasta malha rodoviária – ou melhor, “lhamaviária” – do Atacama. O controle da distribuição de produtos era centrado na capital do império, hoje em ruínas, chamada Tiwanaku, que fica nas montanhas bolivianas. Era uma metrópole rica, principalmente em cultura. Seus templos, feitos com pedras entalhadas, estão entre os mais importantes patrimônios arqueológicos das Américas. Ali, o poder principal era o religioso. Em segundo lugar vinham os criadores de lhamas. “Os mais ricos tinham rebanhos de até 50 000 animais”, afirma o antropólogo Alan Kolata, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.
O que movia os caravaneiros, além do desejo de consumir produtos de outras regiões, era a possibilidade de espalhar seu credo. Por isso, algumas expedições incluíam sacerdotes. “Foi uma expansão mais religiosa do que política”, conta Luis Briones. Aproveitando características comuns entre a sua mitologia e as dos povos do deserto, que em sua maioria também eram aimarás, os tiwanakotas exportaram a própria cultura pacificamente.
Após 500 anos de tranqüilidade, o império começou a perder força, aparentemente em conseqüência de uma seca prolongada, que arrasou a agricultura. Então, várias culturas de grupos menores floresceram no deserto. E acabaram com o sossego. Alguns geoglifos chegaram a retratar disputas pelo controle das rotas. Depois de encontrar escudos de couro com o formato de um retângulo acinturado em Chiu-Chiu, perto da cidade de Calama, os arqueólogos concluíram que certos desenhos podiam representar tropas de soldados.
Quando os incas chegaram à região, vindos do Peru, por volta de 1450, adotaram uma única estrada, que atravessava o deserto de norte a sul, e abandonaram, aos poucos, as trilhas caravaneiras. O golpe final no antigo costume veio com a conquista espanhola, em 1537: as lhamas foram trocadas por mulas, que viajavam mais rápido e carregavam mais peso.
Os imponentes e enigmáticos geoglifos do deserto são os vestígios mais importantes que restam dos povos e das religiões que vingaram por ali. Ao tentar decifrá-los, os arqueólogos levam a América de encontro ao seu pouco conhecido passado.
Para saber mais
The Tiwanaku: Portrait of an Andean Civilization, de Alan Kolata, Basil Blackwell, Oxford, 1993.
Secreto de la Pampa, de Maria Reiche, Heinrich Fink GmbH&Co., Stuttgart, 1976
Guardiões do grafite pré-histórico
Os cientistas que esquadrinham a imensidão do Atacama atrás de pedrinhas alinhadas.
Depois de duas semanas cozinhando a quase 40 graus no deserto, o chileno Luis Briones e a canadense Persis Clarkson fizeram, há um ano, a maior descoberta arqueológica da década na região do Atacama. Acharam 200 geoglifos até então desconhecidos.
Não foi fácil. “Acampávamos em lugares onde não há uma gota d’água e passávamos horas caminhando pelas antigas trilhas, sob o sol”, conta Briones. Mas a dupla de arqueólogos está mais do que habituada aos rigores do Atacama. Briones, de 59 anos, nasceu no deserto, numa mina de salitre perto de Iquique, a principal cidade do norte chileno. Adolescente, já acompanhava escavações arqueológicas, com um primo mais velho – Lautaro Nuñez, um dos mais importantes pesquisadores da área no país.
Persis vem de outro mundo. Nasceu no Canadá e parece um alien na paisagem árida. Loura, bem-humorada, 44 anos, adora o deserto. Ex-estudante de Geologia, virou arqueóloga “para fugir das aulas de química inorgânica” e, desde o ano passado, coordena com Briones o trabalho de contextualização dos geoglifos chilenos.
Para achar novos desenhos, eles contam com uma aliada poderosa: a cobertura de pedras da região, que impede que as figuras sejam tragadas pela areia. Uma vez localizadas, as obras recebem uma faxina. Com pincéis, os pesquisadores retiram o pó que atrapalha sua visualização e recolhem amostras para datação (veja o infográfico à esquerda).
Há 5 000 geoglifos conhecidos, mas ninguém tem idéia de quantos já foram destruídos. Por terremotos – comuns na região –, pela exploração de minérios no deserto ou simplesmente pelo soterramento. No caso das figuras que estão à beira da estrada, somam-se outros inimigos incontroláveis: os turistas.
A idade das pedras
Só os desenhos feitos com a técnica de limpeza podem ser datados.
1. Na raspagem, pedras são reviradas. A superfície antes voltada para o chão torna-se hábitat de microrganismos presentes no ar. Forma-se um leve verniz sobre ela.
2. Os arqueólogos levam pedras de fora e de dentro dos geoglifos para o laboratório.
3. As amostras são banhadas com ácidos que corroem a parte mineral e preservam o que é orgânico.
4. Mede-se o nível de carbono 14, átomo presente em matéria orgânica. Quanto mais velha, menos carbono, pois ele se reduz à metade a cada 5 730 anos.