Cássio Leite Vieira, do Rio de Janeiro
Uma parte dos cientistas acha que os oceanos estão subindo rápido demais. Eles prevêem um futuro cheio de inundações catastróficas. Outros duvidam que o perigo seja tão grande. Por via das dúvidas, países como a Holanda já começam a se preparar.
Cenários para um mundo molhado
Com a habitual dose de exagero empregada no cinema catástrofe, Hollywod inventou uma paisagem apocalíptica para retratar a subida dos mares. No filme Waterworld (1995), com Kevin Costner no papel de galã, as últimas tribos humanas vagueiam de barco num planeta inundado pelo derretimento dos pólos. O ano seria 2045. Costner representa um mutante que desenvolveu guelras para se adaptar ao ambiente marinho e o último continente seco transformou-se num sonho nunca alcançado, uma Atlântida ao contrário. Tudo muito impactante, só que cientificamente incorreto porque o volume de gelo existente nas calotas polares não é suficiente para afogar a Terra. Em algo, porém, o roteiro acertou: a geografia terrestre realmente não ficará a mesma se o calor continuar aumentando.
Na pior das hipóteses, cogitadas pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), até o ano 2100 os oceanos vão crescer quase 1 metro. Aí seria um Deus-nos-acuda. Segundo o Worldwatch Institute, um centro de pesquisa ambiental com sede em Washington, países como Bangladesh, que tem uma parte significativa do seu pequeno território localizada na foz do Rio Ganges, ficariam parcialmente cobertos pela água. Capitais asiáticas como Bangcoc, na Tailândia, sofreriam graves enchentes. Tesouros da Antiguidade, como Alexandria, no Egito, seriam devastados. E, nos Estados Unidos, o dilúvio cobriria 160 000 quilômetros quadrados de costa, alagando cidades como Nova York, Nova Orleans e Miami.
Ondas imprecisas
Ocorre que ninguém sabe, com precisão, o quanto o mar vai subir. Ele vem crescendo há 20 000 anos, desde o fim da última era glacial. Estima-se que, de lá para cá, já tenha ganho uns 120 metros. Se tudo continuasse nesse ritmo, não haveria grandes transtornos, porque os ciclos naturais são lentos o suficiente para permitir soluções adaptativas. O problema é que, segundo climatologistas como Bruce Douglas, da Universidade de Maryland e do IPCC, o efeito estufa está acelerando o ritmo de elevação marítima. O manto de poluição, ao impedir a dispersão do calor terrestre, esquenta os oceanos. Como a água se dilata quando é aquecida, e os mares estão aprisionados numa espécie de panela formada pelos continentes, não resta saída a não ser para cima.
O IPCC, criado pela ONU em 1988 para acompanhar o aquecimento global, desenhou em 1996 vários cenários alternativos para o próximo século, levando em conta o efeito estufa. No mais pessimista dos panoramas, o mar ganharia 90 centímetros e as consequências seriam aquelas que lembram, ainda que de maneira remota, o desastre hollywoodiano estrelado por Costner. Em outra hipótese, os oceanos ficariam 50 centímetros mais altos. Nesse caso, cerca de 46 milhões de terráqueos que habitam áreas inundáveis nas costas do planeta seriam afetados, as quase 300 ilhas do Caribe e do Pacífico correriam perigo e a prefeitura de Nova York precisaria gastar 30 milhões de dólares para levantar os 46 quilômetros de muro que protegem a Ilha de Manhattan.
Na Holanda, cujo nome oficial, não por acaso, é Reino dos Países Baixos, o Ministério de Obras Públicas já trabalha pensando nesse cenário. Os técnicos holandeses concluíram que elevar os seus diques para barrar mais 60 centímetros de água custa o equivalente ao que o país gasta para manter as suas ciclovias. “Quem vai sofrer mesmo”, diz John de Ronde, diretor de Obras do ministério, “são os países pobres e insulares”. Ou seja, não foi por paranóia que 36 micropaíses como as Ilhas Maldivas, Ilhas Virgens e Samoa Ocidental formaram a Aliança dos Pequenos Estados Insulares, para cobrar providências contra o aquecimento do planeta. “Podemos ser poucos”, declarou em novembro passado Nerodi Slade, embaixador de Samoa Ocidental na ONU e presidente da Aliança, “mas estamos tratando da preservação de culturas, línguas e Estados soberanos.”
Aviso dramático
Holandeses são obrigados a deixar sua cidade em 1° de fevereiro de 1953. Naquela madrugada, quando todo mundo dormia, o mar ultrapassou os diques, invadiu 64 quilômetros de terra e deixou inundados 200 000 hectares. Um sexto do país ficou debaixo d’água. O saldo foi devastador, com 2 000 mortos e 100 000 desabrigados
Fortificação antimaré
A plácida vila de Westkapelle, na Holanda, está 2 metros sob o nível do mar, como boa parte do país. Por isso, é defendida por quilômetros de diques que barram as marés. A subida dos oceanos é um risco que os holandeses não podem se dar ao luxo de ignorar
A ameaça que vem do pólo
Em janeiro de 1995 uma imensa placa de 5 000 quilômetros quadrados de gelo começou a se despegar da Antártida, na maior ruptura já observada pelo homem no continente branco. Menos de um mês depois, o bloco rompeu definitivamente as amarras e saiu navegando por aí. Foi como se meia Jamaica tivesse se partido em incontáveis icebergs e fosse derretendo lentamente mar afora. A turma do Greenpeace, a mais ativa organização ambientalista do planeta, botou a boca no trombone. Eles vêm advertindo há tempos para o risco de que grandes degelos na Antártida causem um aumento do nível do mar. O descolamento daquela massa monumental parecia confirmar os seus piores pressentimentos.
Mas não há certeza sobre o que provocou a rachadura na Plataforma de Larsen, local de onde partiu a jangada de gelo, nem se ela vai se repetir. As plataformas são braços de gelo, com até 1 quilômetro de espessura, que se estendem do manto continental, assentado sobre rochas. De acordo com Rudolpho del Valle, diretor de Geologia do Instituto Antártico Argentino, não há dúvida de que o desastre foi provocado pelo efeito estufa. Del Valle não está só. Estudos meteorológicos mostram que o aquecimento do planeta está sendo bem maior nos pólos do que no equador. Para o Worldwatch Institute, a temperatura da Antártida aumentou, nos últimos cinqüenta anos, duas vezes mais do que no resto do planeta. Isso explicaria também o resultado de pesquisas como as do glaciologista Bill de la Mare, da Divisão Antártica Australiana. De la Mare comparou os registros dos navios baleeiros que navegaram entre os arquipélagos da Antártida entre os verões de 1931 e 1987 e constatou a perda de 25% do gelo marinho da região.
Gelo no copo
Por incrível que pareça, mesmo que a descoberta do glaciologista australiano seja confirmada, a dissolução de gelo marinho não influi diretamente na altura dos oceanos. Imagine um monte de gelo num copo com whisky. Quando o gelo se dissolve, o whisky pode ficar péssimo, mas o copo não entorna, porque a água não aumenta de volume ao passar do estado sólido ao líquido. O trabalho de De la Mare, na verdade, é importante porque evidencia que o calor sobre a Antártida está aumentando, o que poderia causar o desabamento da neve de 4 quilômetros de espessura que fica sobre as rochas do manto continental. Aí, sim, as conseqüências seriam graves.
O glaciologista Jefferson Cardia Simões, do Laboratório de Pesquisas Antárticas e Glaciológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, reforça a preocupação dos ambientalistas. Ele diz que na Ilha Shetland do Sul, vizinha à Antártida, a temperatura média subiu 2,5 graus Celsius nos últimos quarenta anos. É uma enormidade. “Não sabemos, no entanto”, disse ele à SUPER, “se a causa é a ação do homem sobre o clima ou se é algum fenômeno localizado.” Simões é dos que sustentam, assim como o IPCC, que até aqui não há sinais objetivos de que a Antártida esteja começando a se liquefazer. Para ele, outras regiões da Terra, como os arquipélagos árticos, é que estão jogando mais água na panela. Também geleiras montanhosas como os Andes, na América do Sul, e o Himalaia, na Índia, estão perdendo neve e, com isso, engrossando os rios que acabam chegando aos mares.
A verdade é que, entre o sobressalto do Greenpeace e a serenidade do IPCC, não se pode prever o que vai acontecer com a Antártida. “Qualquer um que diga a você que sabe o que está acontecendo está sendo desonesto”, disse a geóloga Ellen Mosley-Thompson, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, à revista Scientific American. A controvérsia é tão grande que, em 2002, a Nasa vai colocar em órbita um satélite especialmente programado para medir alterações nas calotas polares com precisão e, finalmente, dirimir as dúvidas que afogam os especialistas e ameaçam inundar todos nós.
Febre gera discussão acalorada
A subida do mar funciona como um termômetro. Quando o calor aumenta, a água se dilata e os oceanos sobem, exatamente o que acontece com o mercúrio dentro do tubo de vidro. A julgar pelas medidas do satélite Topex-Poseidon, da Nasa, a Terra está com febre, já que o mar subiu de 5 a 10 milímetros de 1993 para cá. Uns sustentam que é uma febrinha de nada, quem sabe um sintoma natural, como aquela elevação de alguns graus que todo mundo tem no final da tarde. Outros acham que a temperatura alta está se estendendo por muito tempo e pode esconder uma infecção mortal. Em todo caso, milhares de pesquisadores andam pelo mundo afora tentando saber o que está por trás da renitente febrícula terrestre.
Os cientistas ainda não têm um diagnóstico. Mas eles já têm hipóteses sobre o aquecimento de 0,3 a 0,6 grau Celsius dos últimos 100 anos. O IPCC identifica os gases derivados da queima de combustíveis fósseis (petróleo e carvão, sobretudo) como os grandes inimigos do organismo planetário. O dióxido de carbono (CO2) e, com menos importância, o metano e o óxido nitroso estariam bloqueando a dissipação do calor: é o efeito estufa.
Causas naturais
Em campo oposto estão os que atribuem a quentura à própria natureza. Os climatologistas Frederick Seitz, da Universidade Rockefeller, e William Nieremberg, do Instituto de Oceanografia Scripps, ambos nos Estados Unidos, sustentam que o aquecimento global decorre de variações da atividade solar. Afirmam que o período de 1880 a 1940, quando houve a maior parte do aumento de 0,3 a 0,6 grau Celsius na temperatura da Terra, coincide com uma fase de aceleração do trabalho do astro-rei. E esse também foi um período, acrescentam, em que a humanidade queimou relativamente poucos combustíveis fósseis, entre outras coisas porque a explosão do automóvel ainda não havia ocorrido.
Outro que dá menos importância ao bloqueio dos gases poluentes é o meteorologista Luiz Carlos Molion, do Departamento de Meteorologia da Universidade Federal de Alagoas. Para ele, o grosso do esquentamento do planeta deve-se exatamente ao fenômeno oposto: uma maior transparência atmosférica. De acordo com Molion, entre 1915 e 1955 teria ocorrido uma diminuição da atividade dos vulcões, ocasionando uma redução da fuligem e dos gases que essas chaminés interiores mandam para o ar. Com isso, os raios do sol estariam chegando à superfície do planeta com mais facilidade.
Existe até quem afirme que o termômetro está quebrado. A subida do mar seria apenas o resultado da acomodação das placas tectônicas, sem conexão com o calor. Essa é a hipótese do geofísico William Peltier, da Universidade de Toronto, no Canadá. Isso explicaria por que o mar está descendo 4 milímetros por ano em Estocolmo e subindo 1,5 milímetro no Havaí. Ou por que, na Venezuela, o mar está crescendo na costa norte e, ao mesmo tempo, diminuindo na costa oeste.
Que turbulências no fundo do mar afetem o que está em cima dele, parece uma idéia aceitável. Já saber se elas explicam a subida dos mares é outra história. “Os movimentos tectônicos são muito lentos para a escala humana. Eles se fazem sentir em milhões de anos, não em séculos”, explicou à SUPER Johan Varekamp, ecólogo da Universidade Wesleyan, nos Estados Unidos. Quer dizer: o termômetro provavelmente está funcionando e as elevações marítimas precisam ser levadas a sério. Mesmo os pesquisadores menos alarmistas, como Molion, acham que não dá para descuidar. “Não se deve”, diz ele, “abandonar o empenho de fazer do planeta um lugar mais seguro e mais habitável.” Por enquanto só temos este.
Para saber mais
Polar Meltdown: The Changing Climate in Antartica, Greenpeace, Amsterdan, 1997.
The State of the Climate, a Time for Action, WWF, Amsterdan, 1997.
Na Internet:
Climate Change Update: Sumary of IPCC Report, 1996. https://www.ncdc.noaa.gov
Mar em transe
Veja como o derretimento do Pólo Sul devastaria o planeta.
Cidades submersas
Em 1978, o glaciologista J. H. Mercer, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, mostrou que há 20 000 anos, quando acabou a última era glacial, a Flórida e as ilhas do Caribe eram bem maiores (detalhe). Agora, se parte da Antártida derretesse, os oceanos submergiriam Miami e Nova Orleans.
Perigo asiático
Na hipótese desastrosa de derretimento antártico, cidades populosas da Ásia, como Ho Chi Minh, no Vietnã, e Bangcoc, na Tailândia, que ficam em deltas de grandes rios, sofreriam verdadeiros dilúvios. Há 20 000 anos (detalhe), os mares estavam tão baixos que uma faixa de terra ainda ligava a Ásia à Indonésia.
Caindo aos pedaços
Há sinais de que partes da Antártida podem estar se quebrando.
Rachaduras profundas cortam a Plataforma de Larsen, no extremo norte antártico
Um canyon com 20 quilômetros de extensão surgiu em Larsen a partir de 1997
Clima em movimento
Veja as teorias sobre o aquecimento da Terra e a subida dos mares.
1. Efeito estufa
A queima de petróleo e carvão libera gases que abafam o planeta. Eles formam um manto atmosférico que impede o calor terrestre de se dissipar. A temperatura cresceu de 0,3 a 0,6 graus Celsius nos últimos 100 anos, tendo subido apenas 4 de 20 000 anos para cá.
2. Placas tectônicas
O movimento de acomodação das vinte placas tectônicas sob os continentes provoca subidas e descidas dos oceanos. Se a placa sul-americana, onde o Brasil se assenta, se inclinar 1 milésimo de grau, as águas dos mares poderiam subir até 15 centímetros.
3. Gelo derretendo
Os mares podem estar subindo porque há derretimento em geleiras das cadeias montanhosas, dos Andes aos Alpes, que acabam engrossando os rios e desaguando nos mares. Há também uma intensa controvérsia sobre se a Antártida está se dissolvendo ou não.
4. Vulcões em baixa
Os gases e a fuligem emitidos pelas erupções diminuem a transparência da atmosfera. Quando há pouca atividade vulcânica, como entre 1915 e 1955, a atmosfera torna-se mais penetrável à radiação solar, causando a elevação da temperatura.
5. Ciclos solares
Variações na atividade
do Sol alteram a temperatura da Terra. Basta uma variação mínima para gerar vasto impacto. Na Europa, uma diminuição de 0,2% a 0,5% no movimento da estrela provocou uma pequena era glacial entre 1645 e 1715.
Dilatação
A água se dilata quando aquecida. Como os oceanos estão presos, o aquecimento provoca a subida do nível da água.
Moléculas
O aumento da temperatura faz as moléculas de água vibrarem, ocupando mais lugar no espaço.