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Bicho-da-Seda: O bicho do Homem

Domesticado há milhares de anos, submetido a incontáveis cruzamentos, o bicho-da-seda não mais existe em estado natural: é um morto-vivo, incapaz até mesmo de reproduzir-se em liberdade.

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Atualizado em 31 out 2016, 18h28 - Publicado em 31 ago 1989, 22h00

Roberto Muylaert Tinoco

O cultivo do bicho-da-seda e da abelha existe há milênios. Esses dois tipos de inseto quase nada têm em comum além de terem sido intensamente multiplicados pelo homem. Seus modos de vida também são tão divergentes que o longo processo de domesticação a que foram submetidos praticamente não afetou as abelhas; mas, por outro lado, transformou os bichos-da-seda em verdadeiros monstrengos, tornando-os incapazes de sobreviver em liberdade. O drástico processo degenerativo que os atinge começou quando os primitivos habitantes da Ásia Central descobriram que os fios produzidos pelas lagartas de uma espécie de mariposa eram excelentes para a confecção de cordões e tecidos.

A partir de então – e durante 4 mil anos – as lagartas tecedoras ou bichos-da-seda passaram a ser incessantemente recolhidas da natureza e introduzidas em recintos destinados à proliferação, locais onde encontravam com fartura a sua única fonte de alimento: folhas de amoreira. Naqueles ambientes artificiais, completavam todo o seu ciclo vital (em que o cobiçado casulo de seda representa apenas a fase intermediária entre a lagarta e o inseto adulto). Em todas as borboletas e mariposas a reprodução se dá por meio do acasalamento na fase adulta, pois na fase de larva (como lagartas ou taturanas) elas são desprovidas de órgãos sexuais.

Os bichos-da-seda não escapam à regra. Suas lagartas, segundo desenhos chineses elaborados há mais de 3 mil anos, transformavam-se em mariposas de grandes asas esbranquiçadas e esvoaçavam em torno das lanternas à noite. Elas foram catalogadas cientificamente como Bombix mori. No entanto, aquela antiga descrição chinesa ficou bastante distanciada do que realmente são hoje os bichos-da-seda em sua forma adulta. Atualmente, não existem em estado nativo e se desconhece a época em que desapareceram das florestas da China. E possível que isso tenha ocorrido há mais de 2 mil anos.

Pouco a pouco, introduzidas em grandes quantidades nos viveiros de criação, as lagartas do bicho-da-seda passaram a ficar protegidas de seus inimigos naturais. O mesmo aconteceu com as mariposas que, a partir de então, não precisaram mais escapar dos ataques de pássaros ou morcegos. Isso deve ter sido o bastante para que os genes responsáveis pelo exercício das funções fundamentais de autodefesa do animal deixassem de desempenhar papel decisivo na sua sobrevivência.

Ao mesmo tempo, foram criadas pelos sericicultores novas raças de lagartas que atendessem exclusivamente aos interesses da produção da seda. Isso era conseguido mediante cruzamentos artificiais que selecionavam os indivíduos com tendência a fornecer apenas maior quantidade e melhor qualidade em seus fios. Quando a indústria da seda atingiu finalmente seus objetivos, apurando as raças que lhe assegurariam um notável rendimento, os bichos-da-seda já haviam sido transformados em animais degenerados. Todas as atuais mariposas descendentes das antigas Bombix mori, que agora só podem ser encontradas em poder dos sericicultores, dos quais, fiéis operárias, são desajeitados insetos com pesados abdomes e asas atrofiadas, incapacitados para o vôo e, portanto, sem condição alguma de se reproduzirem novamente em liberdade, pois, entre as mariposas, tanto as manobras de acasalamento como de postura dos ovos são tipicamente aéreas. Assim, o bicho-da-seda foi transformado num verdadeiro morto-vivo na listagem atual das espécies; extinto em sua terra de origem, mas mundialmente preservado em cativeiro.

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A melhor hipótese até agora formulada para explicar o desaparecimento do bicho-da-seda em estado selvagem é a que admite que tenha acontecido um tipo de “contaminação genética” das populações selvagens por parte das domesticadas. Era difícil conceber que os chineses houvessem erradicado por completo aquele inseto, principalmente nas regiões montanhosas onde era tão comum. Teria sido impossível, por exemplo, capturar toda uma população de Bombix mori sediada ao longo dos vales escarpados onde floresciam as amoreiras silvestres, o alimento natural das lagartas.

Depois de vários séculos de cultivo, as populações domesticadas já haviam sofrido incontáveis cruzamentos induzidos pelos criadores. Mas, assim mesmo, para os indivíduos que conseguissem escapar, deveriam surgir chances de acasalamento com seus parentes selvagens. Nesses encontros, os genes responsáveis pela degeneração da espécie passavam para as populações selvagens. O resultado óbvio de tais contaminações se revelaria, mais cedo ou mais tarde, como uma total inaptidão às rigorosas condições da luta pela sobrevivência. Assim, pouco a pouco, os bichos-da-seda passaram a percorrer o desastroso caminho da extinção.

Se, por um lado, o verdadeiro bicho-da-seda foi banido da natureza pela mão do homem, por outro acabaram por ser encontradas, em várias partes do mundo, muitas outras espécies de lagartas tecedoras, em estado selvagem, que ainda não foram devidamente aproveitadas para a obtenção da seda em escala industrial. Já estão relacionadas quarenta espécies produtoras de seda em todo o mundo; quatro delas vivem em território brasileiro. O principal motivo pelo qual ainda não foram utilizadas pelos sericicultores é o pouco investimento que habitualmente se faz em pesquisa. Provavelmente, seria necessário que durante alguns anos essas espécies recebessem especial atenção, algo que foi concedido ao bicho-da-seda durante séculos, para que surgissem novas e promissoras indústrias de seda.

Hoje, as seleções artificiais responsáveis pelo aprimoramento genético de animais e plantas são concluídas com muito maior rapidez do que há 4 milênios, quando os chineses se preocuparam em caprichar nas qualidades de seu bicho-da-seda. Um relacionamento biológico coloca, por exemplo, o gênero de mariposas conhecido como Antheraea quase no nível de grande produtora de seda das tradicionais Bombix. Pelo menos na Índia, esse tipo de mariposa já é responsável por uma notável indústria de seda montada sobre o que ali se denomina mariposa do tussah.

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Os fios tecidos por suas lagartas são considerados de qualidade inferior aos produzidos pelas Bombix, não só pela coloração mais parda como também pela menor resistência. Mas isso não impediu que a Índia chegasse a faturar 10 milhões de dólares anuais nesta década só com a participação de indústrias tipicamente artesanais, que trabalham com os conhecimentos adquiridos ao longo de várias gerações em sociedades tribais. Atualmente, mais de 100 mil famílias se ocupam da fabricação do tussah, que serve para a confecção de um tecido muito difundido com o nome de shantung. Aproximadamente 1 milhão de famílias encontra emprego na indústria do shantung.

A distribuição geográfica das mariposas do gênero Antheraea se estende por todo o sudeste da Ásia e noroeste da Austrália, saltando depois para a América, desde o sul do Canadá até a Colômbia e uma pequena parte da Amazônia brasileira. As florestas que abrigam as populações da Antheraea estão sendo dizimadas para abrir espaço a pastagens e fornecer madeira de lenha, duas atividades menos lucrativas que a da produção de seda bem orientada numa mesma área. Aqui no Brasil apenas uma das quatro espécies de bicho-da-seda foi experimentada em cultivo.

A primeira notícia que se conhece da existência de seda brasileira data de 1810 e se refere a “uma boa seda produzida por um bicho indígena”, provavelmente a Rothschildia aurota, vulgarmente conhecida por borboleta-espelho devido às quatro placas transparentes que possui nas asas. A resistência dos fios da aurota é superior à de muitas espécies da Antheraea, mas a tecelã brasileira perde para as demais porque enrola de maneira muito irregular a seda em torno do casulo e com isso impossibilita um perfeito desfiamento. Ainda assim, existem estudos para o aprimoramento de raças mais viáveis de bichos-da-seda brasileiros. Uma das grandes vantagens desse cultivo seria a sua integração com as plantações de mandioca, mamona, cajueiro, pessegueiro ou laranjeira, pois as lagartas se alimentam de todas essas plantas.

 

 

 

A seda verde da China.

A história da seda e dos bichos que a produzem está repleta de surpresas. A última delas aconteceu há pouco mais de uma década num território situado no noroeste da China, a Manchúria. Ali, junto às margens de um lago, foi encontrada uma nova espécie de bicho-da-seda que apresenta a notável característica de tecer seu casulo com fios de coloração esverdeada. O fio verde, que a princípio pareceu representar uma desvantagem frente ao exigente mercado da seda, acabou se revelando uma grande qualidade daquelas lagartas chinesas. Além de sua resistência superior à do fio tradicional, a seda verde conquistou de saída um lugar de destaque por enriquecer a indústria com novas possibilidades de combinações de fios em tecidos decorados.

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Considerando a milenar história do cultivo da seda, a descoberta da nova espécie de lagarta tecedora ainda pode ser considerada recente. E, possivelmente, o comércio da seda verde ainda não atingiu a expressão que poderá conquistar no futuro. Na América do Sul, dentro de uma extensa região que compreende o noroeste da Amazônia, vivem algumas espécies de bichos-da-seda em estado selvagem. Talvez em breve tenhamos a surpresa de vê-los incluídos entre os mais cobiçados produtores de fios de seda do planeta.

 

 

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