Sobre moscas brancas e talentos raros
Uma das descobertas mais importantes da história da genética foi feita por um flautista fascinado por insetos mutantes.
Carta ao leitor da edição 465, de julho de 2024.
Edward Lewis era um nerd com dois fascínios: flauta transversal e insetos mutantes. Esse geneticista americano pagou o primeiro ano de faculdade com uma bolsa para jovens músicos, mas largou Mozart para ser biólogo – e dedicou décadas de sua carreira no Instituto de Tecnologia da Califórnia a estudar moscas com quatro asas.
Parece banal. Mas esse é o equivalente artrópode da deusa indiana Lakshmi, com seus quatro braços. Moscas comuns têm apenas duas asas. Atrás delas, fica um par de órgãos minúsculos chamados halteres ou balancins – que evoluíram como asinhas atrofiadas, responsáveis por estabilizar o voo em vez de sustentá-lo (mais ou menos como os mamilos masculinos, que poderiam se tornar seios na adolescência, mas ficam na estaca zero).
Lewis descobriu que a mosca Lakshmi e outras aberrações – como insetos com patas no rosto ou antenas no traseiro – eram resultado de erros em um conjunto de genes conhecidos pelo acrônimo Hox. Do mesmo jeito que um arquiteto desenha a planta de uma casa antes de erguê-la, os Hox dizem onde ficará cada pedaço do corpo da mosca quando ela ainda é um embrião. Alguns mostram a posição da cabeça, outros indicam a ordem de aparição de diferentes seções do tórax, um aponta a localização do traseiro…
Um cromossomo é um fiozão de DNA enrolado, e os genes se distribuem ao longo desse fio como pérolas em um colar. O interessante é que os Hox aparecem na mesma sequência das partes do corpo que cada um deles constrói. Ao trocá-los de lugar, você decide de onde brota cada coisa. Ponha o HOX dos braços na cabeça e voilà: o bichinho nascerá com patinhas na testa.
Esses mesmos genes aparecem em todos os outros animais. Nas águas vivas, determinam qual será a ponta dos tentáculos e qual será a extremidade arredondada. Em nós, ditam a sequência das vértebras na coluna. Você, seu cachorro e a pulga no seu cachorro são todos organizados por Hox ao longo do eixo ântero-posterior (o jeito chique de dizer “da cabeça à bunda”).
Essa é só uma das semelhanças entre os sapiens e todos os outros seres vivos da Terra. Em 2014, o Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano da USP espalhou 34 mil cartazes pelo metrô de São Paulo informando nosso grau de parentesco genético com outras espécies: humanos compartilham 11% de seu DNA com um grão de arroz, 60% com uma mosca e 96% com um chimpanzé.
Diante desse grau de semelhança com o resto da natureza, pegar pedaços de outros seres vivos parece uma maneira óbvia de zerar a fila de transplantes. Nos últimos anos, pesquisadores no mundo todo têm se aproximado cada vez mais do objetivo de usar rins ou corações de porcos em humanos.
Do ponto de vista estritamente técnico, o problema não são os 84% de genes que temos em comum, mas os 16% que são diferentes – alguns deles estão por trás de rejeições letais. Já do ponto de vista ético, os 84% são a questão: se esses animais são tão parecidos conosco, até que ponto é justo sacrificá-los para nos salvar?
O repórter Bruno Carbinatto aborda esses e outros problemas dos xenotransplantes na matéria de capa deste mês, com a maestria de um jornalista que joga em qualquer posição: ele voltou à Super este ano após três primaveras na cobertura econômica. Sabe como é: nada contra a economia, muito menos contra flautas transversais. Mas fico feliz que Lewis seguiu carreira na genética – e o Carbinatto, no jornalismo de ciência. Agora, tenho o prazer de falar desses dois talentos raros aqui na Super. Verdadeiras moscas brancas.
Bruno Vaiano
Editor-chefe
bruno.vaiano@abril.com.br