Uma morte na fila da vacina
Levei minha mãe, profissional de saúde, para tomar a vacina contra a covid-19. E foi o momento mais caótico que vivi durante a pandemia.
De todas as experiências que sinto falta na pandemia, não achei que fosse entrar em uma fila de show tão cedo. Mas levar minha mãe para tomar a primeira dose da Oxford foi bem parecido com a espera pelo Depeche Mode na porta do estádio do Palmeiras, em 2018. Para a vacina, foram “só” cinco horas de fila – o suficiente para matar a saudade de uma aglomeração.
A notícia veio pelo WhatsApp em 2 de fevereiro, uma terça. Ribeirão Preto, cidade em que passei a pandemia isolada com minha mãe no interior de São Paulo, começaria a vacinar profissionais de saúde autônomos. Os de hospitais já estão recebendo o imunizante desde o dia 19 de janeiro.
A mensagem dizia que a vacinação aconteceria de quarta a sábado, das 9h às 15h, em dois lugares: o Centro Médico e a Associação Odontológica de Ribeirão Preto. Como boa inimiga das correntes de Whats, liguei para os locais para confirmar a informação. E era isso mesmo: a aplicação começaria no dia seguinte, 3 de fevereiro.
O anúncio apareceu aos poucos nos veículos de imprensa locais. Seriam administradas 700 doses por dia em cada local. Minha mãe é médica e estava tão ansiosa pela vacina que pensou em passar a noite na fila do Centro Médico. Eu ri. Não achei que alguém realmente fosse tratar aquilo como um show.
Acordamos às 7h. Embora a vacinação estivesse marcada para começar às 9h, tínhamos planejado sair de casa uma hora mais cedo para resolver qualquer burocracia – eram exigidos um documento ativo do Conselho Federal de Medicina (CFM) e um comprovante de residência. Ligamos a televisão para assistir ao jornal enquanto tomávamos café da manhã, e lá estava: a fila já virava o quarteirão. Engolimos a torrada e entramos no carro.
Chegamos por volta das 7h30 no local de vacinação. Os primeiros da fila haviam chegado antes das 5h da manhã – coisa que nem eu fiz para ver o Depeche Mode ao vivo. Os arredores do centro já estavam tão congestionados que quase não havia onde estacionar. A fila havia completado a volta no quarteirão; seu final já cruzava com o início. Dei a volta para contar, havia umas 350 pessoas.
Quem fosse chegando se acomodava em fila dupla. A segunda volta no quarteirão estava completa. O pessoal até tentava manter um distanciamento decente – afinal, eram todos profissionais da saúde –, mas a calçada é um espaço finito, e as pessoas mais pareciam ovos dentro da caixa, formando duas fileiras grudadinhas uma na outra.
A situação lembrava cada vez mais um pré-show na calçada. Uma nova informação passou de pessoa em pessoa, por telefone sem fio. A única credibilidade do informante era estar alguns metros à frente na fila. Ele dizia que a rua seria fechada pela Polícia Militar para espaçar a aglomeração.
Alguns minutos depois, chegou mesmo um carro da PM. Como eu não seria vacinada, deixei minha mãe na fila e fui até os policiais para saber se a rua seria mesmo fechada. Um deles riu e falou que não – que eles estavam lá para escoltar as vacinas. Perguntei a ele se havia planos de aplicar a vacina em policiais. “Você acha que o governador tá ligando pra gente? A classe que mais cagam na cabeça é a nossa”.
Após meia hora de papo sobre política, cachorros e espiritismo, me despedi do policial e voltei para a fila, que já tinha começado a andar. Minha mãe tinha feito amizade com um casal de idosos e uma mulher com um bebê de colo. As profissões ali eram as mais variadas: psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos, dentistas, biólogos e outros funcionários da saúde, todos com direito às 700 doses disponíveis no dia.
Na entrada do Centro Médico, a turma que chegou às 5h da manhã dizia que havia pessoas furando a fila para entrar na sala de vacinação. Começou a gritaria. “Ô enfermeira, esse aí chegou às 8h, eu tô aqui desde a madrugada!”
“Vai pro fim da fila! Isso mesmo, esse é o país que a gente vive”, esgoelou uma mulher que também já estava na cara do gol, prestes a ver a cor da seringa. Em seguida, palmas irônicas para os supostos fura-filas. Se eles de fato furaram a fila, eu não sei.
Já eram quase 10h da manhã e o Sol ribeirão pretano não dava trégua. Eu não era do grupo dos espertos que levou sombrinha, cadeira, água e protetor solar – estava com o pescoço, as axilas e o rosto atrás da máscara ensopados. Atrás de mim, uma moça oferecia um gole da garrafa de dois litros que ela levou. Como não havia opção a não ser beber no mesmo bico, a maioria resolveu recusar.
Ao lado da moça da água, percebi um terço balançando. Olhei para cima e vi uma outra mulher, de olhos fechados, provavelmente sussurrando um Pai Nosso debaixo da máscara. Além do comprovante de residência, ela carregava nos braços uma oração impressa e plastificada. Com tantos boatos indo e vindo pela fila, ninguém mais sabia se conseguiria tomar a vacina naquele mesmo dia.
Mais à frente, duas profissionais do Centro Médico passavam pela fila conferindo os documentos e distribuindo senhas. Pior do que aguentar o calor de jaleco branco foi ouvir repetidamente a opinião de todas as almas ali presentes: “Devia ter distribuído a senha pela internet”, “Tinha que ter pelo menos um toldo pra gente ficar aqui”, “Vocês têm que avisar o pessoal do fim da fila para eles voltarem amanhã”.
Fazia 34 ºC. Meus braços e pernas já estavam completamente vermelhos, e comecei a pensar na possibilidade de minha mãe ficar com insolação. Me ofereci para comprar água, comida ou pelo menos ir buscar um chapéu. Ela aceitou a água, mas estava relutante em tirar a máscara N95 para beber. Também estava preocupada com os idosos e a moça com o bebê debaixo do Sol. Eles só descobriram que tinham prioridade quando já faltava pouco para entrar – mas mesmo que tivessem descoberto antes, ainda precisariam de coragem para enfrentar a hostilidade dos que chegaram mais cedo.
Minha mãe pegou a senha 372. Inicialmente, seriam aplicadas 350 vacinas no período da manhã, e 350 à tarde. Talvez com medo de uma revolta popular (e com razão), os profissionais do Centro Médico decidiram não parar para o almoço e aplicar o máximo de vacinas o mais rápido possível. Ela recebeu a dose às 12h30 e voltamos para casa. A segunda é só em abril.
No início da tarde, quando já estava sentada no computador escrevendo este texto, veio a notícia no jornal local: um homem de 52 anos havia morrido na fila da vacina. A mesma fila em que eu estava minutos atrás. Ele sofreu uma parada cardiorrespiratória. As razões do infarto ainda estão sendo investigadas. Ele foi socorrido imediatamente por uma equipe do SAMU, mas não resistiu.
O homem, que era médico, já havia tomado a vacina no hospital em que atuava, mas estava na fila acompanhando a esposa, que é enfermeira. Se o mal súbito foi influenciado pelo momento, ou se o mesmo teria acontecido caso ele estivesse em outro lugar, não tem como saber. O fato é que a notícia repercutiu.
No dia seguinte, a prefeitura mudou o local de vacinação para um clube esportivo, para evitar a aglomeração na calçada. A fila, no entanto, se formou ainda mais cedo – uma dentista que chegou às 5h15 da manhã ficou com o número 255.
Passei o ano pensando na roupa que usaria no dia da vacinação da minha mãe. Acordei na quarta-feira bolando a legenda para um story no Instagram. Então me dei conta de que ainda estamos em uma pandemia, e de que romantizar o momento da vacinação é só mais uma forma de esquecer das mortes que nos comoviam no início de 2020. Todos queremos um pouco de proteção para encarar 2021. Naquele dia, o Brasil teve 53.665 infectados e 1.209 mortes por covid-19. Dez delas foram em Ribeirão Preto. 11 se contarmos o homem da fila.