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A ameaça do H5N1

193 milhões de frangos, galinhas e outras aves foram sacrificados para tentar contê-lo. Mas esse vírus continuou pipocando pelo mundo. E, agora, parece ter adquirido uma mutação preocupante: a capacidade de se propagar entre mamíferos. Entenda quais são os riscos de uma nova pandemia.

Por Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro
19 abr 2023, 15h20

Texto Bruno Garattoni e Tiago Cordeiro

Design e colagens Natalia Sayuri Lara

CCarral é uma cidadezinha tranquila, de 6.400 habitantes, no norte da Espanha. É cercada por propriedades rurais, que marcam seu calendário: todo ano tem a festa do pão, a festa do queijo, as festas do cavalo e da castanha. Mas, na primeira semana de outubro, uma dessas fazendas pode ter começado um novo capítulo da história humana.

O local, a poucos minutos de carro da cidade, era uma criação de vison, bichinho também conhecido como mink e até hoje abatido, com inegável crueldade, para fazer casacos de pele. Os animais da fazenda começaram a morrer e, em 4 de outubro, o veterinário do local coletou amostras nasais de dois deles.

Mandou para um laboratório do governo espanhol, que testou para a presença de Sars-CoV-2 (ele pode infectar diversos animais além de nós, incluindo os visons). Deu negativo. Mas detectou outra coisa: H5N1, um subtipo do vírus influenza que provoca a Gripe Aviária de Alta Patogenicidade, doença que afeta aves – e, nelas, tem uma taxa de mortalidade de quase 100%.

O incidente com os visons espanhóis não era o primeiro em mamíferos. Houve vários outros, em humanos inclusive (nas últimas duas décadas, 868 pessoas pegaram H5N1 no mundo).

Mas desta vez havia algo diferente. Nos casos anteriores, humanos e outros mamíferos contraíram o vírus após o contato com aves. Agora, aparentemente o H5N1 estava passando diretamente de um vison para outro. Os bichinhos continuaram a morrer até que, em 18 de outubro, as autoridades decidiram sacrificar todos os (52 mil) visons da fazenda. O surto foi contido.

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Uma das amostras foi submetida a análise genética, que revelou algo perturbador. O vírus era derivado de uma linhagem chamada 22P015977, que já havia sido detectada em gaivotas na França em 2022. Provavelmente ela foi se espalhando em aves pela Europa até alcançar Carral.

Só que chegou com uma mutação. “Os vírus detectados na fazenda de mink são diferentes de todos os H5N1 já caracterizados nas aves da Europa”, afirmou um estudo publicado por cientistas espanhóis e italianos (1).

As amostras tinham uma alteração no gene da proteína PB2 [veja infográfico abaixo], que pode dar ao vírus uma habilidade terrível: a capacidade de se propagar entre mamíferos. Como sabemos disso? “A mesma mutação está presente no vírus da gripe suína (H1N1), da pandemia de 2009″, explica o estudo.

Talvez você não se lembre, mas o H1N1 assustou o mundo naquela época: foram 491 mil casos confirmados, com 20 mil mortes. E a real quantidade pode ter sido muito maior. Um estudo (2) estimou o número global de infectados em 700 milhões a 1,4 bilhão. Segundo uma projeção da OMS (3), as mortes podem ter chegado a 284 mil. Felizmente, existiam vacinas, e a pandemia de 2009 foi contida.

Já naquela época, alguns cientistas enxergavam o H5N1 como a próxima ameaça. “As manifestações clínicas iniciais são não específicas, o que dificulta o diagnóstico”, afirma um artigo científico sobre esse vírus, publicado em 2009 por cinco pesquisadores da Universidade de Alfenas, em Minas Gerais (4).

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Os cientistas decidiram olhar para o H5N1 porque, na primeira década do século 21, ele começou a dar sinais preocupantes. “A partir de 2004 houve relatos, em vários países, de um grande número de aves sendo atingidas pelo vírus. Foi um sinal de alerta para um possível aumento de casos em humanos”, diz a infectologista Gabriela Araujo Costa, uma das autoras do artigo e hoje professora do Centro Universitário de Belo Horizonte. “Havia precedentes de pandemias com o influenza, algumas com grande número de óbitos”, diz.

Colagem com uma foca, duas raposas e galinhas.
(Natalia Sayuri/Getty Images/Superinteressante)

De fato. A Gripe Espanhola de 1918, que matou 17 a 50 milhões de pessoas (as estimativas são imprecisas), foi causada por outro influenza: uma versão devastadora do H1N1. Ele também foi o responsável, em 1977, pela chamada Gripe Russa, que começou na URSS e se espalhou pelo mundo, matando 700 mil pessoas.

Em todos esses casos (1918, 1977, 2009), o vírus foi mais letal em jovens e adultos do que em idosos – a OMS estima que, na pandemia de 2009, 80% das vítimas fatais tivessem menos de 65 anos. Não se sabe o porquê, mas uma hipótese é a chamada “tempestade de citocinas”:  o vírus causa a ativação excessiva do sistema imunológico, que passa a atacar os tecidos do organismo. Em pessoas jovens, o sistema imune é mais forte – e pode ser mais destrutivo.

O certo é que o influenza não pega só quem é fisicamente mais frágil. Por isso, é considerado especialmente ameaçador. “Em 1997, o mundo chegou perigosamente perto de outra epidemia global”, escreveram os virologistas Robert Webster e Elizabeth Walker, em artigo (5) sobre um surto de H5N1 ocorrido na China naquele ano.

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Aves foram sacrificadas, pessoas isoladas, e a doença contida – com apenas seis mortes. Mas poderia ter sido bem diferente. “Se o vírus tivesse obtido a habilidade de se espalhar de pessoa para pessoa, a pandemia poderia ter tirado a vida de 1/3 da população global”, diz o texto.

É essa capacidade que, agora, o H5N1 pode ter adquirido. Nos meses que se seguiram ao surto na fazenda de visons, houve casos em várias espécies de mamífero: focas, raposas, lontras, ursos, toninhas, golfinhos e até gatos, em locais tão díspares quanto a Inglaterra, os EUA e o mar Cáspio.

Em algumas dessas situações, há indícios de que a doença possa ter sido transmitida diretamente entre mamíferos (no mar Cáspio, por exemplo, 700 focas foram encontradas mortas perto de uma ilha).

Infográfico mostrando os casos de H5N1 no mundo.
(Natalia Sayuri/Superinteressante)

E o H5N1 segue se propagando entre aves – nos últimos meses, houve casos no Peru, na Venezuela, no Equador, na Colômbia e em Honduras (onde foram encontrados 240 pelicanos mortos por H5N1). “Este surto parece ser completamente novo, e com um desenvolvimento preocupante”, afirma o virologista Thomas Peacock, da Imperial College London. “Não está clara a razão para os atuais ‘transbordamentos’ [do H5N1] para mamíferos”, diz ele, que trabalha com duas hipóteses.

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A primeira, menos pessimista, é que haja tanto H5N1 circulando em aves que os mamíferos predadores estejam sendo expostos a ele com mais frequência.

A segunda tese é que o vírus realmente tenha se tornado transmissível entre mamíferos – o que ainda precisa ser confirmado por testes de laboratório. “Os seres humanos não têm imunidade preexistente ao vírus da influenza aviária. Se ele for introduzido na população humana, e houver uma mutação através da qual possa se espalhar entre as pessoas, particularmente por via aérea, ocorrerá uma pandemia”, diz Costa.

Vem aí o fim do mundo, então? Calma. Em alguns dos focos, como no Peru, o vírus não contém a mutação na proteína PB2, que o torna mais contagioso (6).

Além disso, mesmo nos casos em que essa mutação está presente, a transmissão em larga escala pelo ar (sem contato direto com um animal infectado) ainda é considerada difícil: para conseguir fazer isso, o H5N1 precisaria sofrer mais uma alteração, em uma proteína chamada hemaglutina [veja infográfico abaixo].

Acima de tudo, já existem vacinas contra o vírus (mais sobre elas daqui a pouco). O problema é que, se um dia o H5N1 começar uma pandemia, pode ser difícil fabricá-las na velocidade e quantidade necessárias. O motivo é quase uma ironia: a produção dos imunizantes depende das galinhas, cuja população pode ser dizimada pelo vírus. Desde 2020, 193 milhões de aves foram sacrificadas para tentar frear a propagação dele.

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O ovo, o vírus e a galinha

Surtos de H5N1 acontecem com alguma frequência. E ele também mata gente, não só bichos. Sabe aquelas 868 pessoas que contraíram o vírus nas duas últimas décadas? Nada menos do que 457 morreram (52,6%).

O Sars-CoV-2 mata em 0,1% a 2% dos casos, dependendo do país. Isso signfica que, mesmo se uma eventual pandemia de H5N1 alcançar muito menos gente que a do coronavírus, poderia causar um número avassalador de mortes.

Colagem com cientistas, ovos, um embrião de galinha e uma mão segurando uma seringa de vacina.
(Natalia Sayuri/Getty Images/Superinteressante)

Mas, ao mesmo tempo, essa taxa de 52,6% provavelmente está superestimada. Nas últimas duas décadas, deve ter havido bem mais casos de H5N1 do que foi reportado – e eles passaram despercebidos, porque não foram graves.

Em 2012, cientistas dos EUA analisaram amostras de sangue de 12 mil pessoas, colhidas em áreas de nove países que haviam registrado surtos desse vírus (7). Descobriram que 1% a 2% daqueles indivíduos possuíam anticorpos contra o H5N1 – portanto, eles haviam sido infectados em algum momento. E nem sabiam disso.

Em 2021, cientistas do governo canadense publicaram um estudo (8) no qual levam em conta esses fatores e tentam calcular 
a real letalidade do vírus. Resultado: morte em 14% a 33% dos casos. É menos, mas catastrófico também.

Acontece que essa projeção é baseada no modelo atual, com o vírus passando de aves para humanos. Até hoje, a maioria das vítimas de gripe aviária trabalhava em fazendas, com grande quantidade de aves, e provavelmente inalou uma “dose viral” bastante alta. Não é garantido que, caso o H5N1 um dia comece a ser transmitido entre pessoas, isso também vá acontecer.

Infográfico mostrando a mutação do vírus H5N1.
(Natalia Sayuri/Superinteressante)

A variante com a mutação na proteína PB2 supostamente é mais contagiosa porque não fica apenas nos pulmões, como o H5N1 “tradicional” – também se reproduz nas vias aéreas superiores (nariz e garganta), o que facilita sua transmissão. Acontece que essa mudança também pode torná-la menos letal. Foi o que aconteceu com o Sars-CoV-2, que a partir da variante Ômicron passou a preferir as vias aéreas superiores.

Mas você pagaria pra ver? Dados os riscos envolvidos, faz sentido planejar considerando o pior cenário. “Com o vírus agora espalhado por cinco continentes, pode ser muito difícil evitar que se torne uma pandemia. Mas é recomendável tentar reduzir a exposição humana ao H5N1”, diz Peacock. Segundo ele, isso pode ser feito aumentando a vigilância sobre as fazendas, monitorando casos suspeitos e sacrificando animais contaminados.

Até hoje, deu certo. O vírus H5N1 é conhecido desde 1996, quando foi identificado em gansos na província de Guangdong, no sul da China. Os primeiros casos em humanos vieram já no ano seguinte, em Hong Kong, com 18 doentes e seis mortos.

Entre 2003 e 2007, mais de 20 países da Ásia, da África e da Europa registraram casos em animais – em muitos desses locais, os surtos ocorreram em áreas por onde passam aves migratórias, que podem ter espalhado o vírus. Foi nesse período que começaram a se tornar mais frequentes os episódios em humanos. E ali, também, que surgiram as primeiras vacinas contra o H5N1.

A pioneira foi desenvolvida pelo laboratório Sanofi, e aprovada nos EUA em 2007. Em 2008 vieram a Prepandrix, da GlaxoSmithKline, e a Panvax, do laboratório australiano CSL Seqirus. Nos anos seguintes, surgiram mais cinco: Adjupanrix e Pumarix (Glaxo), Aflunov (Novartis), Foclivia e Audenz (CSL Seqirus).

Até hoje, elas foram produzidas em pequenas quantidades, longe do que seria necessário em caso de pandemia. Os Estados Unidos mantêm um número não divulgado de doses da Adjupanrix no Strategic National Stockpile, seu estoque governamental de medicamentos e vacinas. Procurado pela Super, o Ministério da Saúde não informou se o Brasil possui estoques de alguma vacina contra H5N1.

Mas, em caso de uma nova pandemia, ter imunizantes guardados pode não adiantar. Isso porque, assim como o influenza H3N2, que causa a gripe comum, o H5N1 evolui relativamente rápido – e é preciso ir atualizando as vacinas para que elas mantenham a eficácia.

Por isso os laboratórios farmacêuticos foram criando várias, contra diferentes cepas do vírus. Em março, o Instituto Butantan anunciou que está desenvolvendo um novo imunizante contra o H5N1. Os resultados dos primeiros testes em animais estão previstos para o segundo semestre deste ano.

As vacinas contra o H5N1 contêm duas proteínas, a hemaglutina e a neuraminidase, que o vírus normalmente usa para invadir as células humanas e sair delas depois de se multiplicar [veja no infográfico abaixo].

As vacinas são feitas injetando o vírus em ovos de galinha. Mas não ovos como os do supermercado: eles são “embrionados”, ou seja, vêm de galinhas que foram fecundadas por um galo – por isso, o ovo contém um embrião.

O vírus se multiplica no líquido alantoico, o fluido que envolve o embrião, durante três dias. Daí ele é extraído, inativado e transformado em vacina. Cada ovo rende apenas uma dose. “Já existem vacinas. Mas elas dependem de ovos, o que pode limitar a capacidade de produção”, diz Thomas Peacock.

A GAVI (“aliança global para imunização e vacinas”), ong que organiza campanhas de vacinação pelo mundo, estima que, se houver uma pandemia de H5N1, a fabricação das vacinas na quantidade necessária poderia levar “muitos meses”.

A única vacina que não utiliza ovos é a Audenz, do laboratório CSL Seqirus, aprovada nos EUA em 2021: ela é feita inoculando células, um processo que permite aumentar a produção mais rapidamente. O CSL Seqirus foi formado em 2015, quando a farmacêutica australiana CSL comprou a divisão de vacinas contra influenza da multinacional Novartis.

Ele é um laboratório relativamente pequeno, com faturamento anual de US$ 2 bilhões (contra US$ 100 bilhões da Pfizer e US$ 44 bilhões da AstraZeneca). Se houver uma corrida global por vacinas, pode não dar conta sozinho. Por isso, as outras empresas do setor começaram a se mexer.

A Sanofi disse que está pronta para reiniciar a produção se necessário, a GSK já está preparando vacinas contra a atual cepa do H5N1, e a Moderna está desenvolvendo um imunizante de RNA mensageiro (mRNA), que será testado em humanos até o final deste semestre. Mas isso não é garantia de êxito: a vacina de mRNA criada pela Moderna contra a gripe comum, por exemplo, fracassou nos testes.

Acima de tudo, há um impasse. Por um lado, não adianta sair produzindo bilhões de doses de vacina, seja ela qual for, contra o H5N1 agora – já que o vírus pode mudar. Por outro lado, também parece arriscado não fazer nada e ficar esperando, para só começar a agir em caso de emergência.

Não está claro qual é a melhor estratégia. Mas a humanidade deveria pensar nela. Porque a pandemia de Covid, infelizmente, não será a última.

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***

Fontes (1) Highly pathogenic avian influenza A(H5N1) virus infection in farmed minks, Spain, October 2022. M Aguero e outros, 2023. (2) The age-specific cumulative incidence of infection with pandemic influenza H1N1 2009 was similar in various countries prior to vaccination. H Kelly e outros, 2011. (3) Estimated global mortality associated with the first 12 months of 2009 pandemic influenza A H1N1 virus circulation: a modelling study. FS Dawood e outros, 2012. 

(4) Gripe aviária: a ameaça do século XXI. C Andrade e outros, 2009. (5) Influenza: The world is teetering on the edge of a pandemic that could kill a large fraction of the human population. R Webster e E Walker, 2003. (6) Highly patogenic avian influenza in birds in marine mammals and seabirds in Peru. M Leguia e outros, 2023. (7) Seroevidence for H5N1 Influenza Infections in Humans: Meta-Analysis. T Wang e outros, 2012. (8) Finding the real case-fatality rate of H5N1 avian influenza. F Li e outros, 2008.

 

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