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A ciência da margarina

Ela nasceu por ordem de Napoleão III. Era feita com banha de boi – e, num estado americano, a lei exigia que fosse rosa. Já foi mocinha e vilã da alimentação; até que, discretamente, passou por uma reformulação radical. E se tornou mais saudável que a manteiga.

Por Maurício Brum e Fernanda Simoneto
18 jul 2024, 10h00

AA rigor, não é lá tão difícil fazer manteiga em casa. Pegue o creme de leite, um pouco de sal e mexa vigorosamente por algum tempo até ganhar a consistência necessária. Não esqueça de ir removendo a água em excesso que sai durante o processo. A técnica é conhecida há milênios e se tornou ainda mais fácil com a tecnologia: hoje, basta usar uma batedeira, o que significa que nem é preciso fazer o trabalho manualmente.

Mas, a menos que você queira sentir o gostinho de fazer algo de forma artesanal, sequer há necessidade disso tudo, pois basta ir a qualquer supermercado e puxar dos refrigeradores um tablete ou pote do produto. Ou de sua meio-irmã muito mais jovem: a margarina, surgida no século 19 como uma alternativa mais barata – e saudável? – à manteiga.

Afinal, em teoria fazer manteiga pode até ser simples, mas nem sempre foi uma tarefa fácil conseguir os insumos para isso. Em tempos de crise, matérias-primas como o leite podiam se tornar escassas e, por causa disso, muito caras. Foi exatamente em uma situação dessas que o imperador francês Napoleão III
(sobrinho do Napoleão Bonaparte mais famoso) ofereceu uma recompensa a qualquer um dos seus súditos que fosse capaz de inventar um substituto.

Em 1869, o químico Hippolyte Mège-Mouriès conseguiu: partindo de uma fórmula que também utilizava gordura animal – no caso, o sebo bovino –, ele chegou a uma substância parecida o suficiente com a manteiga. Nascia a “oleomargarina”, cujo nome deriva dos termos em latim e grego para “gordura” (oleum) e “pérola” (margarite), em referência à cor e consistência do alimento. Não tardaria para o nome ser resumido como margarina.

Mège-Mouriès vendeu sua patente para a Jurgens, uma empresa holandesa que depois virou parte da gigante Unilever, hoje uma das maiores produtoras de margarina do planeta. O próprio inventor morreu pobre, mas viu sua ideia se tornar um sucesso de vendas após passar por repetidas transformações. O sebo bovino foi trocado por óleo de semente de algodão, iniciando a jornada da margarina como um produto feito com gordura vegetal  (hoje, ela costuma ser produzida com óleo de soja).

Colagem com Napoleão III, Hippolyte Mège-Mouriès, sebo de boi, boi, margarina e uma colher com margarina, com retalhos de papéis entorno.
O químico Hippolyte Mège-Mouriès criou uma fórmula que substituía o leite por gordura animal, mais barata. (Caroline Aranha/Fotos: Getty Images, Wikimedia Commons e Unsplash/Superinteressante)

No século 19, a margarina cruzou o Atlântico e chegou aos Estados Unidos, detonando um conflito comercial. Os fabricantes de manteiga, como seria de se esperar, ficaram indignados com a nova concorrente, e iniciaram um lobby pesado para inviabilizar o novo produto.

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No estado de New Hampshire, conseguiram pressionar pela criação de uma lei exigindo que a margarina fosse preparada com um corante rosa, para ninguém “enganar” os consumidores vendendo como se fosse manteiga. Quem descumprisse era obrigado a pagar uma multa de 100 dólares (cerca de US$ 3 mil em valores atualizados). A lei perdurou por duas décadas, até ser derrubada pela Suprema Corte.

A disputa por consumidores se tornou mais intensa no início do século 20, quando os fabricantes de margarina conseguiram contornar uma das maiores reclamações sobre o produto: a consistência, ainda “oleosa” demais.

Eles começaram a adotar um processo conhecido como hidrogenação: se você injetar hidrogênio em alta pressão num óleo vegetal, com a presença de um metal que atua como catalisador (no caso, o níquel), o resultado é uma gordura sólida. Era uma técnica revolucionária, cuja utilidade não se limitou à indústria alimentícia; a hidrogenação também ajuda no refino do petróleo. O criador dela, o químico francês Paul Sabatier, ganhou o Prêmio Nobel em 1912.

A margarina, agora com uma consistência mais palatável, galgou espaço nas prateleiras dos supermercados. Nas décadas seguintes, seus fabricantes passaram a investir em um argumento poderoso: as supostas vantagens à saúde.

Uma ajuda importante foi dada pelo primeiro grande estudo, no final dos anos 1940, que investigou o aumento de doenças cardiovasculares em vários países ocidentais. Ancel Keys, fisiologista e pesquisador da Universidade de Minnesota, nos EUA, desconfiava que os ataques cardíacos em americanos de meia-idade poderiam estar relacionados à alimentação.

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O estudo se iniciou em 1947, quando Keys começou a monitorar um grupo de homens em Minnesota. Em 1956, a iniciativa foi expandida no Seven Countries Study, que contou com a participação de colegas de Keys fixados em seis outros países além dos EUA: Finlândia, Holanda, Itália, Grécia, Iugoslávia e Japão. O objetivo era acompanhar o estilo de vida de indivíduos com culturas alimentares e vidas diferentes.

As conclusões centrais do estudo, publicadas em 1978, são as seguintes: consumir gorduras saturadas e ter níveis altos de colesterol no sangue aumenta o risco de problemas cardiovasculares.

Hoje, o Seven Countries é alvo de algumas críticas. Keys e seus companheiros teriam selecionado apenas dados e países que comprovavam suas hipóteses e ignorado outras variáveis importantes, como atividade física e nível de estresse.

Mas, na época, ninguém atentou para isso. E começou ali uma campanha contra as gorduras saturadas – que são encontradas na carne vermelha e nos laticínios, incluindo a manteiga. O termo “saturada” se refere às ligações químicas: nesse tipo de gordura, os átomos de carbono já estão ligados ao máximo possível de átomos de hidrogênio.

Parte da preocupação levantada por Keys e seus colegas fazia sentido. As gorduras saturadas aumentam o nível do LDL (“lipoproteína de baixa densidade”, na sigla em inglês), o chamado colesterol “ruim”. O excesso dessa molécula no sangue faz com que mais partículas do colesterol sejam transportadas do fígado para as artérias.

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Caso se mantenha elevado por um tempo, há risco de que o acúmulo dessas partículas leve a um entupimento dos vasos sanguíneos, a chamada aterosclerose, aumentando (e muito) o risco de infarto e acidente vascular cerebral (AVC).

Assim, em 1980, o governo dos Estados Unidos lançou sua primeira diretriz alimentar: um guia (1) que recomendava reduzir o consumo de alimentos ricos em gorduras, principalmente as saturadas, e a ingestão de colesterol. O guia era taxativo, endossando os achados de Keys: “se você tem números altos de colesterol no sangue, suas chances de ter um ataque cardíaco são maiores”.

As autoridades queriam melhorar a saúde dos americanos. Mas, com o tempo, o que aconteceu foi o contrário. Em cerca de 30 anos, o percentual de pessoas obesas nos EUA mais do que dobrou: foi de 13,4%, em 1980, para 34,3% em 2008, e continuou subindo – no ano passado, chegou a 41,9%. Parte do problema pode ser explicado justamente pela demonização das gorduras saturadas.

Em resposta às novas diretrizes alimentares, que recomendavam evitar esse tipo de gordura, os alimentos passaram a ter um percentual muito maior de carboidratos ruins. Basta olhar nas prateleiras do supermercado: é bem comum que alimentos que se apresentam como “baixos em gordura” contenham altos teores de açúcar.

A discussão sobre os efeitos das gorduras saturadas na saúde, ainda hoje, é bem menos consensual do que se imagina. Há quem diga que consumir produtos desse tipo com moderação não altera a saúde cardiovascular – e há quem diga que o risco é considerável, como defendeu Ancel Keys na década de 1950.

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Em 2020, uma revisão (2) liderada por pesquisadores britânicos analisou 15 estudos, envolvendo mais de 56 mil pessoas, para entender se o consumo de gorduras saturadas estava ou não associado à piora da saúde.

A conclusão foi que reduzir o consumo de gorduras saturadas poderia, sim, diminuir o risco de eventos cardiovasculares em cerca de 17%.

Mas uma outra revisão (3), feita em 2014 e publicada na revista científica Annals of Internal Medicine, analisou 76 estudos sobre o tema e concluiu algo diferente: “as evidências atuais não sustentam as recomendações de redução no consumo de gorduras saturadas e o aumento no consumo de gorduras poli-insaturadas”.

E aí entra a outra metade da história. Enquanto a gordura saturada presente na manteiga era demonizada, a indústria da margarina tentava promover seu próprio lado – destacando os supostos benefícios das gorduras insaturadas, que são encontradas nos óleos vegetais. Elas não contêm o número máximo possível de átomos de hidrogênio – por isso, é possível adicionar mais deles em processos químicos (como a hidrogenação).

Colagem com margarina, manteiga, faca com manteiga, sal e o símbolo da OMS, com retalhos de papéis envolta.
Segundo a OMS, a margarina atual, sem gorduras trans, é melhor para a saúde do que a manteiga. (Caroline Aranha/Fotos: Getty Images, Wikimedia Commons e Unsplash/Superinteressante)

As gorduras dessa categoria podem ser monoinsaturadas, como o azeite de oliva, quando apenas um átomo de hidrogênio pode ser adicionado, ou poli-insaturadas, quando a molécula permite a adição de dois ou mais átomos de hidrogênio. Nesta última categoria estão óleos vegetais, como o óleo de milho, além do ômega-3 e do ômega-6.

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As gorduras insaturadas são capazes de melhorar o colesterol “bom”. Chamado de HDL (lipoproteína de alta densidade), ele é o responsável por fazer um trabalho de “faxina” no corpo, removendo o excesso das partículas de colesterol das artérias. Justamente por isso, o consumo desse tipo de gordura é incentivado – com moderação, claro.

As gorduras insaturadas costumam ser líquidas à temperatura ambiente. Para que elas fiquem pastosas, e possam ser usadas para fazer margarina (bem como diversos outros alimentos, como bolachas, salgadinhos, bolos e sorvetes industrializados), precisam passar pelo processo de hidrogenação – aquele mesmo que foi inventado pelo francês Paul Sabatier, do qual falamos agora há pouco.

Só que a hidrogenação tem um problema. Porque, além de transformar óleo em gordura sólida, ela produz outro efeito: adiciona as chamadas gorduras trans aos alimentos. Elas aparecem porque, na prática, a hidrogenação não é perfeita – os átomos de hidrogênio não “grudam” corretamente em todas as moléculas. E algumas podem se converter em gordura trans (que tem esse nome porque seus átomos de hidrogênio ficam dispostos na diagonal; não paralelamente, como nas ligações cis).

As gorduras trans estão presentes em alguns alimentos in natura, como carne e leite, mas em quantidades muito menores do que as geradas pela hidrogenação. E, como uma série de estudos foi demonstrando ao longo dos anos, a gordura trans “industrial” faz mal à saúde.

“Substâncias que são feitas de forma artificial ou natural causam respostas diferentes no nosso organismo, na digestão e no metabolismo”, explica Luiza Gazola, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. A gordura trans presente aumenta o colesterol ruim e diminui o bom.

A cardiologista Gláucia Oliveira, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia, explica que o consumo desse tipo de gordura facilita a produção de células espumosas, que se acumulam no endotélio, o revestimento que fica dentro de todo nosso sistema circulatório e controla fatores como absorção de substâncias, pressão, coagulação e muito mais. “Essas células mudam toda a conformação do endotélio do vaso. Quanto mais delas uma pessoa tem, maior é a chance de acontecer um rompimento”, explica.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 540 mil pessoas morrem anualmente devido ao consumo de gorduras trans. E um estudo (4) canadense de 2015 indicou que elas estavam associadas a um aumento de 28% no risco de morte por doenças coronárias. Em suma: gordura trans é muito ruim.

Tanto que, desde janeiro de 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proíbe o uso de gorduras trans em alimentos comercializados no Brasil. A decisão segue diretrizes adotadas por outros países, como Estados Unidos, Argentina e África do Sul, que também proibiram a substância.

As margarinas continham gorduras trans. Para se livrar delas, a indústria substituiu a hidrogenação por outro método: a interesterificação, um processo que reposiciona os ácidos graxos dentro da molécula de gordura (e, com isso, transforma os óleos vegetais em sólidos). Esse procedimento já era conhecido há décadas, mas só ganhou força a partir dos anos 2000, com as preocupações a respeito das gorduras trans – e, mais intensamente, depois que elas foram proibidas.

 

Colagem com vidraçarias de laboratório, soja, molécula de hidrogênio e símbolo de transgênico, com retalhos de papéis envolta. Em cima da imagem, um box com
A margarina passou a ser feita com plantas, mas havia um porém: sua consistência era líquida demais. (Caroline Aranha/Fotos: Getty Images, Wikimedia Commons e Unsplash/Superinteressante)

 

As margarinas atuais são feitas por interesterificação. E elas são melhores para a saúde do que a manteiga – é o que afirma a OMS, que desde 2023 recomenda o consumo de margarina.

Ao mesmo tempo, vale encarar a interesterificação com alguma cautela. Pode bem ser que, no futuro, estudos mais apurados revelem que ela tem alguma consequência ruim – como aconteceu com a hidrogenação. “A indústria sempre tenta reformular os alimentos ultraprocessados. Mas o que observamos é que nenhuma dessas formulações até hoje foi benéfica”, diz Gazola. Parafraseando o velho ditado, cautela e canja de galinha (com pouca gordura envolvida), nunca fizeram mal a ninguém.

Sempre é bom manter a parcimônia e olhar bem o rótulo para saber se aquele produto de fato cumpre o que promete. “Idealmente, quando se diz que a margarina é melhor que a manteiga, imagina-se que a primeira contém gordura insaturada e polifenóis, mas isso nem sempre acontece”, explica Oliveira.

Fique de olho nesses ingredientes (os polifenóis são antioxidantes naturais, presentes em plantas). “Além disso, não se deve olhar somente para a gordura, mas também para a quantidade de sal e sódio”, afirma.

Se você não tiver preferência quanto à consistência do que vai usar na cozinha, o ideal continua sendo deixar de lado manteiga e margarina, e priorizar óleos vegetais, como o azeite de oliva. “Tudo depende do uso que você vai fazer. O equilíbrio é o mais saudável”, resume Gazola. O caminho para uma alimentação saudável passa por algo bem mais simples do que tecnologias e processos industriais: o bom senso.

***

Manteiga: dentro ou fora da geladeira?
Veja a resposta para essa dúvida centenária.

Por conter pouca proteína e água, a manteiga não é propícia para a proliferação de bactérias, especialmente se sua composição incluir sal. Por isso, se tornou comum conservá-la fora da geladeira, para que fique com consistência mais mole e fácil de passar no pão.

Mas deixá-la em temperatura ambiente favorece que a manteiga fique rançosa, com gosto e odor desagradáveis, ao menos na superfície – isso é resultado de um processo de oxidação que quebra as cadeias de ácidos graxos.

Também vale lembrar que, num país quente como o Brasil, tanto a oxidação quanto uma eventual contaminação se tornam mais comuns. Caso ainda assim você prefira conservá-la fora da geladeira, dê preferência a recipientes fechados e opacos, que dificultem a entrada de luz – é a melhor maneira de preservar o produto.

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