A real sobre a pílula antirressaca – e a ciência por trás do horror do dia seguinte
O Myrkl, suplemento que supostamente evita as consequências ingratas das noites de bebedeira, está fazendo barulho lá fora. Veja se ele funciona, e entenda o mecanismo biológico da ressaca.
Reportagem publicada originalmente em setembro de 2022
Anote aí: geleia, rim, figo, sabão, pimentão, mel, morcilha, ovos, semente de romã, galinha (com as penas), sal e (muita) pimenta. Misture tudo em uma panela e leve ao fogo. Eis a fórmula definitiva para a cura da ressaca, de acordo com Asterix e Obelix. Os irredutíveis gauleses do ano 50 a.C. descobrem a receita milagrosa por acaso, na HQ Os Louros de César, de 1971 – uma amostra do quão onipresente é o desejo por suprimir o mal-estar pós-bebedeira.
Onipresente e atemporal. No mundo de verdade, os romanos acreditavam que a saída era comer canário frito. Os assírios, milênios antes, preparavam uma mistura de bicos de pássaros com mirra, uma planta medicinal. Na Idade Média, médicos recomendavam ingerir enguias cruas e amêndoas amargas; os mongóis, olhos de ovelha em conserva.
Mais tarde, em 1845, o italiano Bernardino Branca criou o Fernet, bebida alcoólica misturada com várias ervas (e opiáceos) para “tratar” a ressaca – e doenças como o cólera. Duas décadas depois, em 1886, chegaria ao mercado a bebida do farmacêutico americano John Pemberton. Com doses de cafeína (e de cocaína), virou o levanta-defunto recomendado a quem estava de ressaca: Coca-Cola (que deixaria de conter o alcaloide a partir de 1904).
A mais nova invenção com o objetivo de mitigar a ressaca não é nenhuma receita exótica ou bebida – e sim uma pílula. Lançada em julho no Reino Unido, a Myrkl é um probiótico (nome dado aos suplementos alimentares que contêm bactérias) fabricado pela empresa sueca De Faire Medical. O nome é uma brincadeira com a palavra “miracle” (“milagre”).
É preciso ingerir duas cápsulas de Myrkl entre duas e 12 horas antes de beber. Elas são compostas por farelo de arroz, vitamina B12 e bactérias que, segundo a fabricante, seriam capazes de decompor, em até uma hora, 70% do álcool ingerido em água e CO2 antes que ele seja absorvido pelo corpo. Você ficaria menos bêbado – o que levaria a uma ressaca branda.
Uma caixa de Myrkl tem 30 pílulas e custa 30 libras (R$ 180). No Reino Unido, o estoque acabou no primeiro dia de vendas. De acordo com o site da marca, a produção atual não tem dado conta de atender a demanda (dá para encomendar o suplemento em outros 15 países da Europa, na Austrália e na Nova Zelândia). No Brasil, as vendas começam em outubro.
Mas, afinal, funciona? A suposta eficácia do Myrkl tem como base um único estudo – com uma série de lacunas que colocam o resultado em questão. Falaremos mais sobre isso adiante. Antes, é preciso entender quais são as causas da ressaca.
A vida depois do porre
Cansaço, sede, dor de cabeça, náusea, fraqueza, tontura, sensibilidade à luz, problemas de concentração. A ressaca é uma consequência da intoxicação por álcool, cuja primeira consequência é uma desidratação severa.
O álcool inibe a produção da vasopressina, o hormônio responsável por controlar a reabsorção de água pelos rins. Sem ele, os órgãos mandam água sem parar para a bexiga – e você se torna um frequentador de carteirinha do banheiro. O problema é que o sistema urinário vira um ralo para diversas substâncias de que o corpo precisa para funcionar corretamente (sais minerais, magnésio, potássio).
Nessa situação, o corpo vai atrás de todas as reservas de água disponíveis para continuar operando. O cérebro encolhe momentaneamente (já que parte da água que estava ali vai parar em outros órgãos). Isso tensiona as membranas que prendem a massa cinzenta ao crânio. Resultado: uma baita enxaqueca.
Ou seja, a desidratação está ligada à dor de cabeça, à sede e àquela sensação de boca seca quando você acorda. Mas os mecanismos biológicos da ressaca são mais complexos do que isso.
A metabolização do álcool pelo organismo acontece em etapas. Quando o etanol (a molécula do álcool etílico) chega ao fígado, a enzima álcool desidrogenase (ADH) se encarrega de transformá-lo em outra substância, o acetaldeído. E aí danou-se. Esse composto, de acordo com alguns estudos, é até 30 vezes mais tóxico que o próprio etanol, além de comprovadamente carcinogênico. O acetaldeído irrita o sistema nervoso central, e sua presença no corpo está associada a náusea, suor em excesso, vermelhidão do rosto.
Uma nova enzima (a aldeído desidrogenase, ou ALDH) transforma o acetaldeído em acetato, que, por sua vez, será decomposto em água e gás carbônico. É assim que o corpo se livra do veneno.
30 vezes mais tóxico que o próprio etanol. O acetaldeído é um produto intermediário da metabolização do álcool no fígado – e pode estar ligado a vários sintomas da ressaca.
A ação do acetaldeído, por sinal, ajuda a entender por que pessoas têm ressacas diferentes. Primeiro, pela idade. A capacidade do fígado em lidar com ele diminui à medida que envelhecemos – daí a ideia de que, após os 40, a ressaca deixa de ser um incômodo tratável com Nescau para virar algo entre dengue e chikungunya.
Tem a parte genética também. Existem variações da enzima ALDH que são mais rápidas na tarefa de transformar a coisa em acetato. Estima-se que algo entre 3% e 23% da população mundial produza essa versão turbinada da ALDH.
O contrário também acontece, com variações da ALDH que decompõem o acetaldeído mais lentamente. É fácil identificar quem possui essa mutação danosa: pessoas que bebem e ficam rapidamente com o rosto vermelhinho provavelmente demoram mais para se livrar do acetaldeído. Lá fora, o fenômeno recebeu o nome de “Asian glow” (“brilho asiático”), já que essa condição aparece em 36% dos nascidos no leste da Ásia.
Outros sintomas da ressaca estão relacionados ao próprio álcool, porque ele bagunça os neurotransmissores. O etanol aumenta a produção de um deles, o GABA, ligado à sensação de relaxamento e tranquilidade. Ao mesmo tempo, bloqueia os receptores de glutamato, a contraparte do GABA, responsável por excitar o sistema nervoso central. Em desequilíbrio, o corpo em ressaca corre atrás do prejuízo e aumenta a produção de glutamato – o que deixa você megassensível a estímulos (luz e som).
Como se não bastasse, o álcool também pode ser capaz de mexer com o sistema imunológico. Estudos já encontraram relação entre os sintomas da ressaca e altos níveis de citocina, uma proteína que regula a resposta imunológica. A hipótese é de que o álcool eleva brutalmente a produção de citocina. Isso gera inflamações (que, normalmente, seriam usadas para combater uma infecção) e desencadeia dores musculares, fadiga e perda de memória.
A ponta do iceberg
Apesar das possíveis explicações para a ressaca, ainda é difícil cravar com exatidão como ela surge e funciona.
“Embora o fato de a ressaca ser a consequência negativa mais comumente relatada do consumo de álcool, uma quantidade relativamente pequena de pesquisas tem sido dedicada a esse tópico.” A afirmação é do Grupo de Pesquisa de Ressaca Alcoólica (AHRG, na sigla em inglês), formado justamente com o objetivo de aumentar a produção acadêmica sobre o tema.
É que pesquisar sobre ressaca é difícil, mesmo. Não se trata de um fenômeno fácil de reproduzir em ensaios clínicos: os pesquisadores não podem interferir muito nos hábitos de bebedeira das “cobaias”, ou a situação ficaria longe da realidade (e há também um limite ético do quanto se pode embebedar alguém em prol da ciência). Aliado ao fato de não existir uma escala objetiva para medir a gravidade de uma ressaca, os especialistas acabam se apoiando em respostas subjetivas.
Mesmo a influência do acetaldeído ainda não é consenso. “Apenas alguns estudos estabeleceram correlações entre a gravidade de uma ressaca com altas concentrações da substância”, apontou um artigo (1) de 2020.
Ainda há muito o que descobrir – mas estamos avançando. Desde a criação do AHRG, em 2010, o número anual de estudos sobre ressaca triplicou no PubMed, plataforma que compila as principais publicações médicas do mundo. Em 2021, o grupo reuniu dezenas de artigos em um livro, que traz a definição mais atualizada de ressaca: “uma combinação de sintomas mentais e físicos negativos após um único episódio de consumo de álcool, começando quando a concentração de álcool no sangue (CAS) se aproxima de zero”.
Até pouco tempo atrás, diga-se, o consenso era o seguinte: para ter ressaca, era preciso beber até atingir 0,11% de CAS. Isso significa 0,11 g de álcool a cada 100 ml de sangue. É o equivalente a cinco latas de cerveja (75 ml de álcool puro) para um homem adulto de 80 kg – nota: mulheres obtêm concentrações de álcool mais altas no sangue para a mesma quantidade de bebida por terem proporcionalmente menos água no organismo do que os homens, e quanto menor o peso da pessoa, maior será a tal concentração). Vários estudos, porém, apontam que é possível sentir alguma ressaca a partir de qualquer nível de CAS.
A ciência ainda sabe pouco sobre como a ressaca surge e funciona. Isso porque ela é um fenômeno difícil de ser replicado em ensaios clínicos.
A AHRG também colocou em questão a falácia de que passar por várias ressacas te deixaria mais calejado com o passar do tempo. Nada disso: uma pesquisa (2) recente sugere que, na verdade, quanto maior a frequência de ressacas, mais severas elas tendem a ser. Outro estudo (3) analisou se homens e mulheres têm ressacas diferentes – e não encontrou evidências significativas (aparentemente, elas compensam a maior concentração de álcool no sangue livrando-se mais rapidamente das toxinas que mencionamos lá atrás).
Quando o milagre é demais…
O estudo no qual o Myrkl se baseia foi financiado pela De Faire Medical e contou com 24 voluntários com, em média, 25 anos. Metade tomou duas pílulas de Myrkl por dia ao longo de uma semana; o restante, placebo. Os participantes não sabiam a qual grupo pertenciam (o do suplemento ou do placebo).
Em seguida, os pesquisadores deram a eles bebida destilada (de 50 ml a 90 ml, dependendo do peso e do sexo dos voluntários) e analisaram a concentração de álcool no sangue. Após uma hora, o grupo que tomou Myrkl apresentou um CAS 70% menor em comparação ao outro grupo.
As responsáveis por esse resultado seriam as duas bactérias do Myrkl, Bacillus subtilis e Bacillus coagulan, capazes de transformar o etanol em água e gás carbônico no intestino, onde ocorre a maior parte da absorção de álcool para o sangue.
Qual o problema com o estudo? Primeiro, o baixo número de participantes. Pesquisas realmente conclusivas envolvem milhares de voluntários. Além disso, os pesquisadores analisaram pessoas que usaram Myrkl por uma semana antes de ingerir álcool, uma quantidade maior do que a dose recomendada na embalagem (duas pílulas de duas a 12 horas antes do consumo).
“O estudo deixa muitas perguntas sem resposta. A pílula funciona em pessoas que não são jovens, saudáveis e brancas? Funciona em pessoas com doenças intestinais ou hepáticas? Existem diferenças no efeito da pílula entre homens e mulheres? O que acontece quando comida e álcool são tomados juntos? Medicamentos alteram a ação das pílulas?”, questionou o hepatologista Ashwin Dhanda, da Universidade de Plymouth, em um artigo para o site de divulgação científica The Conversation.
Por essas, o marketing do Myrkl é cauteloso. No site do produto, não há nenhuma menção à palavra “ressaca”, e a empresa reforça que ele pode não funcionar com todo mundo. “Como o Myrkl é um suplemento e não um produto médico, somos restritos sobre o quanto podemos dizer sobre o que ele faz e quão eficaz é”, diz o aviso. “Você terá que descobrir por si mesmo lendo artigos e reviews.”
O Myrkl não é o único suplemento que visa a conquistar os sofredores de ressaca. Nos EUA, o Over EZ, da empresa EZ Lifestyle, alega ser uma “prevenção natural para ressaca”. Por aqui, o brasileiro Novvo não usa essas palavras – mas o marketing do produto dá a entender que as pílulas ajudariam a prevenir os ônus de uma noite de bebedeira.
Os dois suplementos possuem composições diferentes, mas ambos se baseiam na ação da glutationa, um antioxidante que, supostamente, ajudaria na absorção de acetaldeído. Um estudo (4) de 2020, no entanto, não encontrou relação entre os níveis do antioxidante com a gravidade de uma ressaca.
Seja como for, vale reforçar: suplementos alimentares não são remédios. Servem para complementar a dieta, e não para tratar, prevenir ou curar doenças. “Eles têm formulações inespecíficas – muitos ingredientes sem uma atividade pontual”, explica o médico Mario Khedi Carra, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “Imagina-se que possuam efeitos variados em certas condições, mas eles não têm uma finalidade nem lastro científico.”
O que funciona de fato
Não faltam “técnicas infalíveis” para prevenir ressaca – sobretudo aquelas envolvendo remédios. “Talvez a mais comum seja a de consumir um comprimido de Engov [indicado para dores de cabeça e azia] antes de beber e outro depois”, lembra Carra. O Epocler, que protege o fígado contra toxinas e acúmulo de gordura, também costuma ser lembrado nessas ocasiões.
Tanto o Engov quanto o Epocler são fabricados pela Hypera Pharma – e não: não funcionam para prevenir ressaca. “São medicamentos sintomáticos, ou seja, podem ter algum efeito sobre determinados sintomas da ressaca, como a enxaqueca”, diz Ricardo Amaral, diretor de ensino do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas da USP. Mais: ambas as bulas desincentivam o consumo de álcool durante o uso. A do Engov é ainda mais incisiva, e diz que o álcool pode potencializar os efeitos do ácido acetilsalicílico (um anti-inflamatório) no trato gastrointestinal – o que pode gerar gastrites.
O que fazer, então? Não tem muito segredo. Hidrate-se antes, durante e depois de entornar o caneco. “Tome um belo copo d’água antes de começar a beber – do contrário, você vai tentar matar a sede com cerveja [ou qualquer outra coisa que estiver tomando], o que levará a um ciclo de desidratação”, sugere Carra.
Alimente-se. O pH do estômago muda quando ele está cheio – o que dificulta a absorção de álcool. Ao beber, tente desacelerar o ritmo dos goles: isso dá tempo para o fígado metabolizar o etanol sem se sobrecarregar demais.
Se puder, opte por bebidas claras. Elas têm menos congêneres, subprodutos da fermentação ou destilação (acetona, metanol, taninos) que podem contribuir para a ressaca. Um estudo (5) colocou estudantes universitários para beber bourbon (uísque americano, feito de milho, com altos níveis de congêneres) e vodca (que tem poucos congêneres). A ressaca de bourbon foi maior.
Ainda vai demorar para que a ciência entenda perfeitamente os mecanismos do mal-estar do dia seguinte. E mais ainda para desenvolver um remédio eficaz contra ele. Mas tudo bem. A ressaca é a penalidade natural diante dos excessos com álcool. Um freio físico e moral – e talvez não seja uma má ideia ele continuar existindo.
Fonte (1) The Role of Alcohol Metabolism in the Pathology of Alcohol Hangover. (2) The Association between Alcohol Hangover Frequency and Severity: Evidence for Reverse Tolerance? (3) Sex Differences in the Presence and Severity of Alcohol Hangover Symptoms. (4) The Role of Alcohol Metabolism in the Pathology of Alcohol Hangover. (5) Intoxication With Bourbon Versus Vodka: Effects on Hangover, Sleep, and Next-Day Neurocognitive Performance in Young Adults.