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AIDS, A outra síndrome

Os efeitos sociais da AIDS revelam-se tão complexos como a própria enfermidade. Desde as campanhas educativas à exigência dos testes, todo um rol de problemas inesperados entra na ordem do dia. Uma coisa é certa: a doença mexe com a vida de todos

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 30 jun 1988, 22h00

Sete anos depois de ter sido identificada pela Medicina e de já ter provocado pelo menos 40 mil óbitos, a AIDS (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) derrama pelos quatro cantos do mundo uma variedade de conseqüências sociais tão complexas quanto a própria doença. De uma forma ou de outra, nas sociedades atuais ninguém está imune aos reflexos da AIDS nas relações humanas. “O problema da moléstia é muito maior do que aparece nas estatísticas de saúde”, afirma Jonathan Mann, do alto de seu posto de observação como diretor do Programa Global da AIDS, da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Existem implicações econômicas, comportamentais e demográficas que devem ser atendidas para atenuar o impacto pessoal da doença” adverte.

Foi com esse espírito que 1 milhão de delegados de 63 países e entidades internacionais como a OMS se reuniram recentemente em Londres para tentar montar o quebra-cabeça dos efeitos extraclínicos da AIDS. E, à medida que foram juntando as peças, começaram a enxergar os contornos de uma paisagem acidentada como poucas. Nela ressalta, por exemplo, o intrincado problema da linguagem, alcance e, em última análise, eficácia das campanhas de prevenção: como saber se elas estão ajudando de fato a conter a difusão de uma doença que — além de ser mortal e esconder ainda muitos segredos dos cientistas —tem a perversa peculiaridade de se manifestar só seis ou sete anos em média após o contágio?

Outro nó está na delicadíssima questão das tentativas (por parte de corporações e governos) de tornar obrigatórios os testes que identificam no organismo a presença dos anticorpos ao HIV, o vírus da AIDS: em que medida tais exigências podem configurar uma agressão aos direitos individuais e até que ponto têm alguma utilidade real? A reunião de Londres serviu também para confirmar que, assim como pode variar enormemente por país a proporção de doentes (por exemplo 2 por 100 mil habitantes na Alemanha e 20 por 100 mil nos Estados Unidos), também varia de país para país a escala dos problemas ligados à AIDS. Assim, enquanto na França o governo tem algum controle sobre 99 por cento do sangue usado em transfusões, no Brasil a fiscalização mal e mal cobre 50 por cento—uma carência que não pode ser subestimada, dado que as doações de sangue contaminado são uma das principais rotas de propagação da AIDS.

Mas, se com dinheiro e empenho os governos podem virtualmente acabar com o contágio por transfusão, muito dificilmente podem enquadrar as demais formas de transmissão, que, afinal de contas, de pendem exclusivamente do comportamento de cada um. “E nisso não se interfere sem tocar na liberdade individual”, observa a médica Lair Guerra de Macedo Rodrigues, que representou o Brasil no encontro de Londres na condição de coordenadora do Programa Nacional de Controle da AlDS do Ministério da Saúde. “Neste particular, todos os países pisam o mesmo terreno escorregadio”, constata.

O que torna o chão tão liso é o fato de se estar mexendo com um dos impulsos mais fundos do ser humano, a sexualidade—algo que, como na canção de Chico Buarque, “não tem juízo nem nunca terá”. As obscuras leis que governam a conduta sexual de cada um às vezes se divorciam não só da moral sexual vigente como também dos mais razoáveis mandamentos do bom senso. Se a AIDS fosse tudo o que é, mas nada tivesse a ver com sexo, como tantas outras moléstias transmitidas por vírus, seria muitíssimo mais fácil apostar na racionalidade das pessoas como garantia contra a sua propagação. Para piorar ainda mais as coisas, a grande maioria dos transmissores da AIDS são pessoas clinicamente sadias—aquelas que (sem saber) carregam o vírus HIV mas ainda não apresentam os sintomas que ele provoca. Pelos melhores cálculos, existem para cada aidético entre 50 e 100 portadores do vírus. Isso significa que, se existem atualmente cerca de 80 mil casos notificados no mundo inteiro, a população de portadores pode chegar a 8 milhões. Mesmo que esses futuros doentes se distribuíssem mais ou menos por igual por uma centena e tanto de países, o mero porte de um número como aquele indica o tamanho do problema com o qual a humanidade terá de conviver antes que as esperadas mudanças de comportamento sexual se reflitam nas estatísticas (o que ainda é uma incerteza) e antes que a ciência descubra a cura ou a vacina para a AIDS (o que ainda vai demorar).

Em 1982, data das primeiras contas da OMS, os 366 casos da época haviam aparecido em dezenove países, incluindo o Brasil, com seis doentes. Hoje, a AIDS está em todos os continentes e em pelo menos 128 países. (Não se sabe, a rigor, se existe algum país sem AIDS; o que existe são países que não fornecem informações sobre o assunto.) No Brasil, com quase 3 mil aidéticos conhecidos e talvez outros 2 mil não registrados, o Ministério da Saúde estima em até meio milhão o número de possíveis portadores. A rapidez com que o vírus deu a volta ao mundo induziu alguns países a tentar barrar-lhe o caminho por meio de providências que em alguns casos deixaram à mostra uma face preconceituosa.

Na Índia (nove casos contabilizados) e na União Soviética (cinco) ninguém entra sem um teste anti-HIV negativo. Há pouco tempo, a cantora Alcione e os dezoito músicos que a acompanham precisaram submeter-se ao teste antes de viajar para uma temporada de shows na URSS. Mas nem sempre todos são iguais perante a AIDS—ou perante certos governos. A Bélgica, por exemplo, obrigou ao teste os quase mil estudantes negros do Zaire (sua antiga colônia) que ali residem, mas não incomodou alunos vindos de países brancos. O mesmo fez a Inglaterra em relação aos 1200 estudantes nascidos em Zâmbia, Uganda e Tanzânia, ex-colônias—e ainda em relação aos 20 mil turistas africanos, sem distinção de passaporte, que todo ano desembarcam em Londres. Só que não se exige teste dos ingleses que voltam de viagem da África.

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Belgas e britânicos negam as acusações de racismo. Lembram que aqueles países não só estão entre os mais infectados como também que neles a AIDS não se espalha, como no Ocidente, a partir dos chamados grupos de risco (homossexuais, viciados em drogas injetáveis e hemofílicos), mas da população heterossexual. De fato, na região Centro-Leste, que compreende a Tanzânia, Ruanda, Burundi e Uganda, existem lugares onde um terço da população tem AIDS, incluindo mulheres e crianças. Ali a doença se propaga por causa da promiscuidade sexual. Mesmo assim, os especialistas da Organização Mundial da Saúde estão longe de se pôr de acordo sobre o efeito das políticas de testes obrigatórios para determinados grupos humanos. No Brasil, membros do governo e da classe média defendem que se exija teste anti-HIV de estrangeiros que solicitarem visto de permanência no país —umas 3 mil pessoas por ano. “Não vejo sentido nisso”, objeta Lair Rodrigues, do Ministério da Saúde. Ela explica que, devido ao fato de não ser o teste verdadeiro em 100 por cento dos casos—daí os chamados “falsos positivos” e “falsos negativos” —, sempre se correrá o risco de se abrirem as portas a imigrantes contaminados e de fechá-las a pessoas sadias.

Mais complicado é o debate sobre a exigência do teste de candidatos a emprego. A discussão é muito acesa nos Estados Unidos, onde algumas corporações já adotam essa prática, enquanto uma lei a proíbe em empresas que recebem recursos do governo federal. Como no Brasil não existe lei alguma a respeito, a possibilidade de que certas companhias venham a pedir o teste preocupa o Conselho Federal de Medicina. “É uma questão de ética”, explica Gabriel Oselka, vice-presidente do CFM. “O médico só deve informar ao empregador se o candidato está ou não apto ao trabalho; se é portador do vírus, só ele mesmo deve ser informado.”

Com seus 13 500 funcionários espalhados por cinco Estados, a Rhodia é o exemplo da grande empresa que prefere apostar na informação e não na discriminação. Há dois anos ela gasta dinheiro em campanhas educativas, que incluem um filme de duas horas e meia sobre a AIDS. A Rhodia não oferece testes aos funcionários “porque não temos estrutura montada para isso”, segundo Marcos Wasserstein, gerente do departamento médico. Mas não o nega aos interessados. A empresa tem dois funcionários com o vírus. Um deles, que já apresenta os primeiros sintomas da AIDS, recebe assistência de saúde. Nos Estados Unidos, onde um aidético gasta em tratamento algo como 20 mil dólares por ano (no Brasil o custo é um pouco maior devido aos medicamentos importados), as companhias de seguros estão em pé de guerra para recusar clientes portadores do HIV.

A maioria das seguradoras brasileiras já não dão cobertura a despesas com doenças infecto-contagiosas, como a AIDS. Uma exceção é o Itaú, com 1,2 milhão de clientes. “Não recusamos quem quer que seja”, garante Alfredo del Bianco, diretor técnico da seguradora. “Damos cobertura à AIDS se a doença for notificada após o início do contrato e dentro dos limites nele estipulados.” Com o inevitável aumento do número de aidéticos nos próximos anos, não faltarão episódios de discriminação. “Já é hora de as pessoas se organizarem pensando nisso”, acredita o advogado Marco Antônio Rodrigues Barbosa presidente da Comissão Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de São Paulo. Ele não vê, no caso da AIDS, um conflito entre direitos individuais e direitos coletivos, “mesmo porque, com o crescimento da doença, logo estaremos falando em direitos de uma coletividade com dezenas de milhares de indivíduos”.

Nos Estados Unidos, onde em 1991 haverá 270 mil aidéticos, ocupando (em Nova York) dois em cada dez leitos de hospital, muita gente já reclama que as pesquisas sobre a AIDS consomem montanhas de dólares que deveriam ser gastas na busca da cura; para o câncer. Isso mostra uma competição por recursos sociais que só tende a se acirrar, com reflexos sobre a atitude das pessoas diante dos aidéticos. Também para conter esses conflitos as campanhas informativas são necessárias. “Elas são na verdade a única arma contra a AIDS”, ressalta Lair Rodrigues. O problema é como fazê-las acertar o alvo.

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Para começar, existe um verdadeiro tiroteio no escuro entre os que criticam as campanhas por serem desbocadas e os que acham que é preciso falar mais claro ainda. “Raramente a reação das pessoas é adequada”, observa, desalentado, o médico Gabriel Oselka, do CFM. Além disso, para não pouco homossexuais, as campanhas não passam de propaganda moralista. Para um número talvez ainda maior de heterossexuais, as campanhas escondem que os riscos de se contrair AIDS são na verdade bem maiores. Mesmo em países desenvolvidos a desinformação e o medo alcançam níveis surpreendentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais da metade da população não sabe com segurança como o vírus da AIDS se transmite —e um em cada três médicos tem receio de tratar de aidéticos.

A paranóia não é menor aqui”, suspira a médica Lair do Ministério da Saúde. “Quase todo dia algum colega me liga achando que pegou AIDS.” Da mesma forma, a discussão sobre a linguagem das campanhas não é exclusividade desse ou daquele país. Na liberadíssima Dinamarca, uma organização de país conseguiu tirar do ar um filmete que insinuava sexo entre adolescentes. Na União Soviética, não poucas resistências precisaram ser vencidas para que um locutor pudesse dizer pela primeira vez na TV a palavra preservativo – agora, em março último. Na religiosa Itália, volta e meia trechos de filme sobre AIDS são censurados. É provável que, para funcionarem, as campanhas devam mesmo ser fortes, diretas e sem meias palavras. Mas não há como negar que, irrompendo nas casas via TV, proporcionam uma aula de educação sexual, prematura e carregada de problemas, ao público infantil. A AIDS também obriga as sociedades a virar a cabeça diante de certos comportamentos até bem pouco tempo frontalmente reprovados. Em Nova York, por exemplo, já se distribuem agulhas descartáveis a drogados, para que ao menos não transmitam o vírus. A experiência sofre cerrada oposição de setores sociais para quais ela significaria na prática aceitação da droga. Em outros Estados americanos, briga-se por causa da iniciativa de distribuir preservativo nas prisões: segundo os críticos, isso estimularia o homossexualismo, “Seria ótimo se o mesmo fosse aqui”, retruca o médico Gabriel Oselka. Motivo: estima-se que até três em cada dez dos 300 mil sentenciados brasileiros são portadores do vírus HIV.

Às vezes, o próprio público-alvo rejeita as campanhas. Em certas tribos africanas, apesar das advertências, não se pensa em parar com certos ritos que envolvem cortes no corpo-uma prática milenar que se transformou em outra fonte de transmissão da AIDS. Apesar desses percalços todos, os maiores especialistas no assunto insistem em que só não se pode uma coisa na guerra contra a doença: ferir os direitos das pessoas. Não se trata apenas de um valor moral. Como observou na reunião de Londres, o diretor do programa da AIDS da Organização Mundial da Saúde, Jonathan Mann,”as ameaças aos direitos individuais acabam estimulando clandestinidade da doença—mais casos deixarão de ser notificados e mais difícil ficará atacar o problema”.

Para saber mais:

Um inimigo na intimidade

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SUPER número 1, ano 3)

Aids hoje

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Explosão no Terceiro Mundo

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(SUPER número 9, ano 6)

Intimidades pelo telefone

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Perguntas sem respostas

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(SUPER número 8, ano 7)

Heróis da resistência

(SUPER número 11, ano 9)

Aids a 1% da cura

(SUPER número 10, ano 10)

De vigia a traidor

Cientistas americanos descobriram recentemente que o vírus da AIDS penetra no organismo não apenas na forma de microorganismos soltos no sangue ou no esperma, mas também dentro de macrófagos—e isso faz uma enorme diferença. Células do sistema imunológico, os macrófagos têm o notável poder de romper barreiras: assim, atravessam as paredes dos vasos sangüíneos em direção à mucosa ou em sentido contrário. Nesse trajeto, eles prendem os agentes estranhos que encontrarem, como os vírus, para que sejam melhor atacados pelo exército de anticorpos do sangue. Ora, se o HIV pode contaminar os macrófagos, isso significa—ao contrário do que se tinha como certo—que a transmissão do vírus não depende necessariamente do rompimento de microvasos sangüíneos durante a relação sexual.

Dentro dos macrófagos, os vírus atravessam a mucosa até chegar à corrente sangüínea O pior, nesse processo, é o que acontece com os próprios macrófagos. Normalmente, são eles que disparam os mecanismos de defesa do organismo, ao avisar as células que portam um inimigo a ser combatido. Infectados pelo vírus da AIDS, porém, eles passam a agir como traidores, deixando de avisar que há um invasor a caminho. Sem esse alarme, uma eventual vacina anti AIDS poderia ser inútil, visto que os anticorpos adquiridos graças a ela não seriam despertados. A descoberta, portanto, sugere que há mais obstáculos entre a AIDS e sua cura do que supunha a ciência.

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