Yoga é mera ginástica, religião mística ou remédio milagroso?
Afinal, o que é essa disciplina indiana de 5.500 anos - e o que ela tem a lhe oferecer?
Empresários, médicos e donas-de-casa dobram, alongam, retorcem seus corpos. Socialites, advogados, vendedores e artistas equilibram-se calmamente de cabeça para baixo, apoiados em tapetinhos de borracha. Crianças, juízes, executivos, gestantes, surfistas e convalescentes sentam-se em postura de lótus, controlam a respiração, entoam mantras. Desde o auge da contracultura nos anos 60 não se vê tanto interesse por yoga nos países ocidentais. Acredita-se que 15 milhões de pessoas incluem alguma forma de yoga em seus exercícios físicos, só nos Estados Unidos. No Brasil, onde ainda não está claro para a maioria das pessoas se yoga é ginástica, remédio ou religião, é mais prudente não arriscar números. É que não há a mais pálida estatística a respeito.
Ninguém precisa saber o que é o yoga, no entanto, para perceber que a prática difunde-se rapidamente. E não só em escolas especializadas, mas também em empresas, clínicas, hospitais e universidades. Yoga é uma das aulas mais procuradas no Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo (Cepeusp) e tema de cursos de extensão e de pós-graduação, nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo, por exemplo. A maior visibilidade do yoga, porém, está nas academias de ginástica. Seis das maiores academias do país, localizadas na capital paulista, calculam ter, juntas, aproximadamente 3 000 alunos de yoga. Entre eles, muita gente que chega pensando ter descoberto um jeito de ficar com um corpinho bonito e acaba descobrindo que yoga é bem mais do que isso.
Yoga é algo bem diferente do que o modismo atual faz parecer. Como sempre acontece quando se tenta enxergar uma cultura com os olhos de outra, surgem simplificações e equívocos. De um lado, há quem veja apenas um método terapêutico para aliviar dores nas costas. No extremo oposto, vinga um misticismo cego de quem acredita que vai obter poderes fantásticos com a prática. E a confusão só aumenta. Será que ainda resta algo da antiquíssima disciplina indiana nisso que, para muitos, significa apenas mais uma modalidade de fitness? Afinal, o que é yoga? Funciona mesmo? De que maneira? E para que serve?
O yoga – trata-se de um substantivo masculino, e o mais correto é pronunciá-lo com “o” fechado, como em “ovo”, e escrevê-lo sem acento circunflexo – significa jugo, canga, união. Seu sentido mais comum é unir, religar o ser humano à sua essência. Mas a palavra tem outras acepções, como trabalho, caminho, harmonia, força, poder, atividade, ensinamento, conexão. O termo está presente em cada uma das abordagens espirituais da religião indiana: ritual (carma-yoga), devocional (bhakti-yoga), intelectual (jnana-yoga) ou meditativa (dhyana-yoga). A Bhagavad Gita, grande clássico da literatura indiana, e uma bíblia para os yogues (que vêm a ser, simplesmente, os praticantes de yoga), aponta seis significados para o termo.
José Hermógenes, um dos responsáveis pela difusão do yoga no Brasil e autor do livro Autoperfeição com Hata Yoga cita as definições expressas na Gita: equanimidade na vitória e na derrota; habilidade e eficiência na ação; o supremo segredo da vida; aquilo que gera indizível felicidade; serenidade; e o que extingue a dor.
Yoga, portanto, é uma disciplina que abrange todos esses significados. E é com essas características que ele compõem um dos seis sistemas ortodoxos da filosofia indiana. Nessa organização, o yoga é complementar a outra escola, o samkhya. Enquanto o samkhya trata da metafísica, da relação entre matéria e espírito, o yoga trata da relação entre a mente e o corpo. E por isso é essencialmente prático. Não há estudos conclusivos sobre quando o yoga foi criado. Especula-se que a doutrina fazia parte da antiga civilização do Vale do Indo (3500 a 2000 a.C.). O certo é que já existia séculos antes de ser compilado no Yoga Sutra, um conjunto de 196 aforismos, atribuídos ao sábio indiano Patañjali, que os teria escrito em alguma data entre 400 e 200 a.C.
É essa a base do Raja Yoga, ou Yoga Real, cujo objetivo final é nada menos do que a “dissolução no absoluto”. Patañjali afirma que yoga é a “cessação dos turbilhões da mente” (em sânscrito: yoga citta vrtti nirodha). Mas o que se ganha, afinal, aquietando a mente? Pode parecer óbvio, mas não é. Para entender isso, deve-se considerar que a cultura indiana vê o homem como um todo no qual se expressam simultaneamente a consciência, o intelecto, o ego, a mente, o sistema sensorial e o corpo físico. “A ideia é isolar o excesso de visão mental, intelectual e do ego para despertar a consciência no corpo todo”, explica o médico César Deveza, especialista em medicina ayurvédica e autor de uma tese de mestrado na USP sobre o tema.
Quer um exemplo de consciência corporal? As diversas posturas são os chamados ásana, posições corporais cujo objetivo é desviar a atenção da mente para uma percepção sensorial mais ampla. De acordo com o que se acredita no sistema de yoga, durante os estados normais de consciência, os pensamentos manifestam-se em fluxos contínuos e têm efeitos concretos no corpo. A sensação de medo, por exemplo, pode se traduzir em tensão muscular. A ansiedade torna a respiração sôfrega. Sustos desestabilizam a pressão arterial. A ideia central do yoga é perceber que a recíproca é verdadeira. Ou seja: mente superficial e agitada produz respiração igualmente superficial e agitada. Aquietando e aprofundando a respiração aquieta-se e aprofunda-se a mente.
E mais: se a mente ansiosa é capaz de tensionar um músculo, o alongamento muscular é capaz de distensionar a mente. Eis aí a tal consciência do corpo.
Admitir esse raciocínio é admitir que o yoga funciona. E perceber que ele é na verdade um método empírico que traz resultados rápidos. Não se trata de um domínio excessivamente transcendental e de difícil assimilação para criaturas geradas numa cultura cartesiana e cientificista como eu e você. Basta perguntar para uma daquelas pessoas tranquilas e sorridentes na saída de uma aula o que o yoga mudou em suas vidas. Você ouvirá gente dizendo que teve melhoras no sono, na flexibilidade muscular, na digestão, no controle da ansiedade. Marcos Rojo, professor de Educação Física da USP e coordenador do Curso de Pós-Graduação em Yoga da FMU, relata casos de atletas treinados por ele que tiveram significativos progressos em concentração (no caso de tenistas) e na respiração (alpinistas que despendem grandes esforços em altitudes onde o ar é rarefeito).
Mas não é preciso ter corpo de atleta para experimentar os benefícios do yoga. Veja o caso dos pacientes da médica Maria Auxiliadora Craice, do Hospital Heliópolis, em São Paulo. São geralmente vítimas de câncer de reto que tiveram sua função de evacuação transferida para uma alça de intestino presa na parede abdominal, conectada a uma bolsa externa. “Nesse caso, o yoga proporciona uma melhora geral, tanto no aspecto físico quanto emocional”, diz a médica. “Usamos uddiyana-bhanda (técnica que permite dilatar o tórax sem deixar entrar ar, criando assim uma pressão negativa). Os pacientes sentem-se mais seguros e à vontade com sua nova condição física.” Hoje, muitos deles não só conseguem ficar de barriga para baixo – posição considerada difícil para quem passa por esse tipo de cirurgia – como são capazes até de executar posturas mais complicadas, como ficar de cabeça para baixo.
O yoga também é praticado por pessoas que não têm qualquer necessidade específica a satisfazer. Gente que não é atleta nem um paciente em recuperação. E que traz o yoga para sua vida pelos benefícios que a doutrina pode trazer. Agora, pasme: por paradoxal que isso possa ser, a qualidade de vida não é o verdadeiro objetivo da prática. “O yoga não foi desenvolvido para um público que procurava apenas saúde ou bem-estar”, explica o médico Deveza. Segundo ele, os antigos yogues que viviam em florestas e cavernas tinham uma meta muito mais alta: transcender a existência humana. “A saúde era mera consequência.” A respiração dos yogues, segundo Deveza, precisava ser perfeita. Seus movimentos musculares, livres de contraturas. E o pensamento tinha que estar totalmente sob seu controle. Ou seja: o que a experiência dos yogues indianos deixa transparecer, assim como o que sempre se afirma nos principais textos desse sistema, é que os exercícios práticos servem mesmo é como preparação à meditação.
“Yoga sem meditação não é yoga”, diz Pedro Kupfer, escalador de rochas, surfista e um dos principais formadores de professores de yoga no país, a partir de sua academia, em Florianópolis. “Minhas aulas nunca têm hora para acabar, já que depois dos exercícios fazemos pelo menos 40 minutos de meditação”. Esta talvez seja a principal diferença entre a ideia que se faz de yoga em muitas academias e a forma como ela é encarada pelos praticantes mais ligados às tradições indianas. Para estes, fieis ao Yoga Sutra de Patañjali, posturas corporais e exercícios respiratórios são apenas dois dos aspectos mais conhecidos de um sistema que possui oito etapas (ou ashtanga). Esse sistema inclui desde a disciplina moral até a absorção meditativa. À primeira vista parece ser algo muito complicado. Mas os praticantes mais experimentados tentam dar exemplos de que todos esses preceitos éticos têm aplicações muito práticas, até mesmo quando se faz os exercícios.
A não-violência, por exemplo, é sempre lembrada pelos professores como algo que deve-se observar durante os ásana, evitando forçar perigosamente o próprio corpo. Outro exemplo: não mentir ajuda a manter a mente calma – pois não será necessário lembrar-se da mentira mais tarde, para evitar ser pego em contradição.
Bem, você já faz uma boa ideia do que seja o yoga. Agora, como é que ele funciona? De que jeito ele opera a sua mágica? Essa explicação não é simples. Organicamente, as técnicas do yoga têm efeito em duas situações: no alongamento e nas modificações das pressões internas. No aspecto físico, além dos ásana (posturas) e pranáiamas (controle dos ciclos respiratórios), existem bandhas (contrações e retenções) e kryas (purificações). Já os mudrás (gestos arquetípicos aos quais se atribui a realização de determinados estados de consciência) teriam efeitos mais psicológicos ou sutis. Sob o ponto de vista fisiológico, os ásana trabalham com receptores proprioreceptivos – partes do sistema nervoso cuja estimulação se origina geralmente na própria atividade do órgão que os contém. Em geral esses receptores estão localizados em articulações, tendões e músculos.
Veja o caso dos ásana de postura invertida, aqueles em que o praticante fica de cabeça para baixo. Toda a fisiologia humana está adaptada a um sistema que depende do corpo estar em seu estado normal, com a cabeça voltada para cima. Quando se pratica qualquer uma dessas posturas, mesmo que por um segundo, o organismo tem de se adaptar. Isso lança desafios para o corpo. Na chamada vrschikásana, ou postura do escorpião, por exemplo, observam-se vários níveis de reação: no mais superficial, facilita o retorno venoso dos membros inferiores, com benefícios para o sistema circulatório. Em um nível mais sutil, há uma alteração na fisiologia que exige grande atenção do sistema nervoso central. Todos os receptores são estimulados ao mesmo tempo e têm de se adaptar ao fato de o corpo estar de cabeça para baixo. Essa informação acionaria vários receptores neurológicos e contribuiria para despertar uma consciência corporal que suplantaria aquela tradicional, centrada na mente.
Segundo toda a compreensão do yoga clássico e de seus principais tratados, mais importante do que os estímulos físicos é a atenção do praticante ao que está acontecendo com seu corpo. Isso faria diminuir o foco excessivo que os ocidentais costumam ter nos processos mentais. Ora, mas quem puxa ferro em uma academia também não está movendo sua atenção para o corpo? “Sim, mas a ginástica trabalha tensões. O yoga, distensões”, observa o médico Deveza.
Os chamados bandhas (retenções e contrações, sobretudo musculares) que a médica Auxiliadora recomenda a seus pacientes, produzem, segundo ela, pressões negativas onde, em geral, se têm pressões positivas. O uddiyana-bhanda, por exemplo, consiste em massagear os órgãos internos, com uma espécie de sucção. Na sua execução, pressiona-se a parede abdominal contra a coluna vertebral, elevando o diafragma.
“Os resultados são evidentes: maior retorno venoso para as câmaras cardíacas e oxigenação dos alvéolos geralmente não utilizados na respiração de base”, explica o médico Deveza. Assim talvez fique mais fácil para nós, ocidentais, entendermos um exercício que foi desenvolvido por praticantes que certamente não pensavam em termos de “câmaras cardíacas” ou “retorno venoso”. Para a cultura indiana, o corpo funciona como um receptor de energia cósmica (prana). A recepção dessa energia seria feita através dos chákras. Também conhecidos como padma ou lótus, os chákras são descritos como centros de captação, armazenamento e distribuição de prana. Assim, toda essa descrição médica faz tanto sentido para os yogues quanto faria, para nós, a linguagem simbólica que usam para descrever o mesmo uddiyana-bhanda: “Grandes pássaros, ou alentos vitais, em vôo ascendente rumo ao lótus das mil pétalas ou chacra da coroa.”
Deu para perceber o fosso que existe entre as duas culturas na hora de descrever o funcionamento do corpo? Por isso, é bom evitar o que fazem muitos livros, tanto ocidentais quanto indianos, que tentam estabelecer uma relação direta entre exercícios de yoga e a capacidade de interferir no sistema nervoso autônomo. Pelo menos até que surjam pesquisas detalhadas a respeito. O mesmo vale para a insistência com que se busca um paralelismo entre o sistema endocrinológico e os chakras É importante observar como a prática traz resultados, ainda que as explicações exatas sobre o funcionamento do yoga nem sempre sejam tangíveis. Ignorando seus processos internos, o homem moderno identifica-se o tempo todo com as condições externas e sofre por concentrar-se demasiadamente na racionalização – o oposto do que propõe o yoga, com sua ideia da consciência no corpo todo.
Ainda confunde-se yoga com “fazer yoga”, como se fosse uma aula de musculação. “Tem muita gente fazendo ginástica e pensando que é yoga”, alerta Hermógenes, um dos precursores do yoga no Brasil. Na verdade, pode-se estudar yoga mais objetivamente em um determinado horário, mas a prática só faz sentido quando incorporada ao cotidiano. Isso tem muito a ver com a capacidade de transformar emoções, evitando os automatismos que tendem a fazer com que a reação à raiva seja mais raiva, que medo gere mais medo e assim por diante. Yoga verdadeiro é praticado 24 horas por dia. Deve fazer parte do trabalho, onde, diante de um problema tem-se a certeza de que será melhor resolvê-lo com a mente calma e observação serena do que espalhando ansiedade entre os colegas. Na escola, aproveitando os recursos de concentração. Nas relações pessoais, domando o próprio ego e procurando entender as razões do outro. E até – por que não? – no engarrafamento de trânsito.
Sim, eis aí uma ótima oportunidade de perceber que a mente tende a se identificar com o caos instalado pela imagem de carros parados, sons das buzinas e ideia de tempo perdido. Yoga, nesse caso, é perceber que a mente não precisa se transformar naquilo que ela observa. E que, se o engarrafamento é inevitável, não há nenhum motivo para que você, além de atrasado, chegue irritado ao seu destino.
Os oito mandamentos do yoga
Embora mais conhecido pelas posturas corporais e pelos exercícios respiratórios, o yoga tem oito preceitos básicos. Juntos, eles compõem os oito “membros” do sistema, ou ashtanga. Os cinco primeiros purificam e sublimam a mente, como preparação para os estágios superiores do Raja Yoga, ou Yoga Real, cuja meta é a meditação e a união com o absoluto.