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Eletricidade sob suspeita

A hipótese teve o impacto de um choque: as correntes de alta tensão podem causar câncer. Pesquisas em vários países, incluindo o Brasil, tentam saber se isso é verdade. Nada está provado; a desconfiança é forte.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h32 - Publicado em 31 jul 1990, 22h00

Flávio Dieguez

As ondas eletromagnéticas são tão comuns que normalmente ninguém se dá conta delas. Estão presentes no calor que o peito da mãe transmite ao bebê, na luz do Sol e das estrelas, nas ondas de rádio e de televisão e também em torno das linhas de alta tensão que transportam pesadas cargas de energia para iluminar as cidades e mover as linhas de montagem industriais. Benéficas servas da humanidade, uma das marcas registradas do século XX, essas ondas estão agora sob a implacável luz de uma grave suspeita: mesmo nas fracas doses emitidas pela rede de distribuição de energia ou pelos eletrodomésticos, dos cobertores elétricos aos aparelhos de TV, dos secadores de cabelo às máquinas de café, elas poderiam causar câncer.

Forma modesta de radiação, as ondas eletromagnéticas se espalham pelo espaço porque a corrente elétrica nos fios não flui numa só direção como se viesse continuamente da hidrelétrica para o consumidor Ela se alterna como um pêndulo, indo e voltando de um pólo a outro. Cria assim forças elétricas e magnéticas à sua volta. O rumo da corrente se inverte sessenta vezes por segundo. Por isso, em linguagem técnica se diz que esse vai-vém representa uma freqüência de 60 hertz e corresponde à energia da radiação emitida. (Nos países europeus, a freqüência utilizada é de 50 hertz). As ondas nessa faixa são designadas pela sigla inglesa ELF. que quer dizer “freqüência extremamente baixa”. Elas fazem jus ao nome: para se ter uma idéia de como são fracas, basta compará-las à luz, uma onda eletromagnética que se repete 10 trilhões de vezes por segundo.

Pelo fato de ser muito baixa a radiação emitida, a desconfiança de que ela pudesse conduzir ao câncer foi recebida com compreensível ceticismo. Não obstante a falta de apoio, um pequeno grupo de cientistas trabalhou dez anos no assunto, até que, em 1986, o Congresso dos Estados Unidos mandou estudar a questão e reconheceu que as linhas de transmissão não estão necessariamente isentas de risco. “Está claro que as ondas de baixa energia podem interagir com as células e órgãos e produzir mudanças biológicas”, constata um relatório da comissão de assessoramento tecnológico do Congresso, datado de maio do ano passado, ressalvando que ainda não se sabe exatamente o que se passa com os organismos vivos expostos a tais ondas. Mas já não se pode dizer que o risco não existe.

A evidência mais importante havia sido levantada em 1979 pela bióloga e socióloga americana Nancy Wertheimer, da Universidade do Colorado. Ela comparou 900 crianças que viviam perto das linhas de alta tensão e dos transformadores de rua, na cidade de Denver, com outras tantas da mesma idade, que moravam mais longe da rede elétrica. Descobriu assim entre as primeiras uma incidência duas vezes maior de casos de câncer do sangue, ou leucemia — o que sugeriria pelo menos uma possibilidade de que doença e local de moradia estivessem relacionadas. Ignorada a princípio, a conclusão de Nancy foi confirmada em 1986 por uma equipe especialmente cética, chefiada pelo epidemiologista David Savitz, da Universidade da Carolina do Norte.,

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A conclusão do estudo de Savitz — patrocinado por um grupo de empresas de eletricidade — surpreendeu a comunidade científica, embora os seus resultados. obtidos a partir de uma amostra com 500 crianças. fossem por assim dizer mais brandos que os da pesquisa de Nancy. Ele apontou no grupo vizinho à rede uma propensão à leucemia uma vez e meia maior do que no outro grupo. Do ponto de vista estritamente estatístico, isso significaria que pelo menos 10 por cento dos casos anuais de leucemia infantil registrados nos Estados Unidos poderiam ter sido causados pela eletricidade.

Em vista disso, a opinião dos especialistas americanos mudou. “Há menos de três anos, ninguém esperava encontrar nada”, diz o biólogo Leonard Sagan, do Instituto de Pesquisa de Energia Elétrica de Palo Alto, na Califórnia. “Agora não se pode ignorar o conjunto de evidências.” Algumas experiências indicam que as células cancerosas parecem gostar das ondas eletromagnéticas tornando-se mais numerosas e mais fortes quando banhadas por elas. Foi o que mostrou o biólogo Jerry Phillips, do Centro de Pesquisa e Terapia do Câncer, em San Antonio, também na Califórnia. Phillips utilizou dois grupos de células obtidas de pacientes de câncer e submeteu um dos grupos à radiação ELF, aquela de freqüência extremamente baixa. Como resultado, essas últimas células passaram a se multiplicar duas vezes mais rapidamente do que as células do primeiro grupo: em alguns casos a velocidade chegou a ser até vinte vezes maior.

Mesmo depois de afastada a radiação, o efeito se mantinha, mostrando que as células estavam transmitindo a nova aptidão para as suas descendentes, uma herança que se prolongava por centenas de gerações num período de meses. Ou seja, as células cancerosas, que normalmente têm um ritmo desembestado de crescimento, sob efeito da radiação parecem pisar ainda mais fundo no acelerador. Outro pesquisador, o físico Abe Liboff, da Universidade de Oakland, descobriu algo semelhante: sob efeito da radiação, os linfócitos, as células brancas do sangue, tanto normais quanto cancerosas, passam a produzir material genético em excesso, sinal de que estão de prontidão para crescer.

Barry Wilson, um pesquisador de Richland, Estado de Washington, concluiu que as ondas eletromagnéticas reduzem os níveis de melatonina, hormônio produzido pela glândula pineal, conhecido por prevenir em ratos o câncer da mama. Indícios parecidos foram assinalados por dezenas de especialistas, nos últimos anos. A primeira e até agora única pesquisa brasileira sobre o assunto abrangeu ex-funcionários da Light, no Rio de Janeiro. O epidemiologista Sérgio Koifman, da Escola Nacional de Saúde Pública, ligada à Fundação Oswaldo Cruz, descobriu que, entre 1 476 trabalhadores da empresa, falecidos de 1965 a 1986, 88 foram portadores de algum tipo de câncer – sempre numa proporção bem maior do que na população carioca em geral. Pelas estatísticas, o câncer no estômago, por exemplo, deveria ter acometido quarenta eletricitários na amostra examinada. Houve nada menos de 55 casos. Koifman verificou ainda uma incidência excessivamente alta de tumores cerebrais entre 202 daqueles 1 476 funcionários, que haviam passado muito tempo próximos de linhas de alta tensão. Isso o convenceu de que existe algum nexo entre a radiação e os males observados — embora o pesquisador advirta que os dados, muito preliminares, não autorizam conclusões taxativas. “Fica difícil, porém, imaginar que o câncer não se associa à radiação”, confessa. “Estamos procurando sensibilizar as empresas do setor elétrico para a necessidade de um estudo de grandes proporções a respeito.”

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O estudo mais ambicioso atualmente se realiza na França e no Canadá, onde a vida de um total de 150 000 trabalhadores do setor de energia elétrica passou a ser minuciosamente esquadrinhada por uma pesquisa cuja meta é responder, com a precisão não alcançada por nenhuma das investigações anteriores, se a intimidade com a radiação de baixa freqüência é realmente prejudicial à saúde. Organizada pela empresa estatal francesa de eletricidade, a EDF, esta é desde já uma das maiores pesquisas epidemiológicas da história, que compreende ainda a análise de cada um dos 2 500 casos de câncer registrados de 1978 a 1988 entre os trabalhadores do setor.

Examinando a ficha profissional dessas pessoas, os especialistas tentam medir as doses radioativas a que elas foram submetidas e compará-las com as doses recebidas por 10 000 trabalhadores sorteados ao acaso, que não apresentaram sintomas de câncer. A comparação permitirá verificar se a doença pode ser atribuída a doses eventualmente excessivas de radiação. Durante vários meses no decorrer do estudo, todo o pessoal envolvido portou nos uniformes pequenos medidores de radiação, de modo a mapear a intensidade das ondas eletromagnéticas nos diversos postos de trabalho.

As primeiras conclusões deverão estar prontas no final de 1991. Mesmo enquanto se espera uma definição clara sobre a verdadeira ameaça representada pelas correntes elétricas, diversas medidas preventivas já estão sendo tomadas. Oito Estados americanos, por exemplo, decidiram impor limites às grandes linhas de energia que cruzam seus territórios. No caso das redes de transmissão, a idéia é programar melhor as novas linhas de modo a evitar, por via das dúvidas, que atravessem regiões populosas, ou passem perto de escolas e creches. Dentro de casa, recomenda-se estudar a disposição dos fios de forma a minimizar os campos de radiação, isto é, a distribuição da energia eletromagnética no espaço. Mas ninguém deve entrar em pânico e começar a jogar fora os seus eletrodomésticos, advertem, sem exceção, todos os especialistas. Dentro desse espírito, as fábricas americanas também estão sendo instadas a redesenhar os eletrodomésticos, ainda que os riscos oferecidos pelos velhos aparelhos convencionais, ao que tudo indica, sejam praticamente zero.

A única precaução imediata se refere aos cobertores elétricos, que só deveriam ser usados para aquecer a cama e desligados na hora de deitar. Esse cuidado está relacionado no relatório do Congresso americano, escrito sob encomenda por uma equipe de cientistas da Universidade Carnegie-Mellon. O epidemiologista David Savitz, da Carolina do Norte, também é cauteloso. “O que sabemos até agora não sugere nenhuma medida drástica de proteção”, tranqüiliza.

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Supondo, em todo caso, que se estabeleça para além de qualquer dúvida uma relação de causa e efeito entre eletricidade e câncer restaria explicar como se dá essa relação. Por ora, poucos cientistas ousam desenhar os hipotéticos mecanismos pelos quais a débil energia emanada dos fios elétricos poderia afetar o organismo humano. As ameaças conhecidas advêm das forças elétricas e magnéticas criadas por radiações mais potentes, como a dos raios X, empregados nas radiografias, ou a dos raios ultravioleta, emitidos pelo Sol junto com a luz. Esse tipo de onda eletromagnética recebe o nome de radiação ionizante porque é intensa o bastante para arrancar um ou mais elétrons de um átomo e transformá-lo numa partícula eletricamente carregada, chamada íon. Mas essa proeza está bem distante da radiação de 60 hertz, cuja força poderia, no máximo, acelerar íons já existentes no corpo humano.

Por causa dessa força, os íons de cálcio, importantes mensageiros químicos das células, passaram a ser encarados como um dos possíveis alvos da radiação não-ionizante. Segundo o fisiologista americano Ross Adey, de Loma Linda, Califórnia, um dos mais insistentes estudiosos do problema, as ondas eletromagnéticas facilitam o fluxo daqueles íons para fora das células, algo que pode alterar suas funções normais, incluindo o seu ritmo de reprodução, um dado crucial nas transformações cancerosas. A proposta faz sentido, especialmente porque se sabe que, quando a célula é estimulada a crescer, ocorrem mudanças drásticas no seu estoque de íons de carga positiva. Ora, uma das maneiras de saber se uma célula é cancerosa é medir o seu pH, ou seja, o número de cargas positivas. “As células tumorais se caracterizam por ter um pH mais alto”, explica a bioquímica e bióloga molecular Mari Armelin, da Universidade de São Paulo. A hipótese de Adey, portanto, pode abrir uma trilha promissora na investigação, embora seja apenas um primeiro passo. Em princípio, a leucemia nada tem a ver com as ondas eletromagnéticas, pois até onde se sabe a doença começa com um desarranjo nos genes — um gene de nome abl, que funciona apenas ocasionalmente, incorpora um pedaço de outro gene e dispara a trabalhar fora de hora, iniciando a transformação maligna. O desarranjo original pode surgir por causa de um vírus, ou pode ser provocado por alguma toxina, como a cafeína ou o alcatrão do cigarro. O resultado final é um aumento desmesurado no número das células do sangue — o crescimento é tão grande que elas passam a competir com o organismo por alimento e o paciente acaba abatido por inanição.

A radiação de baixa freqüência também tem sido associada a diversos outros distúrbios, como a fadiga e a depressão; por causa disso, nos países do Leste europeu existe restrição à intensidade dos campos eletromagnéticos a que as pessoas possam ficar expostas. Na Polônia, por exemplo, a permanência por tempo indeterminado se limita a locais onde a radiação não supera certo patamar — o limite é fixado em termos do campo elétrico e vale 1 quilovolt por metro (ou 1 kV/m). Sob um fio de alta tensão, o campo elétrico chega a 10 kV/m. Na União Soviética, não se admite que alguém permaneça mais de três horas por dia sob um campo de 10 kV/m, ou mais de 10 minutos sob um campo de 20 kV/m. A expectativa é de que, a julgar pelo volume de pesquisas em curso, a preocupante pergunta sobre o nexo entre eletricidade e câncer não demore muito a ser respondida. Pode acontecer, no entanto, que a polêmica persista, à falta de resultados absolutamente conclusivos — o que não é raro em ciência. Nesse caso, como diz David Carpenter diretor da Escola de Saúde Pública do Estado de Nova York, continuaremos a ver a ponta do iceberg sem ter idéia do seu tamanho exato. “E isso nos deve preocupar a todos.”

Para saber mais:

Um gene contra o câncer

(SUPER número 7, ano 3)

Congestionamento invisível

(SUPER número 1, ano 4)

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Portas abertas pela radiação

Para explicar os supostos efeitos biológicos da radiação de baixa freqüência, o físico Abe Liboff, da Universidade de Oakland, nos Estados Unidos, está investigando o comportamento dos átomos eletricamente carregados, ou íons, que desempenham papel essencial como mensageiros químicos das células. Os campos de força criados pela radiação, imagina o cientista, podem dar um impulso extra em certos íons que atravessam a membrana celular e assim se perdem. Liboff mostrou que as forças químicas próprias da membrana, também de origem eletromagnética, fazem os íons de cálcio vibrar de um lado para o outro dezesseis vezes por segundo, ou com uma freqüência de 16 hertz.

Esse número aparece em outras experiências, nas quais células expostas a ondas eletromagnéticas de 16 hertz perdem grande quantidade de íons de cálcio. Isso acontece, por exemplo, com as células cerebrais dos frangos expostos a uma radiação de 16 hertz. A conclusão de Liboff: quando a freqüência externa se iguala à freqüência natural das aberturas celulares, há uma ressonância: as forças eletromagnéticas internas e externas se somam, com inevitável aceleração dos íons. Tudo se passa como se a radiação externa escancarasse as portas químicas das células e desarranjasse a sua rotina normalmente ordeira.

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