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Futebol , monstros S.A.

Um craque de futebol pode ser fabricado? De Zico, o primeiro

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h11 - Publicado em 31 Maio 2002, 22h00

Valmir Storti

A história dos craques fabricados no Brasil começou com Garrincha. Não, não vamos dizer que o mais genial ponta-direita de todos os tempos foi criado em laboratório. Pelo contrário: tinha as pernas tão tortas que quase foi vetado pelo Botafogo. Mas a sua breve passagem pelo Flamengo, no final de 1968 e início de 1969, deu um fruto inesperado.

Garrincha chegou estropiado ao clube da Gávea. Aos 35 anos, estava acabado para o futebol. Pesava 84 quilos (13 além da conta) e vinha de passagens fracassadas por Corinthians, Portuguesa do Rio e Atlético Junior, da Colômbia. Foi entregue aos cuidados do jovem preparador físico José Roberto Francalacci. Em dois meses recuperou o peso normal e a forma. Sua estréia, contra o Vasco, levou 80 000 pessoas ao Maracanã. A magia durou pouco: apenas 20 jogos e quatro gols, mas foi o suficiente para chamar a atenção de um menino de 15 anos e imenso potencial técnico, que chegou à Gávea medindo 1,55 metro e pesando 37 quilos.

“O Zico viu o trabalho que estávamos fazendo e me procurou”, lembra Francalacci. “Ele tinha um raciocínio muito rápido, mas o corpo não condizia.” O preparador o levou à sua academia particular e iniciou um trabalho que faria história no futebol brasileiro. “Demos prioridade à correção postural e a um intenso trabalho de alongamento, para reduzir a pressão dos músculos nos ossos e facilitar seu crescimento. Depois, colocamos peso nele, para ganhar massa muscular, mas de forma controlada. É um erro deixar o atleta forte demais e acabar fazendo com que ele perca sua mobilidade.” Aos 21 anos, Zico estava 17 centímetros e 29 quilos maior. Esse trabalho lhe valeu durante muito tempo a pecha, injusta, de “jogador de laboratório”. Sem ele, dificilmente o “Galinho” teria sido o maior jogador da história do Flamengo.

Investimento como o feito em Zico é raro. No geral, dos tempos dele para cá, não mudou muito o perfil dos meninos que chegam aos grandes clubes sonhando com uma vaga: oriundos de famílias pobres, em geral subnutridos, o que compromete gravemente o desenvolvimento físico pelo resto da carreira. A menos que se corrijam essas deficiências ainda na adolescência.

“Entre os esportes de ponta no Brasil, o futebol é o que menos usa a parte científica”, diz Victor Matsudo, um dos maiores especialistas brasileiros no assunto. “O vôlei foi o que mais investiu nisso e somos ponta há 14 anos nas mais diferentes categorias, no masculino e no feminino. Cientificamente, o que está acontecendo agora com o futebol eu já dizia há muito tempo. O futebol, por não usar a ciência, vai pagar caríssimo.” Nos últimos dez anos, o centro de estudos de Matsudo, em São Caetano do Sul, SP, tabulou o perfil físico médio da população brasileira para criar padrões que servissem de base para identificar talentos físicos naturais entre os pequenos candidatos a atletas.

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MATURIDADE TARDIA

Matsudo defende que o trabalho mais importante feito com Zico foi a correção da postura – hoje conhecida como RPG, Reeducação Postural Global: o alongamento dos músculos posteriores das coxas e dos peitorais e o fortalecimento da musculatura das costas. O tratamento não o fez crescer um centímetro a mais do que ele deveria naturalmente – só o fato de não andar arqueado o fazia parecer mais alto. Zico foi um menino com desenvolvimento tardio, ou seja, sua idade biológica não correspondia à idade cronológica. Com 16 anos ele tinha físico de um garoto de 14, o que se conhece como late mature (maturidade tardia). Foi feito um ajuste postural, corrigindo uma hipercifose (curvatura do corpo para a frente). Mais ereto, passou a impressão de que cresceu mais do que seria normal. “Foi feito um trabalho ótimo com ele, mas não miraculoso”, diz Matsudo.

O crescimento tardio colocou em risco o surgimento de um dos melhores jogadores brasileiros do século XX e, coincidentemente, exigiu muita dedicação de um candidato a melhor do início deste século. “O Kaká nunca foi titular nas categorias de base do São Paulo”, diz o fisiologista do São Paulo Turíbio Leite de Barros Neto, coordenador do Centro de Medicina Esportiva da Universidade Federal de São Paulo. “Media 1,57 metro, enquanto os outros jogadores tinham 1,70. Eu o acompanho há cinco anos e posso dizer que, apesar disso, ele é o modelo do craque do século XXI”. Como isso se explica?

CREATINA NELE

Diferentemente de Zico e da esmagadora maioria, Kaká não precisou de nutricionistas. Menino de classe média, foi bem alimentado na infância, o que lhe garantiu uma formação privilegiada. Com 8 anos era sócio do São Paulo e começou a jogar no clube aos 12. Tinha dois anos de atraso na idade óssea, o que exigiu acompanhamento endocrinológico a cada três meses. Até completar 17 anos, Kaká teve que se conformar em jogar contra companheiros mais fortes. “Eu era muito pequeno e magro e, para piorar, o pessoal começou a crescer mais e eu não. Acho que foi a maior dificuldade que enfrentei desde que comecei a jogar futebol”, diz Kaká.

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Só aos 17 anos ele começou a fazer trabalho físico intenso. Em função disso, apesar dos 19 anos, ainda deve ganhar força, potência e velocidade. “Isso me ensinou a ter paciência em muitas situações diferentes. Hoje, me considero preparado para qualquer desafio. Quero disputar a Copa do Mundo, mas depende de o técnico achar que eu me encaixo no esquema dele.”

Paciência tem limites. Para conseguir resultados mais rapidamente, a Comissão Técnica do São Paulo passou a ministrar o uso da controversa creatina, o aminoácido que muita gente gostaria de ver banido do esporte por considerá-lo uma forma de doping. “O Kaká tem obtido resultados muito bons com a administração dessa substância. Todo mundo tem que pensar em usar quando há indicação. O único perigo é exagerar no consumo. Só fala mal da creatina quem não entende do que se trata”, opina Turíbio. A venda da creatina está proibida no Brasil, assim como na França.

A TRANSFORMAção de KAKÁ

O resultado do minucioso e paciente trabalho realizado com o atacante é apresentado em números pelo próprio clube. Em 8 de fevereiro do ano passado, quando entrou na decisão do Rio–São Paulo e marcou dois gols que deram o primeiro título ao time do Morumbi, um mês depois de estrear entre os profissionais, Kaká pesava 73,5 quilos – as gorduras representavam 9,5% disso. Atualmente, seu índice de gordura baixou para 9% e o atleta está com cerca de 76 quilos. Com certeza, a massa muscular adquirida tem relação direta com uma carga de exercícios bem dosada, acompanhada do uso da creatina, que ajuda no desenvolvimento muscular livrando o atleta das gorduras. Um trabalho que precisa ser acompanhado por especialistas, só encontrados em alguns dos melhores clubes do Brasil.

Um clube como o São Paulo dá atenção especial a um talento promissor como Kaká e todos os detalhes são anotados e analisados. O desgaste de uma partida, por exemplo, é monitorado de forma detalhada. Segundo o preparador físico do clube, José Roberto Portella, só em Teresina, na partida contra o Flamengo do Piauí pela Copa do Brasil, Kaká perdeu 2,9 quilos. Há uma pesagem antes do almoço e duas à noite, uma antes e outra após o jogo.

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Todo o trabalho desenvolvido com o meia são-paulino é baseado em exames precisos. No último dia 5 de janeiro, Kaká passou por uma série deles. De volta das férias, seu limite anaeróbio (ou seja, a velocidade que o jogador consegue manter sem entrar em déficit de oxigênio) estava em 15 km/h. Portella garante já estar em 16 km/h hoje. O esmero do clube e a determinação de Kaká lhe garantem uma freqüência cardíaca de 52 batidas por minuto quando está em repouso, resultado digno de um atleta de alto nível. Como comparação, vale o número apresentado pelo doutor Nabil Ghorayeb, chefe da seção de Cardiologia do Exercício e do Esporte do Instituto Dante Pazzanese. Em repouso, o coração do maior artilheiro da história do São Paulo, Serginho Chulapa, batia 70 vezes por minuto.

“Há 20 anos, com a análise de um eletrocardiograma simples era possível identificar o setor em que o atleta jogava e o tipo de trabalho que era feito”, diz Ghorayeb. Goleiros, por exemplo, treinavam muito menos que hoje e os laterais eram bem menos exigidos. Volantes e meias eram os que mais corriam e os atacantes não se movimentavam tanto.

1970 x 1998

Isso significa que os jogadores de futebol de hoje correm mais que os do passado? Para tentar tirar a dúvida, a Super comparou os resultados de testes da Seleção Brasileira campeã do mundo em 1970 com outro mais recente, feito com o time do São Paulo em 1998. Embora a metodologia do exame tenha evoluído em 28 anos, é possível comparar resultados graças a uma tabela de conversão. O quadro nas páginas 20/21 mostra que o São Paulo de 1998 tem um resultado geral um pouco melhor que o Brasil de 1970, mas nada que permita tirar conclusões definitivas.

Quem sonha ser jogador deve entender que um bom trabalho de desenvolvimento leva dez anos para ser concluído e que se considera 24 anos o melhor momento para um atleta chegar ao seu auge. Assim, a melhor fase para começar em um clube é dos 12 aos 15 anos. Mas não há regras absolutas. “É preciso respeitar a natureza do atleta”, diz Turíbio Leite de Barros Neto. “Um exemplo: um atacante corre, em média, 8 quilômetros em um jogo. O Romário corre metade disso. Só que o número de arranques que dá é praticamente o dobro dos demais. Ele não tem a mesma resistência para ficar correndo o campo todo, mas é muito rápido e ágil. É um especialista nisso, faz a diferença. O Garrincha também era excepcional dentro de suas características. Hoje seria o que era, além de um melhor atleta.” Ou seja: ainda há esperança para novos Romários e Garrinchas desafiarem a ciência.

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Frases

Zico tinha 15 anos quando começou o trabalho: “O corpo não condizia com o raciocínio”, diz Francalacci

Kaká toma creatina, substância cuja venda foi proibida recentemente no Brasil

Pra frente, Brasil

Em fevereiro de 1970, o preparador físico Cláudio Coutinho submeteu a Seleção que ia à Copa a um exame físico que era novidade na época, o Teste de Cooper. Os jogadores corriam 12 minutos e, pela distância percorrida, era possível ter uma idéia da resistência de cada um. Hoje, há métodos mais modernos para medir o limiar anaeróbio de um atleta. Mas, comparando o teste de 1970 com um feito em 1998 pelo time do São Paulo, é possível ter uma idéia se os jogadores de hoje correm mais que os de ontem

A idade pesa…

Um dos maiores ídolos do futebol alemão, Paul Breitner, jogou três Copas do Mundo. Entre a primeira e a última, mudaram não só a idade, mas a capacidade pulmonar do jogador, o que o levou a mudar de posição em campo

1974

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22 anos

Lateral-esquerdo

66,4 ml/ kg/ min

Consumo máximo de oxigênio

1982

30 anos

Meio-campista

60,7 ml/ kg/ min

Consumo máximo de oxigênio

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