Mesmo sem alteração no DNA, verme herda longevidade de gerações anteriores
O C. elegans é um dos objetos de estudo mais importantes da biologia moderna. Entenda por quê - e veja quais os resultados de uma nova pesquisa sobre o verme.

Na última quinta (25), uma equipe de pesquisadores publicou na revista Science um artigo que aponta para um mecanismo inesperado de herança biológica. Estudando o verme microscópico Caenorhabditis elegans, eles descobriram que sinais de longevidade podem ser transmitidos de geração em geração, mesmo sem alterações no DNA dos filhotes.
O C. elegans tornou-se, desde os anos 1960, um dos organismos-modelo mais importantes da biologia moderna. Isso porque o verme, com menos de um milímetro de comprimento, é pequeno o bastante para caber sob a lente de um microscópio eletrônico e, ao mesmo tempo, transparente, permitindo observar em tempo real células e processos biológicos.
Embora simples – não possui ossos, coração ou sistema circulatório –, o elegans compartilha com os humanos muitos genes e vias moleculares. Isso o torna ideal para estudar mecanismos fundamentais do nosso desenvolvimento, do funcionamento do nosso sistema nervoso e até do nosso comportamento. O verme tem apenas 302 neurônios, e todos eles são mapeáveis. Isso abriu uma janela inédita para compreender, em escala reduzida, questões complexas da biologia humana.
Apesar de sua simplicidade anatômica, o C. elegans revelou-se um ótimo candidato para a genética. Foi o primeiro animal a ter o genoma inteiramente sequenciado. O feito mostrou que cerca de dois terços dos genes envolvidos em doenças humanas estão presentes em sua biologia. Essa proximidade funcional permite criar mutações específicas no verme para modelar distúrbios neurológicos, doenças cardíacas congênitas e renais, e até testar potenciais fármacos.
O estudo de mutantes de elegans trouxe descobertas revolucionárias: na década de 1980, uma única mutação foi capaz de prolongar sua vida em até 65%; poucos anos depois, outra pesquisa mostrou que a longevidade poderia se estender em até dez vezes, com os vermes permanecendo saudáveis. Esses achados mudaram a forma como os cientistas pensam sobre envelhecimento, demonstrando que a duração da vida não é fixa, mas plástica – e passível de intervenção.
Em 2004, depois de muitos anos de microscópios, bioquímicos conseguiram esticar a longevidade desses vermes em seis vezes ao inibir os genes responsáveis por captar insulina: a vida das criaturas saltou de 20 para 120 dias. A Super explicou na época.
É por essas razões que o estudo de agora, publicado na Science, não é exatamente inesperado. Mas não deixa de ser intrigante. Vamos explicá-lo.
Tudo começou com um procedimento aparentemente simples. Ao aumentar a atividade de uma enzima nos lisossomos – organelas conhecidas até pouco tempo apenas como “centros de reciclagem” das células –, os vermes viviam até 60% mais. Esse resultado, por si só, já seria impressionante. Mas foi a etapa seguinte que surpreendeu os pesquisadores.
Após cruzar os vermes modificados com indivíduos “selvagens”, sem manipulações genéticas, a prole continuava vivendo mais do que o normal. O efeito persistiu por quatro gerações consecutivas. Em outras palavras, algo além do DNA estava carregando a mensagem de longevidade.
A investigação revelou que a resposta estava nas histonas – proteínas que ajudam a organizar e regular o DNA. As mudanças induzidas nos lisossomos ativavam processos celulares capazes de modificá-las.
As histonas modificadas não permaneciam confinadas às células do corpo. Elas migravam para as células germinativas, responsáveis por transmitir a herança biológica. Assim, sinais adquiridos em tecidos somáticos eram literalmente empacotados e levados para a próxima geração.
“Você sempre pensa que sua herança está no núcleo, dentro da célula”, afirmou Meng Wang, do HHMI Janelia Research Campus, em comunicado. “Agora mostramos que as histonas podem carregar informações de um tecido para outro. E se essas histonas trazem modificações, isso significa que a informação epigenética pode ser passada de célula a célula, de pai para filho”.
Epigenética, vale explicar, diz respeito às alterações na expressão dos genes (ou seja, como as suas características se apresentam) que não dizem respeito a uma mudança na sequência de DNA. Tem a ver com fatores externos, como o ambiente o seu estilo de vida. Ou, no caso do estudo, de uma histona diferente a partir de uma interferência nos lisossomos.
Embora a pesquisa tenha se concentrado na expectativa de vida, as implicações vão muito além. Alterações epigenéticas semelhantes podem ajudar organismos a se adaptar a uma variedade de estresses ambientais: desde mudanças na dieta até exposição a poluentes ou situações de estresse psicológico.
O estudo também sugere uma explicação molecular para fenômenos já observados em humanos, como o impacto da fome vivida por uma geração sobre a saúde e o metabolismo das gerações seguintes.
Os cientistas ainda identificaram que o jejum, prática associada a benefícios de saúde em diversos organismos, ativa a mesma via lisossomal que prolonga a vida dos vermes. Isso fornece uma ponte direta entre fenômenos fisiológicos cotidianos e mudanças no epigenoma que podem ultrapassar fronteiras geracionais.
Durante décadas, os lisossomos foram descritos apenas como “lixeiras celulares”, encarregados de degradar e reciclar componentes. Mas o trabalho de Wang reforça uma nova ideia: essas organelas funcionam como centros de sinalização, capazes de influenciar processos fundamentais da vida — e até o destino de descendentes ainda não nascidos.