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“Meu irmão não reconhece meu rosto”: entenda o que é a prosopagnosia, a cegueira facial

Apesar de pouco conhecida, a condição afeta 2% da população mundial e pode causar problemas sociais e psicológicos.

Por Eduardo Lima
16 set 2025, 12h00

Quem é aquela ali?”, perguntou a professora para Pedro, um garoto de 4 anos, loiro e que usava óculos. A apenas alguns metros dele estava Tatiana, uma mulher de 35 anos, loira e que usava óculos. Era a mãe dele (e minha também) – mas Pedrinho não sabia disso.

Ao ouvir a pergunta, Pedro fez que não sabia com a cabeça. Tatiana sentiu um misto de incômodo e alívio. Incômodo porque o garoto que ela colocava para dormir todas as noites não a reconhecia. Alívio porque, agora, ela entendia o motivo por trás de seu filho não conseguir identificá-la nem qualquer outra pessoa.

Toda a situação com a professora era um teatrinho – um teste combinado para checar se Pedro reconheceria a pessoa com quem ele mais convive (nossa mãe) num contexto em que ele não esperava encontrá-la (no meio da escola). Pedro, no fim, soube que era Tatiana, mas só quando ouviu a voz dela.

Foi o resultado de que nossa família precisava para entender o que fazia meu irmão ser diferente (Pedro não conseguia, inclusive, reconhecer o próprio reflexo no espelho). Não era nenhum dos diagnósticos tradicionais que os médicos tinham considerado, como autismo, mas sim uma condição pouco conhecida, apesar de mais comum do que se imagina: a prosopagnosia.

O nome vem do grego: prósōpon significa “face”, e agnosia é algo como “ausência de conhecimento”. Conhecida como cegueira facial, trata-se de uma disfunção que afeta a capacidade de reconhecer rostos. São pessoas com visão e memória perfeitas, mas que não conseguem relacionar dois olhos, um nariz e uma boca a uma identidade específica. Elas enxergam essas características individuais, claro – diferenciam um nariz grande de um pequeno, por exemplo –, mas não interpretam o conjunto de informações.

A condição pode parecer uma mera curiosidade de rodapé num manual de neurologia, e de fato ela foi tratada assim por um bom tempo. Mas a prosopagnosia afeta cerca de 2% da população mundial (uma em cada 50 pessoas), segundo estimativas – incluindo gente famosa, como o ator Brad Pitt.

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É provável, então, que você conheça alguém com cegueira facial, mesmo que a própria pessoa não saiba disso. Muitos passam a vida sem diagnóstico, embora sintam seus efeitos: ansiedade social, dificuldade para se relacionar e uma reputação equivocada de arrogantes ou grossos só porque não cumprimentam os conhecidos-desconhecidos na padaria.

Imagem conceitual, em fundo azul, de um cubo planificado, estampados com fotos em preto e branco de rostos.
(Getty Images/Caroline Aranha/Montagem sobre reprodução)

Cara a cara

Os primeiros relatos sobre a dificuldade em reconhecer rostos surgiram no século 19, mas a prosopagnosia só ganhou esse nome em 1947. Joachim Bodamer, um neurologista alemão, descreveu três casos em soldados feridos depois da Segunda Guerra Mundial.

A partir desse primeiro estudo, outros cientistas começaram a se interessar pela prosopagnosia adquirida – o nome que se dá quando a condição surge após um evento específico. Essas pesquisas mostraram que ela pode ser causada por lesões no cérebro, como acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo craniano ou tumores.

Os pacientes de Bodamer não tinham problemas para identificar objetos, só rostos. Foi essa especificidade que sugeriu aos cientistas que o cérebro provavelmente tinha uma área dedicada exclusivamente ao reconhecimento facial.

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Hoje, sabemos que é um pouco mais complexo do que isso: a responsável por essa tarefa é uma grande rede de neurônios que conectam áreas distintas, embora algumas partes do cérebro sejam mais relevantes. “Uma região importante é a área do giro fusiforme, no hemisfério direito, na parte inferior do cérebro”, diz a neurologista Sonia Brucki, professora da Universidade de São Paulo (USP). É ali, atrás das suas orelhas, que fica a área facial fusiforme (AFF), do tamanho de uma azeitona.

A AFF é a principal responsável pelo reconhecimento facial. Ela funciona desde que nascemos, e ajuda o ser humano e outros primatas a ter uma sensibilidade alta para discriminar rostos (uma vantagem evolutiva para animais sociais). Esse é também o mecanismo que nos leva a enxergar faces em quase todo lugar, como em tomadas ou carros – um fenômeno conhecido como pareidolia.

Danos no giro fusiforme ou em outras áreas importantes para o reconhecimento facial podem causar a prosopagnosia adquirida. Dependendo da gravidade da lesão, o problema pode ser revertido.

Antes do século 21, a maioria dos casos documentados de prosopagnosia era decorrente de algum tipo de trauma. Mas não é assim com o Pedro ou com a grande maioria das pessoas que têm cegueira facial.

Desde os 2 anos, meu irmão se assustava quando pessoas que ele já conhecia, como tias e primos, falavam com ele. Ele também confundia bastante os parentes: qualquer idosa de cabelo chanel na rua só poderia ser Ivete, a nossa avó.

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A primeira hipótese médica foi que essa confusão era fruto do estrabismo dele. Mas aos 3 anos, depois de uma cirurgia de correção, Pedro ainda confundia as pessoas. A próxima suspeita era que meu irmão estivesse no espectro autista, mas o diagnóstico foi negativo.

Enquanto preparava uma aula, a terapeuta ocupacional que o atendia encontrou uma breve menção à prosopagnosia e sugeriu que minha mãe começasse a fazer testes simples. Se ela via um garoto com cabelo preto cacheado na rua, perguntava para meu irmão quem ele achava que era. Bingo: Pedro sempre dizia que era eu.

Todas as ressonâncias magnéticas do Pedro voltavam impecáveis. Não havia nenhuma alteração neurológica ou lesão no cérebro. Meu irmão não havia desenvolvido prosopagnosia, mas sim nascido com ela.

Infográfico simples, em fundo azul claro, de um cérebro e a localização de algumas áreas de memória.
(Caroline Aranha/Superinteressante)

De fábrica

A rede neural de reconhecimento facial das pessoas com prosopagnosia congênita se desenvolve de forma atípica. Fora isso, essas são pessoas com cérebro sem qualquer tipo de neurodivergência. A condição se encaixa em um espectro: existem casos mais e menos graves. 

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É difícil para quem não tem cegueira facial entender a condição, mas dá para fazer uma comparação grosseira com um fenômeno da pandemia. Um estudo de 2020 mostrou que as máscaras bagunçavam a nossa percepção facial, já que a rede de reconhecimento depende da face como um todo. Para quem tem prosopagnosia, é como se todas as pessoas estivessem constantemente de N95.

Ainda não se sabe a causa da cegueira facial congênita, mas os neurologistas já constataram que o histórico familiar é importante. O componente genético exato, porém, ainda é um mistério.

Na nossa família, o histórico foi fácil de identificar. Meu avô materno sempre se comportou de forma parecida com a do Pedro, chamando as pessoas por apelidos genéricos e confundindo quem ele conhecia. Hoje em dia, o vô Walter percebe como, mesmo sem saber, desenvolveu estratégias para lidar com a prosopagnosia: ele ficava olhando a foto de seus clientes por horas antes de uma reunião para não cometer uma gafe.

Na época do diagnóstico do Pedro, em 2017, a prosopagnosia era pouco conhecida, inclusive entre profissionais. De início, improvisamos testes para entender como o cérebro dele funcionava. Mas há uma avaliação-padrão para casos como esse: o Cambridge Face Memory Test. Vários rostos são exibidos, e o participante precisa decorar e, depois, reconhecer quais faces ele viu. A dificuldade aumenta aos poucos, com mudanças de ângulo e distorções na imagem.

Eu e o Pedro fizemos o teste, disponível online. Acertei 86% dos desafios, nota considerada normal. Com o meu irmão, logo percebi que a experiência seria bem diferente. Na fase mais fácil do quiz, o Pedrinho já confundia rostos que, para mim, eram “óbvios”. No final, ele acertou 46% do teste. Resultados abaixo de 60% indicam possíveis casos de prosopagnosia (cujo diagnóstico deve ser feito por um neurologista).

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Esse é o teste mais usado para diagnosticar a cegueira facial. Mas um estudo recente mostrou que ele não identifica de 50% a 65% das pessoas que acreditam ter a condição. Isso mostra que o campo de estudos sobre a prosopagnosia ainda é incipiente.

Alguns neurologistas defendem que a melhor forma de identificar a disfunção é por meio de um índice contendo afirmações com que as pessoas devem concordar ou não (similar aos testes de depressão), como “às vezes não consigo acompanhar filmes porque tenho dificuldade em reconhecer os personagens”. 

Imagem conceitual, em fundo azul, com treze cubos, estampados com fotos em preto e branco de rostos, empilhados aleatoriamente.
(Getty Images/Caroline Aranha/Montagem sobre reprodução)

Olhos, ouvido, boca e nariz

O caso mais famoso relacionado à prosopagnosia é o do Dr. P., descrito em um texto de 1985 do neurologista Oliver Sacks. O paciente chegou a confundir sua mulher com um chapéu. 

O Dr. P. costuma ser a referência mais popular sobre a cegueira facial. Só tem um problema: ele na verdade não tinha prosopagnosia, mas sim agnosia visual, uma confusão cerebral mais grave e generalizada no reconhecimento de vários objetos e formas.

Quem tinha prosopagnosia era o próprio Sacks, que só descobriu isso décadas depois de encontrar o Dr. P. e ler pesquisas sobre cegueira facial. Num texto para a revista The New Yorker, de 2010, o neurologista conta que as pessoas sempre o acharam excêntrico, tímido e recluso – consequência direta da sua dificuldade em reconhecer faces.

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Pedro também passa por isso. Muitas pessoas interpretam como falta de educação ou chatice algo que às vezes é só prosopagnosia. Ele sempre teve facilidade para conversar com estranhos na rua, mas se sentia desconfortável quando alguém que ele já conhecia (mas que foi incapaz de reconhecer a tempo), chegava com muita intimidade. 

Viver assim é cansativo. “Eu fico estressado e um pouco envergonhado”, me explicou Pedrinho. “Por não reconhecer as pessoas, tenho medo de às vezes estar num lugar e não encontrar ninguém.” 

Pedro já se perdeu em dois eventos grandes, provavelmente por se confundir com a multidão de rostos que, para ele, não dizem nada. Para lidar com a ansiedade, ele faz terapia desde os 8 anos. 

Meu irmão descobriu cedo a prosopagnosia, o que o ajudou a desenvolver estratégias. Hoje, aos 12 anos, ele consegue reconhecer os amigos e a família, depois de muitos anos de convivência, prestando atenção especialmente na voz e no cabelo.

Para quem tem cegueira facial, vale de tudo: jeito de andar, estilo de roupa, barba, piercings, tatuagens e características distintivas, como orelhas grandes ou sobrancelhas grossas, podem ser pistas para identificar pessoas.

Experimentos para treinar a capacidade de distinguir rostos já conseguiram melhorar de forma modesta a vida de algumas pessoas com a disfunção. Há estudos sendo feitos nessa área – mas, por ora, a estratégia mais garantida é focar em distinguir as características para além da face.

Mas vale o aviso: mesmo essa estratégia pode falhar. Uma simples aparada de barba foi suficiente para fazer o Pedro duvidar da identidade do pai. 

A prosopagnosia obriga as pessoas a desenvolver um sem-fim de estratégias sociais, que variam de acordo com as habilidades de cada um. “Tem gente que acaba cumprimentando todo mundo de forma calorosa, e há aqueles que preferem se resguardar, que são os mais mal interpretados porque recebem o rótulo de antipáticos e arrogantes”, diz a psicóloga Liliane Faria.

Imagem conceitual, em fundo azul, com quinze cubos, estampados com fotos em preto e branco de rostos, empilhados aleatoriamente.

Alguns pesquisadores acreditam que a disfunção deveria ser tratada como uma neurodivergência, assim como o autismo, o TDAH e a dislexia. Seria uma forma de atestar esse jeito diferente de o cérebro funcionar e integrar melhor as pessoas com cegueira facial na sociedade.

Para facilitar as interações sociais, Pedro gosta de contar para as pessoas que conhece sobre a prosopagnosia. Assim, quando o encontram, elas podem chegar preparadas: se identificar sempre, especialmente fora do contexto em que eles normalmente se veem. 

É um jeito de tomar as rédeas da situação, e uma reflexão pertinente. Não basta que pessoas com prosopagnosia se adaptem ao mundo – a sociedade também deve estar preparada para acomodá-las da melhor forma possível.

Uma rodada de apresentações no começo de uma reunião pode fazer maravilhas para alguém inseguro com cegueira facial. Num congresso, crachás grandes com nome e cargo são botes salva-vidas para não se afogar no mar de rostos irreconhecíveis. Um pouco de paciência e compreensão também pode salvar uma amizade.

Imagem, em fundo branco, de uma família reunida. Vê-se o pai, a mãe e três filhos e uma filha. Todos estão sorrindo.
Da esquerda para a direita, os integrantes da família Ribeiro Lima: Pedro, Davi, Tatiana, Marco, Clara e Eduardo. (Brenda Campos e Cibele Piovesan/Reprodução)

Aqui em casa, esse é um exercício constante. O Pedro confundia muito a nossa mãe quando ela ficava de costas para ele. Por isso, pediu que ela fizesse uma tatuagem. Ela nunca tinha pensado em se tatuar, mas, pelo filho, valeria a pena. Hoje, Tatiana tem cinco corações na parte de trás do antebraço, um para cada filho e outro para o marido. Agora, Pedrinho já sabe para onde olhar.

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