O destruidor de mistérios
Como um Sherlock Holmes da medicina, House sai desvendando os casos mais estranhos e desafiadores - muitos dos quais baseados em doenças da vida real
Texto Jeanne Callegari
Uma freira dá entrada no hospital com estranhas reações alérgicas nas mãos. Suas colegas de hábito acreditam estar diante de um milagre – seriam estigmas divinos, como as marcas que alguns santos aplicavam ao próprio corpo em alusão às chagas de Cristo. Doutor Gregory House, no entanto, acha que elas não passam de um bando de loucas. Para ele, o problema é uma simples alergia a sabão.
De repente, a freira tem um ataque de asma. Depois, uma parada cardíaca. Em seguida, um choque anafilático. Caramba! Será que Deus se enfureceu com a incredulidade do doutor? Mistério total, em meio a uma baita confusão. Mas House não é médico de se deixar confundir. Ele analisa com frieza cada piripaque da freira, pondera, resmunga… E conclui que a origem de tudo só pode estar dentro da própria paciente. Na mosca! Exames revelam que a religiosa guarda em seu útero um DIU, provavelmente esquecido por lá desde os tempos em que ela nem sonhava em virar freira. O dispositivo anticoncepcional continuava a liberar sais de cobre em seu organismo. E a beata acabou desenvolvendo alergia ao metal. Mistério resolvido!
House é assim, um caçador – ou melhor, um destruidor – de mistérios da medicina. Sucesso nas noites de quinta-feira há 6 temporadas, sempre no Universal Channel, tudo que importa para ele é desvendar os enigmas que cercam as doenças de seus pacientes. Quanto mais bizarro e complicado o diagnóstico, melhor. David Shore, criador do personagem, foi buscar inspiração em outro grande solucionador de casos estranhos: o detetive Sherlock Holmes. As semelhanças entre eles são muitas, desde o brilhantismo e o método dedutivo até a arrogância, a falta de escrúpulos e o desprezo pelo resto da humanidade.
Ficção x realidade
Na vida real, um médico como House dificilmente exerceria a profissão por muito tempo. Ele é grosseiro com os colegas, maltrata os pacientes, só escolhe os casos que lhe interessam. Teria tantos processos por falta de ética pesando-lhe sobre as costas que acabariam cassando seu registro profissional. E essa não é a única característica da série que destoa da realidade. Para começar, House acerta quase 100% de seus diagnósticos. No mundo real, nenhum médico seria capaz de chegar nem perto de tal proeza.
Se você não perde um episódio, já deve ter notado que os integrantes da equipe de House estão sempre colhendo sangue de algum paciente, fazendo ressonâncias magnéticas, analisando exames… Esqueça tudo isso também. Médicos comuns raramente executam tarefas desse tipo. Quem cuida disso são os técnicos de laboratório ou os patologistas. “Exames laboratoriais não só requerem especialização como são rigidamente regulados por leis estaduais e federais”, diz o jornalista americano Andrew Holtz, especialista em medicina e autor do livro A Ciência Médica de House (Editora Best Seller).
Outra coisa que nada tem a ver com a realidade é a frequência com que House usa drogas experimentais – às vezes testadas apenas em laboratório – para tratar pacientes. Segundo a Associação Americana de Pesquisa e Fabricação Farmacêutica (PhRMA), de cada 10 mil novos compostos testados, apenas um chega a ser usado clinicamente de forma regular. Os outros ficam pelo caminho, geralmente por serem ineficazes em humanos ou resultarem em efeitos colaterais piores do que a própria doença. “É improvável, portanto, que um medicamento em fase de testes possa ajudar pacientes à beira da morte”, diz Holtz.
Nem tudo que se vê no seriado, porém, é ficção ou “licença poética”. Ao contrário! Os produtores da série contam com uma equipe de consultores formada por médicos renomados, justamente para evitar deslizes e manter um pé muito bem fincado na realidade (leia mais no quadro abaixo). Certas doenças malucas com as quais House já se meteu podem até parecer invencionices. Mas existem de verdade, e só viram episódios graças ao trabalho desse time.
Uma dessas moléstias foi retratada na 3a temporada. Um menino de 7 anos é internado com um misterioso sangramento. Ele diz que foi abduzido por extraterrestres, mas a equipe suspeita de abuso sexual. Ao examiná-lo, os assistentes de House encontram um pedaço de metal cravado em sua nuca – e todo mundo fica com uma cara ainda mais apalermada de interrogação. Alguns exames depois, descobre-se que o garoto apresenta DNA diferente em certas partes do corpo. Seria um mutante? Ou pior: será que a história de contato com ETs começa a fazer sentido? Que nada. Entra em cena Doutor House para descobrir que o menino é aquilo que os cientistas chamam, na vida real, de quimera humana – um caso raro de desordem genética, registrada não mais do que 40 vezes no mundo todo desde que foi identificada pela primeira vez, em 1953 (leia mais na pág. 14).
Na 5a temporada, outra doença esquisitíssima, mas que existe de fato, também rendeu episódio: a síndrome da mão alienígena. Um sujeito aparece no hospital sem qualquer controle sobre a mão esquerda. Ela parece ter vontade própria, colocando o pobre coitado nas situações mais constrangedoras. Pouco a pouco, House vai decifrando o mistério. Descobre que o lado direito do cérebro do paciente, que controla os movimentos do lado esquerdo do corpo, apresenta uma disfunção. E é exatamente assim que, no mundo real, a síndrome se manifesta (leia mais na pág. 18).
Quando assistir ao próximo episódio de House, portanto, lembre-se do que acaba de ler nesta reportagem. Alguns dos maiores mistérios da medicina real são surpreendentemente bem abordados na série.
Atrás Das Câmeras
Sem eles, House estaria frito
Quem são os médicos de verdade que trabalham para manter o seriado com um pé bem fincado na vida real
LISA SANDERS – Consultora
Era jornalista antes de virar médica. Hoje, é clínica geral e assina, no prestigioso jornal The New York Times, a coluna Diagnóstico – que inspirou a criação de House. Atende pacientes regularmente em seu consultório particular. E ainda coordena o programa de treinamento da Universidade Yale – pela qual se graduou – no Hospital Waterbury, em Connecticut. Ela se reúne com a equipe da série de TV antes de cada temporada, para sugerir temas que possam virar bons episódios.
DAVID FOSTER – Roteirista
Escritor e clínico geral, formou-se médico pela Universidade Harvard em 1995. Nas duas primeiras temporadas, trabalhou como roteirista esporádico, em apenas dois capítulos. Ao mesmo tempo, atendia pacientes de aids e hepatite, entre outras doenças, num centro de saúde comunitário de Boston. Na 3a temporada, entretanto, foi contratado pelos produtores e virou o roteirista titular. Desde então, dedica-se apenas às mirabolantes histórias de cada episódio.
HARLEY LIKER – Consultor
É clínico geral, graduado pela Faculdade Albert Einstein, de Nova York. Começou a trabalhar em TV graças ao vizinho – ninguém menos que David Shore, o criador de House. Quando Shore escrevia o 1o episódio da série, precisou de uma mãozinha, e acabou recorrendo ao médico que morava no apartamento ao lado. Deu no que deu: até hoje Liker é um de seus consultores. Ele aparece no set de filmagens só no começo e cada temporada, quando organiza palestras para o elenco.
JOHN TOS – Consultor
Cardiologista, é o mais novo integrante da equipe de consultores. Entrou para o time depois de enviar aos roteiristas uma cópia do livro que escreveu sobre as chamadas “zebras diagnósticas” – as doenças mais improváveis de que se tem notícia. Formou-se na Universidade John Hopkins, em Baltimore, e é diretor-geral da Apneos, uma empresa que produz aparelhos destinados ao tratamento da apneia do sono. Tímido, John Sotos quase nunca vai ao set de filmagens.