Paulo D¿Amaro
Desde quando a ovelha Dolly nasceu, em 1997, pouca gente tinha dúvida de que havia sido iniciada uma silenciosa contagem regressiva em direção ao anúncio do primeiro ser humano clonado. No fim do ano passado rompeu-se o silêncio: o médico italiano Severino Antinori afirmou que um clone humano estaria sendo gerado, com nascimento previsto para o mês de janeiro de 2003. Ainda mais barulho fez a química francesa Brigitte Boisselier, da clínica americana Clonaid, que anunciou que o primeiro bebê clonado já havia nascido. Boatos à parte, o fato é que a ciência está muito próxima de chegar à clonagem humana. Há tecnologia e disposição para isso. Mas será que existem motivos reais para que nos lancemos a essa nova e incerta experiência? E, melhor ainda, estamos prontos para aceitar essa idéia? A resposta é mais complexa do que parece e, a cada dia, gente troca de lado nessa discussão que está cada vez mais quente.
Entre os cientistas parece haver pelo menos uma unanimidade: a clonagem terapêutica será feita. Nela, células clonadas são implantadas em um óvulo para gerar uma raríssima matéria-prima biológica: as células- tronco. Essas células podem ser moldadas pelos cientistas, dando origem a qualquer tipo de tecido. E, portanto, de órgãos também. Um indivíduo com cirrose hepática, por exemplo, poderia ter seu próprio fígado clonado e implantado em si mesmo.
“A clonagem para fins terapêuticos é mais fácil de ser aceita por grupos religiosos, governos e pelas pessoas comuns. Primeiro, porque sua motivação é mais nobre, depois, porque ela é urgente”, afirma o biólogo argentino radicado nos Estados Unidos José Cibelli, com a autoridade de quem liderou a única experiência bem-sucedida com clonagem humana já apresentada publicamente. Em outubro do ano passado, ele conseguiu que uma célula ovo clonada se dividisse e chegasse a ter seis células antes de morrer. “Quando conseguirmos um embrião com pelo menos 50 células poderemos extrair células-tronco”, diz Cibelli. Segundo ele, a clonagem terapêutica pode beneficiar imediatamente mais de 120 milhões de pessoas, portadoras de doenças graves como os males de Alzheimer e Parkinson.
QUANDO COMEÇA A VIDA?
Para a maioria das religiões cristãs, no entanto, as restrições à clonagem humana começam aí mesmo, no laboratório. “O embrião não é coisa”, diz o padre Leo Pessini, professor de Bioética da Universidade São Camilo (SP) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. “Não podemos dispor de nenhum deles”, afirma. Essa opinião opõe a Igreja Católica a qualquer tipo de clonagem, seja a reprodutiva – que, nas experiências com ratos e outros mamíferos, promoveu uma carnificina de embriões e fetos -, seja a terapêutica – na qual é produzida apenas uma quantidade muito pequena de células com menos de 1% de chance de virar um bebê.
“Provavelmente, essa será a discussão ética daqui para a frente: quando começa a vida?”, diz o biólogo molecular Lee Silver, da Universidade de Princeton, um dos maiores especialistas no assunto. “Na clonagem terapêutica, temos vida celular, mas não vida consciente”, afirma.
Para a geneticista Lygia da Veiga Pereira, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e representante brasileira na comissão da ONU que debate o tema, a perda de embriões ainda é um obstáculo intransponível. “Os embriões mortos ou malformados são um preço muito alto a pagar”, afirma Lygia. Sem contar que todos os mamíferos clonados até hoje apresentaram graves problemas de saúde durante a vida – um enigma que nenhum pesquisador ainda conseguiu decifrar. Mas e quando daqui a pouco os problemas técnicos forem superados?
John Burn, geneticista da Universidade de New Castle, na Inglaterra, é contra a clonagem reprodutiva, mas admite que ela é legítima e, mais cedo ou mais tarde, também acabará sendo realizada. Para ele, a clonagem cria novos seres humanos, não cópias. “Nunca existirão dois homens iguais. A partir do momento em que um feto passa a receber estímulos no útero da mãe, sua individualidade está sendo formada. E ele passa a ser único”, diz Burn.
A filósofa Mary Warnock – que, nos anos 90, liderou o comitê responsável pelas leis britânicas sobre fertilização humana – lançou há pouco tempo um livro em que afirma ser moralmente aceitável a clonagem reprodutiva, desde que os métodos sejam comprovadamente seguros. Ela se baseia em princípios semelhantes aos direitos dos pais de optarem por mais esse meio de reprodução. “A clonagem reprodutiva feita de forma ética e segura em pouco difere das outras formas artificiais de reprodução humana”, diz. O teólogo protestante Egbert Schroten, diretor do Centro de Bioética e Leis Sanitárias da Holanda, é outro que apóia as pesquisas. Em um recente artigo reunido no livro Clonning (Clonando), da pesquisadora inglesa Anne McLaren, ele defende que a clonagem humana não pode ser considerada ruim simplesmente por ser artificial. “Toda tecnologia é artificial e nem sempre o que é natural é bom”, diz Schroten.
Embate técnico
Os principais argumentos dos defensores e dos detratores da clonagem humana
A perda de embriões durante o processo não é um preço alto demais?
A FAVOR – As perdas tendem a se reduzir com o avanço da tecnologia. Muito em breve elas serão comparáveis às de outros métodos artificiais de reprodução
CONTRA – Para cada clone bem- sucedido, dezenas morrem no processo ou saem defeituosos. Para os religiosos, a perda de um único embrião é condenável
Bebês clonados estariam mais suscetíveis a doenças?
A FAVOR – Bobagem. Esse é um medo semelhante ao que havia há 50 anos, quando era comum achar que gêmeos idênticos tinham maior propensão a danos psicológicos
CONTRA – Crianças recriadas tenderiam a apresentar danos psicológicos. Além disso, os animais clonados até hoje tiveram problemas de saúde e, invariavelmente, morreram jovens
Quando se inicia a vida?
A FAVOR – A vida começa quando o feto passa a ter consciência da sua existência
CONTRA – A partir da fecundação do óvulo, um novo ser começa a existir
A clonagem é uma opção viável para a reprodução?
A FAVOR – Cabe aos pais a decisão sobre o método de reprodução. Além de ajudar casais com dificuldades de concepção, ela é a única opção de dar um filho biológico a homens que não têm espermatozóides
CONTRA – Não. Há outros métodos mais fáceis, baratos e éticos, como a fertilização in vitro e a adoção
Pessoas geneticamente iguais teriam a mesma personalidade?
A FAVOR – Nunca existirão dois seres humanos iguais. A partir do momento em que o feto começa a receber estímulos no útero da mãe, ele já passa a formar a sua individualidade
CONTRA – A noção de que cada indivíduo é único e insubstituível é um aspecto essencial da civilização