Luigi Mangione e a eterna crise da saúde nos EUA
Os EUA são o único país desenvolvido que não provê atendimento médico a todos os seus cidadãos. Entenda as origens desse sistema falho – que culminou, em dezembro, com a comemoração macabra do assassinato do CEO da UnitedHealthcare, Brian Thompson.
“Eu nunca desejei a morte de ninguém, mas li alguns obituários com grande satisfação.” Essa citação do advogado Clarence Darrow, de 1932, era o comentário mais curtido em um post de Instagram noticiando o assassinato de Brian Thompson – CEO da UnitedHealthcare, uma seguradora de saúde dos EUA com 50 milhões de clientes, 140 mil funcionários e US$ 16 bilhões de lucro operacional em 2023. Thompson foi baleado na porta do maior hotel de Manhattan, no começo de dezembro, quando saía de uma reunião anual com investidores.
As cápsulas dos projéteis usados pelo cientista da computação Luigi Mangioni, de 26 anos, continham as palavras delay, deny e E depose, que significam, respectivamente, “adiar”, “negar” e “depor”. É uma referência ao título Delay, deny, defend (“Adiar, negar, defender”), livro lançado em 2011 em que o professor de Direito Jay Feinman revela os podres das companhias de seguros americanas e explica aos consumidores como se protegerem.
O crime foi recebido com euforia por muitos americanos – que culpam executivos como Thompson pela morte ou falência de amigos e familiares que não conseguem pagar os preços altíssimos do sistema de saúde privado dos EUA. Um em cada doze americanos não tem qualquer tipo de cobertura. Mesmo os que têm seguro-saúde – seja porque pagam por conta própria, porque ganham o seguro como benefício em seus empregos ou porque são incluídos em um programa público – lidam com o medo de as seguradoras se negarem a pagar um tratamento ou procedimento, muitas vezes sem transparência nos critérios.
Por exemplo: entre 2020 e 2022, no auge da Covid-19, os pedidos negados pela UnitedHealthcare para cuidados pós-agudos – que envolvem a transição de pacientes graves da internação para suas casas – aumentaram de 10,9% para 22,7%. Parte do problema é o uso da inteligência artificial chamada nH Predict para determinar quais pacientes devem ser aceitos sem que a empresa precise revisar os prontuários caso a caso.
58,5% das falências de famílias nos EUA têm a ver com gastos médicos, como bem sabem os fãs da série Breaking Bad – que não é assim tão distante da realidade: em 2015, o físico Leon Lederman precisou vender sua medalha do prêmio Nobel por US$ 765 mil para pagar contas hospitalares.
Os EUA são o único país desenvolvido que não tem cobertura de saúde universal. Quatro em dez americanos admitem já ter evitado buscar atendimentos essenciais por falta de dinheiro. No Reddit, uma thread sobre o caso ficou lotada com centenas de relatos de pacientes deixados na mão pela UnitedHealthcare. O que leva à pergunta óbvia: como o país mais poderoso do mundo chegou a uma situação tão lamentável?
A história do sistema de saúde americano atual começa nas primeiras décadas do século 20, quando as indústrias começaram a oferecer assistência médica e hospitalar a seus funcionários em troca de um desconto módico no salário – algo similar ao que ocorre até hoje em vários países, inclusive o Brasil.
Ainda não existiam as empresas gigantescas que hoje oferecem planos de saúde. Mas os médicos e hospitais – antes acostumados a viver de consultas particulares e filantropia – começaram a se associar para garantir uma remuneração justa no novo sistema. Esse foi o embrião de marcas que existem até hoje, como a Blue Cross e a Blue Shield.
Um marco foi o ano de 1929, quando um hospital de Dallas fez a seguinte oferta para os 1.250 professores que moravam na cidade na época: eles dariam uma pequena contribuição mensal em troca de 21 dias garantidos de internação por ano, cirurgias etc. Era um jeito de a instituição resguardar uma receita mensal fixa e se manter funcionando mesmo quando havia poucos pacientes pagantes – algo importante na Grande Depressão dos anos 1930, quando doações e filantropos rarearam.
Em 1954, o governo federal isentou a saúde privada de impostos. O sistema se estabeleceu de vez, com endosso dos sindicatos de diferentes categorias. Até hoje, cerca de metade da população dos EUA tem atendimento médico vinculado à empresa em que trabalha – e a paranoia anticomunista no auge da Guerra Fria, unida ao lobby das seguradoras e dos médicos, garantiu que qualquer reforma rumo a uma maior participação do Estado na saúde fosse rechaçada (inclusive uma proposta por Nixon na década de 1970, do Partido Republicano, tradicionalmente mais liberal na economia).
Enquanto isso, a metade mais frágil da população permanecia sem atendimento. Era o começo de uma longa série de remendos – que sanariam só parcialmente a falta de algo equivalente ao SUS. Tudo começou em 1965, com a introdução dos programas Medicare e Medicaid – que cobriam, respectivamente, os dois grandes grupos desatendidos: idosos e desempregados ou trabalhadores informais.
Nos anos 1990, veio o Chip, sigla de um programa que atendia crianças de famílias cujos pais não tinham seguro privado, mas não eram pobres o suficiente para o Medicaid. Só em 2012, o Affordable Care Act (ACA) – que seria apelidado de Obamacare, em referência ao presidente – passou a cobrir os pais dessas crianças. Além de abranger 20 milhões de pessoas antes desatendidas, a medida proibiu uma prática comum e antiética: os seguros e planos negarem novos clientes por estes terem alguma doença pré-existente dispendiosa.
De modo a aprovar o ACA, um dos esforços de Obama foi criar uma cisão interna no lobby decano das empresas de saúde – voltando hospitais, seguradoras e farmacêuticas uns contra os outros, para que eles se concentrassem em brigar entre si pelos gastos altíssimos e não concordassem em como brigar com o Congresso. O resultado foi um ciclo Homer Simpson de “a culpa é minha, eu ponho em quem eu quiser”.
O Obamacare foi um avanço, é claro. Antes dele, era corriqueiro que as seguradoras simplesmente se negassem a atender pessoas com doenças caras. Agora, para continuar essa prática pérfida, precisam driblar uma regulamentação muito mais eficaz.
Com ou sem Obama, porém, a situação ainda não é exemplar: em uma pesquisa da Gallup, 51% da população se declara insatisfeita com a indústria da saúde, e 27 milhões de pessoas permanecem sem cobertura. Os EUA são um exemplo trágico das consequências de deixar um direito básico nas mãos de empresas privadas e lobistas por um
século. E, agora, correm atrás de leis para consertar a colcha de retalhos inavegável que se tornou seu sistema de saúde.