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O que querem os manifestantes de Hong Kong, afinal?

Barramento de uma proposta de lei favorável à China foi o estopim dos protestos – mas, agora, os manifestantes têm também outras demandas. Entenda.

Por Ingrid Luisa
Atualizado em 6 ago 2019, 17h47 - Publicado em 6 ago 2019, 17h32

A greve geral da última segunda-feira (5) foi a maior já vista em Hong Kong. Várias linhas de metrô e trem tiveram sua operação suspensas, ruas foram bloqueadas e mais de 200 voos, cancelados. Mais de 14 mil pessoas aderiram às paralisações, e os protestos já duram nove semanas. Por conta da crise, a moeda chinesa chegou à cotação de 7 yuans para cada dólar, a pior da última década.

Tradicionalmente, os manifestantes costumam ir às ruas vestidos com roupas negras e armados com guarda-chuvas. A maioria deles é jovem, e os atos são organizados e divulgados por meio das redes sociais.

O estopim dos protestos foi o barramento de um projeto de lei que permitiria a extradição de habitantes de Hong Kong para a China. A proposta foi suspensa mas, hoje, as exigências tomaram novas proporções. Entre elas, está a renúncia da chefe do poder executivo local, Carrie Lam, e até mesmo a independência da região.

Depois de a polícia local prender 420 manifestantes, a líder da ‘Região Administrativa Especial de Hong Kong’ (RAEHK) resolveu se pronunciar pela primeira vez desde o início das reivindicações. Em entrevista coletiva, Carrie Lam ironicamente chamada em cartazes de manifestantes de “Carrie Lame”, algo como “Carrie estúpida” – foi categórica: “já está claro que as pessoas querem propositadamente ‘recuperar Hong Kong, [fazer] uma revolução dos nossos tempos’ e desafiar a soberania nacional do país”, disse ela, fazendo referência aos gritos usados nas manifestações.

Ainda segundo Lam, os protestos estão empurrando a cidade para uma situação perigosa de desordem pública: “Eu ouso dizer que [as manifestações] estão tentando derrubar Hong Kong, destruir completamente as estimadas vidas de mais de sete milhões de pessoas.”

O governo chinês, que no papel, é quem “responde” por Hong Kong, também não perdoou as ações. Depois de ordenar que Hong Kong puna duramente manifestantes considerados “radicais”, o governo local disse, por meio da agência de notícias estatal Xinhuan, que “não irá deixar essa situação continuar. Nós acreditamos firmemente que Hong Kong será capaz de superar essas dificuldades”. Nesta terça-feira (6), o tom adotado foi ainda mais enfático. “Quem brinca com fogo, morre queimado”, afirmou Yang Guang, porta-voz do Escritório de Assuntos de Hong Kong e Macau, órgão do governo chinês. 

Essas reivindicações dizem muito sobre a história de Hong Kong. Afinal, a região, ainda que tenha conquistado o status de território autônomo, há muito não se assemelha à “velha” China continental. Por isso, revisitar a história da região pode nos ajudar a entender melhor tudo que está acontecendo.

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Um século e meio de domínio inglês

Desde que se tem notícia, a ilha de Hong Kong foi um território que pertence à China. Isso, no entanto, mudou no século 19: empreitadas imperialistas durante a Era Vitoriana resultaram fizeram com que a ilha fosse para as mãos dos ingleses – como consequência da famigerada Guerra do Ópio.

No início do século 19, enquanto os países europeus passavam pela Segunda Revolução Industrial, a Ásia evoluía no seu próprio ritmo. O Império Chinês já comercializava com países estrangeiros, mas com diversas restrições que visavam proteger sua cultura e o comércio local. Enquanto a Inglaterra comprava seda chinesa aos montes, os chineses mal consumiam as bugigangas britânicas.

Como era de se esperar, o governo inglês não ficou nem um pouco feliz com as medidas protecionistas. Foi daí que o país resolveu explorar um produto pelo qual os chineses demonstravam grande interesse: o ópio. Mesmo ilegal, o comércio desse entorpecente da papoula para o mercado chinês trazia um grande lucro para a Inglaterra, que chegou a expor ilegalmente toneladas de ópio.

O incentivo fez a droga começar a virar uma epidemia no país asiático. O governo chinês, claro, não gostou nada daquilo e, como resposta, mandou destruir carregamentos de ópio ingleses em 1839.

Era a desculpa que faltava. Os britânicos levaram o episódio como uma ofensa, e ordenaram uma invasão armada à China. Depois de anos de conflito, a guerra cessou em 1842, com a assinatura do “Tratado de Nanquim”. O documento obrigou os chineses a conceder todos os desejos da Inglaterra: abrir vários portos ao comércio britânico, pagar uma indenização absurda e – o mais importante para nós no momento – entregar a ilha de Hong Kong aos imperialistas.

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A partir disso, Hong Kong virou um grande centro comercial. Um polo puramente inglês no meio da Ásia, que facilitava as transações econômicas dos britânicos. Em 1898, após a Inglaterra prestar favores à China, o país asiático acabou arrendando a ilha por mais 99 anos ao governo britânico.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a ilha ainda passaria um período sob o controle do Japão, quando virou praticamente um centro militar. Em 1945, com a rendição japonesa, a Inglaterra reassumiu o controle.

Após a guerra civil entre nacionalistas e comunistas na China continental, uma grande onda de chineses refugiados foi para Hong Kong após a vitória comunista em 1949. Com uma enorme mão de obra barata e iniciativas estrangeiras, Hong Kong cresceu e se tornou uma das regiões mais ricas e produtivas da Ásia já na década de 70. A preferência por focar toda sua produção no mercado exterior elegeu a ilha  como um dos poderosos “Tigres Asiáticos”.

Toda essa abertura ao capital do ocidente, no entanto, poderia estar com os dias contados. Em 1997 acabariam os 99 anos acordados, e o território de Hong Kong seria impreterivelmente devolvido à China. Para evitar que os avanços nas relações comerciais fossem pro beleléu sob as rédeas do regime comunista, a Grã-Bretanha iniciou, em 1982, conversas com a China sobre o futuro da ilha.

Ao final de várias negociações, em 1984, os dois países assinaram uma declaração conjunta, transformando o território em ‘Região Administrativa Especial chinesa’ a partir de 1997. A China prometeu que o seu sistema econômico socialista não seria aplicado a Hong Kong – sob a política “um país, dois sistemas”. As liberdades civis e o sistema jurídico do território serão mantidos intactos por 50 anos (até 2047), mas não o sistema político.

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Para garantir a soberania chinesa sobre a ilha, Pequim ficou encarregada de escolher o novo governador do território e indicar os representantes de uma futura Assembleia Legislativa, que não seria mais eleita pelo voto direto.

A moderna ilha atual

Apesar de estar sob o domínio chinês, Hong Kong é um mundo à parte. Enquanto a língua oficial da China é mandarim, a ilha capitalista fala majoritariamente inglês (herança da colonização britânica) e cantonês (falado também na província de Guangdong). O território tem sua própria moeda, o ‘dólar de Hong Kong’, que mantém uma paridade fixa com o dólar americano. Os cidadãos da ilha se orgulham de seu sistema de leis, bem parecidas com as leis britânicas, e Hong Kong emite até seu próprio passaporte. Além disso, a internet por lá é liberada, apesar de estritamente controlada na China.

Apesar da grande liberdade, os benefícios da “Lei Básica” espécie de constituição que garante toda essa autonomia a Hong Kong não bastam para pessoas que cresceram com uma noção de mundo bem diferente. Os jovens, sobretudo, querem ainda mais. Até por isso, a maioria dos cidadãos locais de lá não se identificam como “chineses”.

Na contramão, a China também quer mais controle sobre a ilha. Toda essa onda de protestos teve como estopim a tal “lei de extradição”, exigindo que alguns criminosos da ilha sejam julgados na própria China continental. O problema é que a jurisdição dos dois locais é totalmente diferente.

A polêmica proposta de lei entrou em pauta após o caso de Chan Tong-kai. Nascido em Hong Kong, ele é suspeito de ter assassinado a namorada enquanto os dois estavam de férias em Taiwan. Tong-kai acabou sendo capturado em Hong Kong, mas o território não sabia de que forma extraditá-lo para ser julgado.

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E a treta é maior do que parece: Hong Kong oficialmente pertence à China, que não reconhece o governo de Taiwan considerada “um província rebelde” de seu território. Por isso, a ilha e a província não possuem nenhum acordo formal de extradição. Aproveitando o caso, Carrie Lam propôs um projeto de lei que previa extradições de Hong Kong para a China continental em alguns casos específicos, como acusados de crimes de estupro e assassinato.

Os cidadãos, no entanto, viram a lei como uma invasão. O temor é que a população de 7,3 milhões de habitantes fique à mercê da justiça chinesa, pouco transparente na visão de culturas mais ocidentalizadas.

Os guarda-chuvas, que se tornaram o símbolo maior dos protestos atuais, remetem uma derrota ainda engasgada: em 2014, manifestantes foram às ruas exigindo uma maior participação da sociedade civil na escolha dos governantes. Até hoje, o líder de Hong Kong é escolhido por um comitê eleitoral de 1.200 membros órgão acusado de ser majoritariamente pró-Pequim que é escolhido por apenas 6% dos eleitores. A “Revolução dos Guarda-Chuvas”, como ficou conhecida, clamava por eleições diretas para o líder do território.

Em 2017, em uma eleição muito contestada, Carrie Lam foi escolhida para assumir a liderança do território. Abertamente pró-governo comunista, a nova chefe de Hong Kong vem propondo medidas favoráveis ao governo continental. Parece que a população de Hong Kong não se contentará sem sua Glasnost.

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