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Os jumentos estão sob ameaça de extinção. Entenda o tamanho do problema

Um controverso remédio chinês que usa pele de jumento como matéria-prima ameaça a espécie e pode virar um problema de saúde pública.

Por Bela Lobato
Atualizado em 15 out 2025, 13h38 - Publicado em 15 out 2025, 12h00
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uando Dom Pedro I deu o brado retumbante, ele estava montado em um jumento. Quase dois milênios antes, Jesus Cristo também teria montado em um para entrar em Jerusalém pela primeira vez. Napoleão, expedicionários da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais e até o fictício Sancho Pança dependiam do animal.

Os bichos que chamamos de jumento (e de jegue ou de asno) são o Equus africanus asinus, uma subespécie de Equus africanus domesticada há 7 mil anos (1). São primos distantes da zebra e dos cavalos – até 2 milhões de anos atrás, todos compartilhavam um mesmo ancestral (2).

Os jumentos viraram pets antes mesmo dos cavalos, cuja domesticação ocorreu há pouco menos de 5 mil anos (3). E fazia todo sentido: embora menores, os jumentos são mais resistentes.

Do lado de cá do Atlântico, eles vieram com os europeus durante a colonização. Logo se tornaram o principal meio de transporte dos tropeiros, carregando mercadorias entre o litoral e as missões de expansão para o interior do País. 

Os jumentos daqui deram origem a três raças: brasileiro, pêga e nordestino. Cortesia de séculos de cruzamentos para atender às necessidades de trabalho e ao clima de diferentes regiões. Para a agricultura, diga-se, melhor ainda é o híbrido de um jumento com uma égua: o burro (ou a mula). 

Há algumas décadas, todos esses animais eram reverenciados com estátuas, pinturas, cordéis e canções Brasil afora. “O jumento sempre foi o maior desenvolvimentista do sertão. Ajudou o homem na luta diária”, disse Luiz Gonzaga na música “Apologia ao Jumento”, de 1976.

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Hoje, a situação é outra. A mecanização do agro, aliada ao aumento do poder de compra do brasileiro, jogou os asnos para escanteio. Parece uma troca justa: motos, afinal, são mais rápidas que jegues. Mas há um problema nessa história.

Imagem de uma xilogravura, em fundo azul. Vê-se um jumento chegando numa área urbana com prédios altos. À esquerda, um grande cacto e uma Lua minguante.
(Lucas Bezerra/Superinteressante)

Existe uma caça aos jumentos em curso. Um mercado bilionário promove o abate em busca da sua pele. Muitos acabam traficados por uma pechincha e são mortos sem nenhum tipo de cuidado com higiene ou bem-estar animal. Vamos entender esse problema – que pode escalar para um desastre ecológico e de saúde pública. 

Remédio milagroso – só que não

O ejiao é um remédio milenar chinês. Ele já foi uma iguaria reservada à nobreza imperial, mas hoje dá para encontrá-lo em tônicos, pílulas, cosméticos e alimentos que prometem curar doenças do sistema circulatório, anemia e impotência sexual. 

Décadas de estudos não conseguiram encontrar provas científicas para nenhuma das alegações, mas isso não impediu a indústria do ejiao de movimentar US$ 6,38 bilhões em 2021, com projeção para US$ 7,7 bi em 2027 (4). Tudo isso à base de 6 milhões de peles de jumento cozidas por ano.

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Pois é. O ejiao é feito com o colágeno extraído da pele do jumento. Na tradição original, o animal tinha de ser uma variedade chinesa. A água do cozimento, por sua vez, vinha de um poço protegido pelo exército.

Nos anos 1990, novos produtos atualizaram a tradição do ejiao e o deixaram mais pop. A iguaria dos imperadores foi parar em latinhas luxuosas, misturada com frutas secas e prometendo efeitos antienvelhecimento. 

O problema é que não havia jumento suficiente na China para sustentar o boom. A população da espécie caiu 71% entre 1997 e 2018 (5). “Em 2014, a situação era tão grave que houve um período de dez dias em que não tínhamos nenhuma pele para usar”, disse Liu Guangyuan, vice-presidente da Dong-E-E-Jiao, uma das maiores produtoras de ejiao da China, em entrevista ao jornal China Daily (6). 

Criar jumentos em cativeiro não valia a pena: a domesticação priorizou traços voltados para o trabalho duro, não para o abate. A gravidez é longa, e o filhote demora até quatro anos para chegar à maturidade. Bovinos levam dois anos, em comparação; caprinos, alguns meses.

A indústria de ejiao, então, intensificou a busca por matéria-prima em outros lugares. No Brasil, encontraram uma mina de ouro (quer dizer, de jumentos). Por aqui, o abate do animal é autorizado, sob a justificativa de que isso ajudaria a diminuir os acidentes causados por jegues abandonados que vagam pelas estradas. 

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Os bichos são capturados ou comprados a preços baixos nas zonas rurais. Depois, são vendidos para um dos três abatedouros de jumentos que operam no País, todos na Bahia. É neles onde se retira a pele dos jegues, que vai para a China. 

Imagem de uma xilogravura, em fundo rosa. Vê-se um prato em cima de uma mesa.
(Lucas Bezerra/Superinteressante)

Dependendo da saúde do animal, a carne pode ser exportada para consumo humano no Sudeste Asiático. Mas isso é raro, já que os bichos costumam chegar aos abatedouros bastante debilitados. No trajeto, eles se aglomeram em veículos impróprios, passando de fazenda em fazenda sem registro. Quase não há alimentação adequada, vacinas ou cuidados veterinários. 

Existem protocolos científicos para o cuidado de jumentos – assim como para qualquer outro animal domesticado –, mas a lei não os exige. Em 2019, pesquisadores e fiscais encontraram 800 jumentos levados clandestinamente para Canudos (BA). Entre eles, havia carcaças em decomposição e animais tão doentes que já estavam sendo comidos vivos por urubus.

Pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), da Federal da Bahia (UFBA) e da USP montaram um hospital veterinário improvisado no local. “A gente não tinha a dimensão do que era esse comércio de pele”, disse Pierre Escodro, professor de medicina veterinária da UFAL. “Ficamos lá por vários dias com uma equipe de campanha, laboratório, centro cirúrgico, transfusão de sangue.” Dos 800 animais, apenas 118 sobreviveram.

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O estresse da longa viagem baixa a imunidade dos jumentos. Os animais também não tomam água antes do abate – acredita-se que a desidratação facilita a remoção da pele. O resultado é um prato cheio para a transmissão de patógenos de várias regiões e origens. Instaura-se um verdadeiro centro de distribuição de doenças entre os animais. Um quinto morre antes de chegar ao abatedouro.

Por lei, os abatedouros devem exigir dos vendedores uma Guia de Trânsito Animal (GTA), que deve ser emitida desde o primeiro transporte do jegue. A rastreabilidade ajuda no caso de uma doença infecciosa, por exemplo, já que permite mapear a origem de bichos doentes e os contatos com humanos e outros animais.

Mas não é isso que costuma acontecer. “Os vendedores emitem a GTA só na última fazenda antes do abatedouro. É uma GTA que os fiscais chamam de fraudulenta, porque ela não representa necessariamente a origem desses animais”, diz Patrícia Tatemoto, bióloga, doutora em medicina veterinária e representante da organização britânica The Donkey Sanctuary na América do Sul.

A situação dos jumentos já bastaria para que o negócio dos abatedouros passasse por mudanças. Mas o assunto é ainda mais sério, já que a saúde humana também está em jogo. 

Bomba-relógio

Algo entre 60% e 75% das novas doenças infecciosas surgem do contato entre humanos e animais (7). Ebola, HIV, gripe aviária… Bastaram algumas mutações para que os patógenos dessas doenças pulassem dos bichos para nós. 

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“Essa atividade [dos jumentos] é uma bomba-relógio porque ela é protopandêmica”, diz Tatemoto. O termo foi cunhado pelo pesquisador Rob Wallace no livro Pandemias e Agronegócio e diz respeito a práticas que facilitam o surgimento de novas doenças transmissíveis a partir do contato com animais.

Os jumentos já transmitem uma doença grave: o mormo. Ela afeta cavalos, jumentos e os filhotes híbridos dos dois e pode ser transmitida aos humanos pelo contato direto com secreções dos animais ou consumo de água e alimentos contaminados. 

O diagnóstico não é fácil, já que a doença é pouco conhecida e os primeiros sintomas podem ser confundidos com uma virose comum. A doença tem baixa incidência (o Brasil teve 1.398 casos notificados entre 2010 e 2019) (8) – mas é impiedosa. 

Sem tratamento, 95% dos pacientes da forma mais grave da doença morrem – às vezes, em menos de 48 horas. Mesmo com tratamento precoce, a letalidade varia entre 40% e 50% quando o sistema respiratório é atingido (9). A letalidade média da dengue no Brasil, em comparação, é de 0,07% (10).

Dos jumentos resgatados de Canudos, dez tinham mormo e precisaram ser sacrificados. 

Gráfico, em fundo azul claro, com dados estatísticos sobre os jumentos no Brasil.
(Rafaela Reis/Superinteressante)

Extinção em massa

É difícil quantificar o abate de jumentos em relação à população total da espécie. Desde 2013, o IBGE não contabiliza o número de animais de tração do País, por considerar que eles têm pouca importância econômica. 

Na falta de um censo, pesquisadores de várias universidades cruzaram dados da FAO (braço da ONU para alimentação e agricultura), do IBGE, do Ministério da Agricultura e de abatedouros para calcular a população atual de jegues [veja no infográfico acima]].

Segundo os pesquisadores, a população de jumentos caiu 94% entre 1997 e 2024. É um problema sobretudo para os jegues nordestinos (as outras raças têm criadouros). Isso os aproxima do ponto de não retorno – o risco real de extinção.

Os resultados saíram em junho em um documento chamado “Declaração de Maceió”. Assinado por 12 especialistas, ele recomenda a suspensão imediata do abate até que existam mais dados e estratégias para o controle da cadeia produtiva (11).

A extinção do jumento nordestino impactaria a biodiversidade e a variedade genética brasileira. O animal do sertão pode servir de modelo para pesquisas sobre adaptabilidade climática (eles conseguem cavar poços para encontrar água em locais áridos) (12). Além disso, ao servir de almoço para onças-pardas, por exemplo, eles “religam” cadeias alimentares já fragilizadas pelo desmatamento e outros desequilíbrios ecológicos.

Não é só aqui que os jumentos estão sumindo. Entre 2008 e 2023, o Quirguistão, na Ásia, registrou uma queda de 61% na população de jegues; em Botsuana, na África, o tombo foi de 75% (3). Ainda no continente africano, a diminuição no Quênia foi de mais de 50% entre 2019 e 2024 (13).

No ano passado, os 55 países da União Africana baniram o abate de jumentos para retirada de peles pelos próximos 15 anos. Em muitos lugares, perder um jumento gera impactos significativos na saúde feminina, na estabilidade financeira, na nutrição, no acesso à água limpa da família e na educação infantil. Estudos já mostraram que, sem um animal para carregar água, alimentos e mercadorias, o trabalho duro costuma sobrar para mulheres e crianças (14).

O que pode ser feito

As denúncias de maus-tratos já culminaram em ações civis públicas e processos judiciais. Em 2018, a Justiça da Bahia concedeu uma liminar que suspendeu o abate de jumentos no estado. Mas, diante da pressão econômica do setor e dos municípios dos abatedouros – Amargosa, Itapetinga e Simões Filho –, a medida caiu em poucos meses. 

“É uma guerra jurídica para tentar restabelecer a liminar”, explica o advogado Yuri Fernandes Lima, especialista em direito animal que protocolou vários pedidos em nome da The Donkey Sanctuary no Brasil.

Existem projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas da Bahia, do Ceará e da Paraíba para banir o abate de jumentos, com apoiadores de todo o espectro político. Mas por que proibir, e não regulamentar?

Porque, na prática, seria inviável. Um estudo  estimou que a criação adequada de um jumento custaria US$ 258 por ano – cerca de R$ 1,4 mil. Até o tamanho ideal para o abate, o preço bateria os R$ 4 mil. É um valor muito acima dos trocados que são pagos pelos animais comprados irregularmente. Uma outra pesquisa, que analisou a cadeia produtiva completa, concluiu que o manejo adequado elevaria tanto os custos que tornaria a atividade impraticável. 

A solução para não extinguir os jumentos nem acabar com o ejiao pode estar nas bancadas de laboratório. Pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) estudam formas de produzir o colágeno de jumento com biotecnologia. Carla Molento, professora de medicina veterinária da UFPR, lidera a pesquisa, que pretende utilizar uma técnica chamada fermentação de precisão

Imagem de uma xilogravura, em fundo rosa. Vê-se um jumento recebendo cuidados de uma veterinária. Ao fundo, uma estante com equipamentos de laboratório.
(Lucas Bezerra/Superinteressante)

O processo começa com um tipo de fungo, a levedura, que está por trás da fermentação da cerveja, por exemplo. Na fermentação de precisão, é como se os cientistas dessem uma nova receita para elas: um pedacinho específico do DNA dos jumentos é suficiente para ensinar as leveduras a produzir o colágeno. Depois de isolado, o resultado é igualzinho ao que é tirado da pele dos jegues.

A técnica é promissora, mas ainda precisa de investimento e anos de pesquisa para ser aprimorada. Enquanto isso não acontece, outros cientistas estudam possibilidades para o futuro dos jumentos. 

A fazenda da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia da UFBA abriga um grupo de jumentos que começou com o resgate de 22 animais em situação de maus-tratos – entre eles, várias fêmeas grávidas. Foi a partir delas que a professora Chiara Albano passou a estudar as propriedades do leite de jumenta, que pode ser usado em cosméticos, na alimentação de animais e na de humanos com alergia a leite de vaca.

Há também quem estude formas de valorizar e reintroduzir os jumentos na agricultura. Eles ainda podem ser úteis, afinal: adaptam-se a terrenos irregulares, têm um excelente senso de segurança e aguentam 150 kg de carga. Os jegues são tão dóceis que, na UFAL, Escodro estuda usá-los em atendimentos terapêuticos de mulheres sobreviventes de violência doméstica. 

Não faltam motivos para proteger os jumentos. Além das razões ecológicas e sanitárias, a ciência ainda pode descobrir um sem-fim de benefícios caso a gente os mantenha por perto. É o mínimo a fazer por um animal que, por séculos, foi nosso braço direito. Já dizia Gonzagão: “O jumento é nosso irmão, quer queira, quer não”. 

(1) Artigo “The genomic history and global expansion of domestic donkeys”;

(2) Artigo “Evolutionary movement of centromeres in horse, donkey, and zebra”; 

(3) Artigo “Widespread horse-based mobility arose around 2200 bce in Eurasia”;

(4) Relatório “Os jumentos no comércio global: jumentos roubados, futuros roubados”;

(5) Artigo “Global donkey and mule populations: Figures and trends”; 

(6) Notícia “Makers of lucrative TCM cast net wider for future success”;

(7) Artigo “Zoonotic spillover: Understanding basic aspects for better prevention”; 

(8) Artigo “Avaliação epidemiológica do mormo no Brasil”;

(9) Artigo “Aspectos gerais sobre o mormo e seu impacto na saúde pública: revisão de literatura”;

(10) Artigo “Tendências na incidência e letalidade da dengue: análise de séries temporais interrompida, Brasil, 2001-2022

(11) Nota pública “Declaração de Maceió – Estado de Emergência: Extinção do Jumento Nordestino”;

(12) Artigo “Equids engineer desert water availability”;

(13) Notícia “Kenya’s donkey population halves in 15 years amid illegal trade surge”;

(14) Artigo “Social and economic impacts of the donkeyskin trade on donkey-dependent women and communities in Kenya”;

(15) Artigo “How much is a donkey worth?”;

(16) Artigo “Donkey skin trade: is it sustainable to slaughter donkeys for their skin?”.

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