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SpaceX quer criar as próprias leis para eventual colônia em Marte

Objetivo da empresa é estabelecer um "planeta livre", independente dos governos terrestres, segundo a empresa. Mas, no cenário atual, isso não passa de fantasia.

Por Bruno Carbinatto
Atualizado em 4 nov 2020, 18h54 - Publicado em 4 nov 2020, 18h35

A SpaceX, empresa do bilionário Elon Musk que vem se destacando no setor da exploração espacial, tem uma meta extremamente ousada: colonizar Marte. A companhia pretende enviar os primeiros humanos para o planeta vermelho nos próximos dez anos, e criar uma base habitável por lá na década de 2050. Ninguém sabe se esses prazos serão cumpridos, mas um novo detalhe sobre o plano chamou a atenção: a empresa quer que sua hipotética colônia marciana não se submeta a nenhum governo terrestre, e tenha seu próprio sistema de leis.

A revelação foi feita quando internautas receberam os Termos de Serviço da Starlink, um outro projeto da SpaceX que pretende colocar satélites de internet na órbita terrestre. O projeto ainda é incipiente, mas algumas pessoas já foram selecionadas para testar uma versão beta e tiveram acesso ao serviço de internet – e também aos seus termos.

Uma cláusula quase escondida no meio de todo o juridiquês se destaca: “Leis de Governança”. Esse trecho diz que os usuários dos serviços da SpaceX têm que concordar em seguir as leis da Califórnia, estado americano onde a empresa é baseada, e que essas leis serão utilizadas em casos de crimes ou disputas judicais. Mas isso só se aplica quando os serviços são prestados na Terra e na Lua (onde a empresa também tem projetos). No planeta vermelho, a coisa é diferente.

“Para serviços prestados em Marte, ou em trânsito para Marte via nave estelar ou outra espaçonave de colonização, as partes reconhecem Marte como um planeta livre e concordam que nenhum governo baseado na Terra tem autoridade ou soberania sobre as atividades marcianas”, diz o texto. Nesse contexto, disputas em uma eventual colônia marciana seriam resolvidas de acordo com “princípios de autogoverno, estabelecidos de boa fé”. Na prática, isso significa que as leis da Terra não teriam efeito no outro planeta, e a população de assentamentos marcianos teria seu governo próprio.

É uma ideia ousada –quase tão ousada quanto construir bases autossustentáveis em Marte–, que especialistas consideram praticamente impossível. A principal barreira é o Tratado do Espaço Sideral, um acordo internacional criado em 1967 e assinado mais de 110 países, incluindo potências espaciais como Estados Unidos, Rússia, China e a maioria da Europa ocidental (o Brasil também assinou). O documento inclui uma série de normas e regulações para a exploração espacial, as quais todos os países concordaram em seguir.

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O texto do Tratado está cheio de cláusulas que barrariam uma colônia politicamente autônoma em Marte. O Artigo II, por exemplo, vai direto ao ponto: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. Além disso, o Artigo III diz claramente que as leis terrestres ainda são válidas no espaço sideral: “As atividades relativas à exploração e uso do espaço cósmico […] deverão efetuar-se em conformidade com o direito internacional […]”

E não adianta dizer que isso só vale para governos e que a SpaceX é uma empresa privada. Segundo o Artigo VI, os Estados que assinam o tratado “têm a responsabilidade internacional das atividades nacionais realizadas no espaço […] quer sejam elas exercidas por organismos governamentais ou por entidades não-governamentais”. Ou seja: os Estados Unidos respondem legalmente pelas atividades das empresas americanas no espaço.

Em entrevista ao portal Insider, Bleddyn Bowen, especialista em política espacial e professor da Universidade de Leicester, disse que “riu” quando leu os termos – de tão absurdos. Já David Koplow, também especialista no tema e professor da Universidade Georgetown, foi um pouco mais sutil: “Não tenho ideia do que eles querem dizer com ‘planeta livre’ ou ‘princípios de autogoverno’. Do ponto de vista do direito internacional, são apenas jargões sem sentido”, disse.

É possível argumentar que uma suposta colônia marciana poderia se declarar independente também do Tratado do Espaço Sideral, já que quem assina o documento é o governo dos Estados Unidos, e não a SpaceX. Mas os especialistas lembraram que se declarar independente, do ponto de vista do direito internacional, não significa absolutamente nada se o resto do mundo não reconhecer essa independência. Aqui na Terra mesmo há vários territórios disputados que se declaram Estados soberanos, mas não têm a independência reconhecida.

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Mesmo que a SpaceX decida chutar o balde para todos os acordos internacionais e desafiar o entendimento de 110 países ao se declarar independente de tudo, não significa que ela de fato vai conseguir atingir seus objetivos. Marte está separado da Terra por mais de 55 milhões de quilômetros de distância, é claro, o que dificultaria que forças estatais garantissem a aplicação da lei na marra. Mas a SpaceX continua baseada na Califórnia – e o governo americano tem total soberania para impor sanções, retirar licenças e aplicar outros tipos de punições caso entenda que sua legislação está sendo violada.

Ou seja: as ideias de SpaceX parecem, a princípio, cenário apenas da ficção científica. Mas não devem ser descartadas como mera piada. Em entrevista ao site Business Insider, o pesquisador da faculdade de direito de Nebraska Frans von der Dunk, que também é especialista em direito espacial, concordou que uma colônia marciana legalmente independente é praticamente impossível hoje – mas o debate sobre a questão não deve ser descartado.  “Nunca sabemos se [os planos de colonização de Marte] vão dar certo”, disse. “Mas a SpaceX é certamente uma empresa séria, com uma equipe séria e uma ciência séria por trás.”

A empresa do excêntrico Elon Musk está se destacando como um dos maiores nomes no ramo da exploração espacial, que até pouco tempo atrás era dominada por agências governamentais. Agora, até a Nasa está fazendo parceria com essa e outras companhias do setor privado. Além disso, von der Dunk lembrou que as coisas podem mudar no futuro. O Tratado do Espaço Sideral foi assinado há meio século, quando a corrida espacial tinha um contexto totalmente diferente. Não saberemos como o cenário estará daqui um século, por exemplo. Talvez as coisas tenham mudado tanto que seja interessante para países reconhecerem um governo autônomo em Marte. Essa possibilidade deve ser pelo menos considerada pra estudos e debates sobre o futuro da exploração espacial.

Por enquanto, porém, parece certo que os objetivos de Elon Musk ficarão restritos a palavras num contrato.

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