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Um raio x da Fórmula 1

A logística das corridas. O boom na Netflix. E um carro com as maiores mudanças aerodinâmicas em 40 anos. Entenda como funcionam as engrenagens da categoria, que passa por uma revolução.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 20 Maio 2022, 13h19 - Publicado em 20 Maio 2022, 09h55

Texto Rafael Battaglia | Ilustração Rodrigo Damati e Luciano Veronezi | Design Carlos Eduardo Hara | Edição Alexandre Versignassi

Por que “Fórmula 1”? Porque a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) decidiu que os carros que corressem seu campeonato seguiriam uma fórmula – um conjunto de regras que delimitaria sua construção – de modo a garantir algum equilíbrio na pista.

Ao longo das décadas, vieram várias fórmulas: rodas obrigatoriamente descobertas, restrições de comprimento, peso mínimo do carro, proibição (e posterior liberação) dos motores turbo. O normal era os engenheiros buscarem brechas no regulamento, e então a FIA banir – em nome da competitividade, ou da segurança.

É o que aconteceu com o “efeito-solo”. A partir de 1968, os F1 passaram a usar aerofólios – as asas traseira e dianteira. São asas de avião de cabeça para baixo. Elas criam downforce: grudam o carro no chão. É uma maravilha nas curvas. Você, piloto, consegue pisar fundo com o volante virado e o carro não sai da pista.

Só tem um problema. As asas criam arrasto aerodinâmico. Deixam o carro mais lento nas retas. Em 1978, então, o engenheiro Colin Chapman veio com uma solução genial: fazer o assoalho do carro em forma de asa invertida. Bingo: isso proporcionava mais downforce quase sem arrasto.

Mas era perigoso: quando o assoalho encostava no chão, o fluxo de ar era brevemente interrompido. Isso aumentava a pressão embaixo do carro, e eventualmente eles decolavam. Foi o que aconteceu em 1982 com a Ferrari do canadense Gilles Villeneuve, que acabou morto na pista. A FIA, então, baniu o efeito-solo.

O downforce voltou a ficar só a cargo das asas, que foram se tornando cada vez mais complexas. Os aerofólios, porém, passaram a criar um rastro de ar turbulento. Isso acabava com o downforce do carro que vinha atrás.

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O de trás que lute, certo? Do ponto de vista do espetáculo, não. As ultrapassagens foram ficando mais e mais raras, o que deixa as corridas chatas, e afasta o público. Até que os organizadores tomaram uma decisão: trazer de volta o efeito-solo, numa versão mais segura que a original. A partir de 2022, o assoalho voltou a ser o grande responsável pelo downforce.

Thumb para o infográfico ilustrado do carro da Ferrari mostrando as diferenças entre os modelos de 2021 e 2022.
Clique na imagem para abrir o infográfico. (Rodrigo Damati/Superinteressante)

A maior mudança aerodinâmica da categoria tinha sido justamente o fim do efeito-solo. A volta dele, então, marcou o chacoalhão mais relevante nesse quesito em 40 anos. Essa atualização, porém, é só parte da história.

A FIA cuida das regras. Mas a F1, como negócio, tem dono. Desde a década de 1970, era o britânico Bernie Ecclestone, que transformou a categoria num negócio zilionário vendendo direitos de transmissão e distribuindo parte do dinheiro com as equipes. Em 2017, o conglomerado americano Liberty Media comprou a categoria de Bernie e seus sócios, por US$ 4,4 bilhões.

Àquela altura, a audiência da Fórmula 1 havia caído de 600 milhões de espectadores anuais, em 2008, para 390 milhões. Mas a Liberty encarou a bucha, e desde então se esforça para popularizá-la, sobretudo nos EUA, que nunca deram bola para a categoria.

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As mudanças nos carros vêm junto com um novo regulamento, que visa a equilibrar a competição. As equipes, por exemplo, têm agora um teto de gastos para os seus orçamentos anuais (calma, já falaremos mais sobre isso).

Fora das pistas, a Liberty investe pesado para tornar a Fórmula 1 um espetáculo mais profundo. Deu certo. A audiência global subiu (para 445 milhões de pessoas em 2021). E uma pesquisa mostrou que o fã do esporte rejuvenesceu: a idade média caiu de 36 anos, em 2017, para 32. A participação feminina, outro objetivo da Liberty, cresceu de 10% para 18% do público. A guinada corre solta. Sem bandeira vermelha.

VOLTA AO MUNDO

23 corridas. 700 toneladas de equipamento. 120 mil quilômetros rodados. Saiba como é a intrincada logística da Fórmula 1.

Mapa com a localização dos GPs, escuderias que ficam no Reino Unido e rotas de navio Austrália-Canadá-Singapura.
Clique na imagem para ampliar. (Carlos Eduardo Hara/Superinteressante)

Haja combustível

Em 2021, as dez equipes da Fórmula 1 viajaram 120 mil km para competir em 22 corridas (um número recorde até então). É o mesmo que dar três voltas na Terra. Mas a temporada de 2022 vai além: são 23 corridas (veja no mapa).

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A bagagem

Cada prova movimenta até 700 toneladas de material, entre os de cada equipe (50 T) e da própria F1 (150 T) – só nas transmissões são usadas 126 câmeras e os 60 km de cabos. Tudo isso viaja de três formas: pela terra, pela água e pelo ar.

Pé na estrada

Ilustração de carro de Fórmula 1 desmontado entrando em caminhão.

Há um período no calendário reservado a uma série de corridas na Europa, entre julho e setembro. Nessa época, 315 caminhões carregam todo o material. Em cada caminhão, dois a três motoristas se revezam para evitar paradas.

Hospitalidade

As equipes aproveitam a fase europeia para levarem seus motorhomes – estruturas suntuosas de até três andares com escritórios, lounges e bares, que jamais caberiam num avião. Elas abrigam o time e convidados nos dias de corrida.

Desmontagem

Tudo é encaixotado até oito horas depois de cada GP. O carro é desmontado, e as partes são envoltas em espuma e plástico-bolha. Se o calendário permitir, os automóveis voltam às fábricas para serem avaliados e repintados.

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Pelo céu

Ilustração de avião com containers dentro.

Para as corridas fora da Europa, a maior parte da carga (carros, pneus, eletrônicos) vai de avião (6 cargueiros Boeing 747-400F, pagos pelos times). Eles enviam até 13 caixas cada, cujos formatos são pensados para aproveitar o máximo de espaço.

Pelo mar

Ilustração de navio carregado de containers.
(Rodrigo Damati/Superinteressante)

Cargas baratas e não relacionadas ao carro vão de navio: mesas, cadeiras, móveis de oficina. Cada equipe envia três contêineres de 12 m de comprimento. É mais barato que avião, mas demora: eles são enviados de 4 a 6 semanas antes da corrida.

Balé logístico

Cada equipe possui cinco conjuntos idênticos de três contêineres, que viajam entre as corridas fora da Europa. Assim, há sempre um desses conjuntos em cada circuito.

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No mapa acima, colocamos um exemplo de rota marítima que rolou na temporada de 2019. O conjunto de contêineres que estava no GP da Austrália (17/3) foram para o GP do Canadá (9/6) e, depois, direto para o de Singapura (22/9).

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CORRIDA DO OURO

Em 2021, a Fórmula 1 faturou US$ 2,1 bilhões. Metade desse valor é destinado às equipes. Entenda como o dinheiro circula dentro do esporte.

Ícones de satélite soltando notas de dinheiro, macacão cheio de marcas, moedas empilhadas formando pódio, máquina de cartão recusando pagamento.
(Rodrigo Damati/Superinteressante)

1 – Sintonizados

A Fórmula 1 tem três principais fontes de renda. A primeira é a venda de direitos de transmissão de TV. Em 2019, por exemplo, o Sky Sports pagou US$ 1,2 bilhão para ser o único canal no Reino Unido a exibir as corridas. No Brasil, Band e Liberty dividem igualmente o faturamento com anunciantes (que deve chegar a R$ 120 milhões em 2022). Em 2021, a audiência média de cada corrida foi de 70,3 milhões de espectadores no mundo.

2 – Boleto em dia

A segunda fonte são as taxas que cada circuito paga para integrar a temporada: US$ 40 milhões, o que rende à Fórmula 1 mais de US$ 900 milhões por ano. Governos locais ajudam a custear as corridas, já que sediar um GP movimenta a economia: o turismo em São Paulo gerou R$ 594 milhões em 2021. Circuitos como Monza (Itália), Spa-Francorchamps (Bélgica) e Silverstone (Reino Unido) têm desconto por serem os autódromos mais tradicionais da categoria.

3 – Anuncie aqui

A terceira parte vem dos patrocinadores. A DHL é a parceira logística da Fórmula 1. A Pirelli fornece todos os 40 mil pneus usados em uma temporada. Outros só ocupam espaço publicitário, como Heineken (US$ 50 milhões por ano), Rolex (US$ 45 milhões por ano) e a plataforma Crypto.com (US$ 100 milhões, em um contrato de cinco anos). Os anunciantes precisam se ajustar às regras de cada país: nos GPs do Bahrein e Abu Dhabi, a propaganda de bebida alcoólica é vetada.

4 – Meritocracia

O pagamento às equipes acontece por etapas. Na primeira, todos recebem a mesma quantia: US$ 36 milhões. Na segunda, leva-se em conta a posição da equipe na temporada anterior. O primeiro colocado leva 14% do montante dessa rodada de pagamento (cujo valor a Fórmula 1 não revela); o segundo leva 13% e assim sucessivamente; o décimo (e último) colocado leva 6%.

5 – Tratamento especial

Algumas equipes recebem pagamentos extras. A Ferrari tem um bônus simplesmente pela sua tradição e importância na Fórmula 1. O regulamento também garante uma porção de dinheiro aos times que atingiram o top 3 na última década. Em 2022, Ferrari, Mercedes, Red Bull, McLaren e Williams se enquadram nessa categoria.

6 – Outras fontes

As equipes também podem conseguir dinheiro por meio de investidores e patrocinadores. Em fevereiro, por exemplo, a Red Bull firmou uma parceria de cinco anos com a Oracle. Por US$ 500 milhões, a empresa de tecnologia poderá estampar o seu logo no carro da equipe – que passará a se chamar Oracle Red Bull em 2023.

7 – Teto de gastos

Até 2020, a diferença de orçamento das equipes era grande. Enquanto Mercedes, Red Bull e Ferrari trabalhavam com US$ 400 milhões de caixa por ano, a grana de times como Haas e Williams não passava de US$ 150 mi. Para equilibrar a competição, a Fórmula 1 estipulou um limite de US$ 145 mi de orçamento anual. É um teto regressivo: o plano é reduzir US$ 5 mi por ano (em 2022, já está em US$ 140 mi).

8 – E o salário, ó

O pagamento a pilotos e executivos das equipes não conta para o teto de gastos. Também, pudera: Lewis Hamilton e Max Verstappen recebem US$ 50 milhões por ano. O salário do chefão da Red Bull, Chris Horner, é de US$ 10 milhões por ano; o de Toto Wolff, da Mercedes, US$ 8,4 mi. A Fórmula 1 quer criar um teto salarial de até US$ 30 mi, que passaria a valer em 2023.

9 – Lucro indireto

Em 2019, Mercedes e Williams tiveram um prejuízo de US$ 5 milhões. Os outros times ficaram no zero a zero – declararam ter gastado basicamente o mesmo que ganharam. Isso porque o objetivo da maioria das equipes não é lucrar. As corridas funcionam como uma plataforma de marketing, e a grana vem indiretamente. Para equipes como Ferrari, Mercedes e Aston Martin, vem da venda de automóveis; para a Red Bull, dos energéticos. Por isso, faz sentido investir todo o faturamento no desenvolvimento dos carros.

SÓ UMA ESPIADINHA

Com acesso sem precedentes aos bastidores da Fórmula 1, Drive to Survive, da Netflix, se tornou uma peça-chave para aumentar a popularidade do esporte.

Ilustração de gravação da série
(Rodrigo Damati/Superinteressante)

O britânico Bernie Ecclestone era um vendedor de carros usados que tentou virar piloto de Fórmula 1 em 1958. Não vingou, mas ele conquistou aos poucos seu espaço. Primeiro como empresário de piloto, depois como dono de time (a Brabham, com a qual Nelson Piquet foi bicampeão em 1981 e 1983). 

Ecclestone logo entendeu que a TV poderia aumentar o faturamento da categoria. Sob o comando da Associação das Equipes, negociava com emissoras contratos de transmissão; com os circuitos, a taxa para integrar o torneio. Não demorou muito para que ele assumisse o controle total da Fórmula 1.

Se você imagina a Fórmula 1 como um esporte glamouroso, regado à champagne, a culpa é de Ecclestone. “Ele foi o grande responsável por tornar o ambiente da Fórmula 1 mais profissional, seguro – e exclusivo”, diz o jornalista Fábio Seixas, especializado em automobilismo. Para Ecclestone, o segredo para o fascínio estava no mistério: o acesso aos paddocks e garagens das equipes era super-restrito, e informações sobre os bastidores das corridas eram escassas.

Ecclestone foi fundamental para a evolução da Fórmula 1, mas os últimos anos de sua gestão davam sinais de desgaste. Em 2014, ele declarou que não estava interessado no público jovem. “Eles vão ver um relógio Rolex, mas não poderão comprar um”, disse. Avesso a redes sociais, o chefão preferia focar nos mais velhos. A Fórmula 1 estava parada no tempo.

Quando a Liberty Media adquiriu a categoria, em 2017, pesquisas indicavam que o público da Fórmula 1 achava as corridas monótonas e previsíveis. Aqui, entrou o esforço para aumentar a competitividade entre as equipes, como estipular um teto orçamentário e repaginar os carros. Mas ainda era preciso rejuvenescer a marca.

Sem problemas. A Liberty afrouxou os acordos de exclusividade com emissoras de TV, o que facilitou o compartilhamento de vídeos das corridas no YouTube e em outras redes sociais. Criou também uma plataforma de streaming, a F1 TV (que dá acesso a todas as câmeras a bordo dos pilotos e aos rádios das equipes), um jogo online (o F1 Fantasy) e licenciou dados para plataformas de apostas.

Mas a cereja do bolo foi outra: a Netflix. Logo que assumiu as rédeas, a Liberty propôs à plataforma uma série que mergulhasse nos bastidores da Fórmula 1 e que fugisse completamente da cobertura rotineira. Nascia aí F1: Dirigir para Viver (no original, Drive to Survive, que é como todo mundo chama mesmo). Ela estreou em 2019, com a primeira leva de episódios destrinchando o campeonato de 2018.

O que acontece no intervalo entre um GP e outro? O que pilotos conversam nos boxes? Como são as broncas dos chefes de equipe? O trunfo de Drive to Survive não está apenas em retratar os pontos altos das corridas (o que a série faz com maestria), mas em esmiuçar, pela primeira vez, o que acontece atrás da cortina do esporte.

Foi um sucesso – Mercedes e Ferrari, que não toparam participar da primeira temporada, voltaram atrás e passaram a integrar a série. Drive To Survive foi essencial para o aumento de popularidade nos EUA. Dos 400 mil espectadores que foram ao GP de Austin, Texas, no ano passado, 70% estavam lá pela primeira vez.

O GP de Miami, que estreou no calendário em 2022, empatou em audiência com uma corrida da Nascar, a categoria mais popular dos EUA, transmitida no mesmo horário – foram 2,6 milhões de espectadores para cada uma.

E a Liberty quer ir além em sua terra. Serão três corridas nos EUA em 2023: Miami, Austin e Las Vegas. Na verdade, há planos de aumentar o calendário da Fórmula 1 para até 30 corridas por ano. No Brasil, mesmo sem um representante na categoria, 182 mil pessoas foram a Interlagos em 2021. E os ingressos para este ano já esgotaram.

Drive to Survive também consolidou os pilotos como celebridades de fato. “Com exceção dos aficionados por Fórmula 1, ninguém sabia quem eles eram, por que eram tão poderosos e por que estavam tentando fazer o que estavam fazendo”, disse à revista Sports Illustrated Paul Martin, produtor executivo da série.

A isso se soma a forte presença deles nas redes sociais: sete pilotos da F1 têm canais na Twitch, onde frequentemente jogam videogame ao vivo e interagem com o público. O maior deles é de Lando Norris, de 22 anos (e que corre pela McLaren), com 1,3 milhões de inscritos. “É uma geração de pilotos que cresceu na era da internet”, diz Seixas.

Drive to Survive é por vezes criticada por pesar a mão no drama. O atual campeão Max Verstappen, por exemplo, optou por não colaborar com a série. “Eles fingiram algumas rivalidades que não existem”, disse o piloto.

Verstappen pode ter razão, mas dramatização nenhuma poderia prever o desfecho da temporada de 2021. Depois de um campeonato travando disputas épicas, o jovem Max e o heptacampeão Lewis Hamilton chegaram à última corrida empatados, com 369,5 pontos cada. Verstappen levou a melhor e venceu na última volta. Coisa de cinema. Sorte da Netflix – e dos fãs.

Agradecimento: Marcelo Alves, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da Poli-USP.

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