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A arqueologia nos tempos da web

Para compreender os dias de hoje, os historiadores do futuro vão se debruçar sobre fotos, e-mails e posts na Internet. De futilidades do cotidiano a assuntos politizados. Tudo será usado para escrever a nossa história

Por Felipe van Deursen
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 15 jan 2012, 22h00

 

O sorriso estampado ao lado do Mickey está guardado até hoje em uma caixa de sapatos. Paulo Moço fez sua primeira viagem ao exterior em 1997, quando conheceu os parques da Disney na Flórida. Levou uma câmera analógica e 3 filmes de 36 poses, comprados com a mesada. Das cerca de 100 fotos que tirou, algumas queimaram e outras foram estragadas quando alguém passava na frente da câmera na hora do disparo. Esse tipo de situação não irritava mais quando ele foi à Europa em 2004. Na ocasião, havia ganhado uma câmera digital de 5 megapixels. Não importava mais se alguém passasse na frente na hora em que clicava a Torre Eiffel. Bastava apagar e repetir. E assim ele preencheu com centenas de imagens seu cartão de memória de 256 MB. Em 2011, voltou à estrada com uma nova câmera, que faz fotos de 14 megapixels e custou menos que a anterior. Milhares de fotografias depois, ele só não esgotou o cartão de 16 GB porque tinha outra câmera – a do smartphone, usada para fotografar pratos, doces e bebidas que consumia.

As viagens mostram como a nossa relação com a fotografia mudou nos últimos 15 anos, com a popularização das câmeras digitais. Antes, tirar fotos era mais caro e complexo (caso você não lembre, era preciso comprar o filme, colocá-lo na câmera e levar para revelar no fim da viagem, com os dedos cruzados para não ter queimado muitas fotos). Além disso, fotografar era restrito a aparelhos criados para tal. Hoje, ninguém precisa ter câmera para tirar foto. Celulares e tablets cumprem a função. E as máquinas estão cada vez mais baratas e poderosas.

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A tecnologia banalizou a fotografia. Mas não só ela. Outras formas de produção de conteúdo também. A cada ano, é mais fácil e barato manifestar o que quer que seja. Faça, publique. Comente, tuíte. Viralizar virou verbo do dia a dia. E o fluxo só aumenta. Em 2010, a humanidade atingiu a marca de 1 zettabyte de informação criada e replicada. Zettabyte? É o mesmo que 1 trilhão de gigabytes de informação.

Joio e trigo

É tanta coisa que publicamos diariamente na internet que, se você parar para ver, dá para contar a história da sua vida com base apenas em e-mails trocados. Mas que legado estamos deixando para os historiadores do futuro? Como os desbravadores da internet conseguirão interpretar nossos tempos neste oceano de fotos de comida e hits de YouTube? O trabalho não será muito diferente do que já é feito por pesquisadores que estudam outras épocas, acredita Jennifer Gavin, diretora de comunicação da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. “Da mesma forma que alguém lê um jornal do século 18, pesquisadores do futuro analisarão tuítes por diversos ângulos diferentes para ver o que preocupa e interessa nos dias de hoje”, diz. “O que foi trending topic? Qual a porcentagem de assuntos ligados a política? E o quanto as pessoas tuitaram sobre gatos ou festas?” Para ela, o trabalho consiste menos em separar o joio do trigo e mais em tentar entender o cotidiano das pessoas. Afinal, futilidades fazem parte da existência humana desde muito antes da internet. “O fato de que muito do conteúdo é bobo e mundano não o torna inútil na pesquisa social.”

É justamente para que no futuro seja possível traçar um retrato da sociedade com base no que publicamos na internet que a Biblioteca do Congresso dos EUA arquiva os cerca de 230 milhões de tuítes feitos todos os dias. A iniciativa, lançada em 2010, faz parte do programa de preservação digital da biblioteca, que estuda maneiras de arquivar com segurança diversas formas de mídias.

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Então aquele seu tuíte tirando sarro do chefe palmeirense após o título do Corinthians está guardado na Biblioteca do Congresso americano? A não ser que você tenha configurado sua conta como privada, sim. Por mais superficial que possa parecer, ele ajudará, com bilhões de outros textos de 140 caracteres, a compor um perfil do nosso tempo. “Em 1963, consideravam os Beatles estúpidos porque eles tinham versos como `yeah, yeah, yeah¿”, compara Jennifer. “Hoje podemos voltar no tempo e ver os primeiros materiais da banda e a influência que ela teve no mundo. O Twitter pode propiciar uma janela para o futuro assim”, diz.

Mas não é tarefa fácil. Estamos cada vez mais conectados. Novas gerações são naturalmente inclinadas a tratar a internet como uma extensão da vida, não como algo à parte. A história das pessoas passa a ser mais registrada na rede. A lista de aprovados no vestibular está no Google. Os melhores amigos estão marcados nas fotos do Facebook. O cargo novo no trabalho está exposto no perfil do Twitter. O amor da sua vida cabe no Gmail.

Isso tudo acontece porque gerar informação está cada vez mais fácil. O custo de produzir, administrar e armazenar conteúdo online é 1/6 do que era em 2005, segundo um estudo da organização Internet Data Corporation. Além disso, o investimento no universo digital cresceu 50% entre 2005 e 2011. Ou seja, está mais fácil porque está mais barato. E está mais barato porque há dinheiro fluindo para que essa tendência continue nos próximos anos.

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Teorias do caos

Pesquisadores do futuro lidarão não só com a maior quantidade de informação já produzida na Terra como com o desafio de contextualizar fatos, costumes, modas, personagens. E o principal, como afirma Jennifer: tudo isso será apenas um ponto de vista do mundo atual, não um retrato acabado. Por mais que fotografar e chamar bolinhos coloridos de cupcakes seja um costume popular nas redes sociais, isso não quer dizer, necessariamente, que no futuro nossa época será a geração Instagram. Porque simplesmente há muito mais seres humanos que não fazem ideia do que seja uma foto de cupcake no Instagram do que aqueles que sabem. Logo, contextualizar continuará sendo dever dos historiadores. Além disso, há a questão da autenticidade, como lembra o historiador da UFRGS Fábio Chang, que pesquisa arqueologia histórica. “Para escrever a história do início do século 21, será preciso trabalhar com blogs e redes sociais”, diz. Segundo Fábio, comprovar a autenticidade da documentação pode ser um desafio maior no futuro do que hoje. Por exemplo, um post assinado por um egípcio durante a Primavera Árabe. Ele foi mesmo feito por um rapaz do Egito? Durante a crise no país? Esse cuidado será essencial.

Recordar é importante. Mas há outro problema. E se quisermos apagar algo da nossa vida digital? Você fez posts apaixonados em seu blog, levou um fora do namorado e teve que vê-lo “em um relacionamento sério” com outra pessoa. Para que, Brasil? “Até os nativos digitais querem ter o direito de esquecer”, diz Viktor Mayer-Schönberger, professor do Instituto de Internet da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e autor de Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age (inédito em português). “A importância da privacidade não mudou. Mudaram as ferramentas. Antes tínhamos conversas orais que eram esquecidas. Agora temos conversas parecidas nas redes sociais que não são esquecidas”, diz. A maior parte da sua história, hoje, não está em papel. Mas na internet.

Então, como proceder? Agir conscientemente na web é a melhor maneira de lidar com o que você divulga. Não quer que conversas sejam gravadas no Messenger? Configure-o para tal. A Biblioteca do Congresso tem um programa de conscientização a respeito, que ajuda as pessoas a preservar os arquivos digitais que importam. Imagine se todas as suas fotos estão gravadas apenas no Facebook e um belo dia Mark Zuckerberg fecha o site para investir em spas para as pessoas só comerem o que caçarem. Se você não as tem salvas no computador, tchau. Por isso há serviços como o site 1000memories, especializado em editar e arquivar fotos antigas. “Arquivos digitais podem ser duplicados e não têm custo”, lembra Jonathan Good, cofundador do site. Logo, é fácil não dar a eles o mesmo cuidado que se dá a arquivos analógicos. E perdê-los por aí. Então, que tal atender ao pedido desses pesquisadores e dar mais atenção à sua própria memória digital? Não para as futuras gerações de historiadores. Para você. Para os seus netos.

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Para saber mais

https://www.digitalpreservation.gov

https://www.1000memories.com

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