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Lixo no paraíso

O Brasil vai dar o segundo passo em seu programa nuclear, 24 anos depois do primeiro. Mas a usina Angra 2, que já está funcionando em fase de testes, será inaugurada ainda sem uma solução para o problema de onde guardar os resíduos radioativos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h33 - Publicado em 31 Maio 2000, 22h00

Bernardo Esteves, de Angra dos Reis

O galpão tem uma aparência anódina, igual à de um depósito de tintas. De vez em quando, um caminhão encosta e descarrega grandes tambores verdes de aço. Eles contêm macacões de plástico amarelo, máscaras, sapatilhas, pinças e ferramentas utilizadas na manutenção do reator da usina nuclear Angra 1, que funciona desde 1981. Trata-se, portanto, de material radioativo, que precisa ser confinado para não contaminar ninguém. Desde que o reator entrou em operação, as empilhadeiras mecânicas já acumularam no galpão nada menos do que 6 000 tambores. Aos poucos, o espaço está se tornando exíguo. Em 2003, ele estará entupido e lotado para esses rejeitos de baixa radioatividade, uma das três categorias de lixo atômico (veja o quadro abaixo) produzido em Angra. A placa na entrada do edifício não deixa dúvidas: “depósito provisório”.

E daí? O que fazer em 2003? Enquanto se adia a escolha de um local para o armazenamento definitivo do lixo, o segundo reator nuclear brasileiro já começou a funcionar. Ambos ficam lado a lado em um dos mais belos trechos da costa brasileira, pontuado de ilhas cheias de milionárias casas de veraneio que, por enquanto, ainda merecem o título de paraíso tropical. Seu futuro, porém, sofre uma ameaça. Quando estiver funcionando a plena capacidade, Angra 2 deve gerar 1 309 megawatts (25% da energia elétrica consumida no Estado do Rio de Janeiro) – além, é claro, de dezenas de toneladas anuais de novos rejeitos. Onde colocá-los?

Os perigos não podem ser subestimados. Para armazenar o lixo, escolhem-se locais de pouca densidade demográfica, baixo índice pluviométrico e livres de lençóis freáticos. Na França, na Suécia e nos Estados Unidos, ele é enterrado em depósitos subterrâneos e no mar e, na Alemanha, estocado em minas de sal. São o calcanhar-de-aquiles da energia nuclear, pois exigem vigilância por milhares de anos.

Um dos produtos da reação de fissão do urânio é o altamente radioativo plutônio-239, que tem uma meia-vida de 24 000 anos. Isso significa que esse tempo é o prazo que a substância leva para perder metade de sua radioatividade. “O lixo atômico é o grande abacaxi que estamos deixando para as próximas gerações. Sobrará para elas encontrar uma maneira eficaz de lidar com essa herança”, alerta o geólogo Ruy de Góes, coordenador da campanha antinuclear do Greenpeace.

Batata quente nuclear

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Em Angra 2, as sobras do combustível usado – que constituem o temido lixo de alta radioatividade – serão armazenadas por enquanto em uma piscina revestida de aço inoxidável, dentro do edifício do reator. Ali pode-se estocar todas as 1 200 toneladas de combustível irradiado que o reator produzirá durante seus quarenta anos de vida útil. É o tempo que a encrenca pode ser adiada. Já os rejeitos de média e baixa radioatividade ficarão guardados também em caráter provisório em tonéis em galpões no subsolo da usina. Esses locais comportarão o lixo produzido nos quatro primeiros anos de funcionamento do reator. Depois disso… bem, o mínimo que se espera é que o país já tenha encontrado uma solução definitiva para o problema.

A decisão sobre onde guardar permanentemente esse material é uma daquelas proverbiais batatas quentes nas mãos do Congresso Nacional. Cabe aos deputados federais votar um projeto de lei regulamentando a estocagem dos rejeitos. Não por acaso, a medida tramita na casa há nove anos. Nenhum parlamentar quer assumir o ônus de definir onde depositar um entulho que ninguém em sã consciência desejaria ter perto de casa.

Vazamento é risco mínimo, mas assustador

Além do lixo atômico, outro perigo ronda os 433 reatores em operação no mundo: o vazamento radioativo. O risco é mínimo, garantem os defensores da energia nuclear. De fato, a chance de haver um vazamento é quase nula. É mais fácil um avião cair em cima da sua cabeça. Mas o risco existe, e seus efeitos podem alcançar uma escala enorme. Ninguém se esquece dos 31 mortos e das centenas de milhares de pessoas contaminadas pela explosão de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986.

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Em Angra 2, é improvável que algo parecido aconteça. O prédio do reator é envolto por uma redoma de aço de 56 metros de diâmetro e 3 centímetros de espessura que impede a passagem de material radioativo. Essa estrutura – o vaso de contenção – não existia em Chernobyl. E tem mais cinco camadas que protegem o combustível do reator (veja o infográfico abaixo).

Os técnicos de Angra se orgulham da segurança da usina. Seu reator é do tipo PWR, que usa água pressurizada, o mais empregado no mundo, e nunca registrou um acidente fatal. Não é, digamos, uma BMW, mas trata-se de uma máquina simples e regular, um Volkswagen da indústria nuclear. Chernobyl, que nos ensinou a prever sempre o pior, era um Ford bigode comunista, uma geringonça instável.

No caso de Angra, o pior significa o vazamento de material radioativo para a atmosfera – e não uma explosão nuclear, como alguns fantasiam. Reatores nucleares não explodem. Se a evasão ocorrer, entra em ação um plano de emergência para evitar que os vizinhos da Praia de Itaorna, onde ficam os reatores, sejam contaminados. O alerta prevê uma retirada ordeira e organizada. Na prática, existem sérios riscos de só provocar o pânico e o caos. A usina está a 18 quilômetros em linha reta dos 100 000 habitantes da cidade de Angra dos Reis.

Sirenes que tocam baixo demais, telefones que não funcionam e helicópteros ameaçados de não voar foram alguns dos problemas constatados em uma simulação de acidente realizada no ano passado. Nesse ensaio houve até morte: um policial motociclista acidentou-se na sinuosa e escorregadia BR-101, um dos pontos críticos do tal plano de emergência. A estrada está em condições precárias e é a única via de escoamento da região.

O plano prevê que estações locais de rádio e TV orientem os moradores. Segundo o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), esse sistema é incapaz de informar a população flutuante de turistas que freqüenta Angra dos Reis. “Se um acidente ocorrer, temos que torcer para que seja no inverno e no meio da semana, quando há bem menos visitantes”, ironiza.

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Outra fragilidade do plano de emergência é o sistema de transporte para a evacuação da população. Em princípio, ele será feito por empresas de ônibus particulares. “Mas quem disse que os motoristas vão se aventurar em uma região onde houve um acidente nuclear?”, questiona o físico Luiz Pinguelli Rosa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A Eletronuclear, empresa estatal responsável pelas usinas, está pagando para ver.

O Brasil na contramão da História

A inauguração de Angra 2 coloca o Brasil em uma posição contrária à da maioria dos países do mundo. A energia nuclear está se expandindo no planeta, mas o número de reatores que entram em operação a cada ano está caindo (veja os gráficos abaixo). Em 1999, apenas quatro usinas novas foram ligadas no globo. Nos tempos áureos da energia nuclear, nos anos 80, mais de trinta eram abertas anualmente. Hoje, são 433 reatores funcionando em 31 países. Há três anos, eram 442, e o clube nuclear contava com 36 nações. A redução se deve principalmente à pressão da opinião pública, que não aceita mais correr os riscos acarretados pelas usinas.

Dois membros do G7 (grupo dos países mais ricos do mundo) investem pesado em energia nuclear. O Japão, iniciou a construção de duas usinas em 1999. O outro é a França, que tem três quartos de sua energia elétrica produzidos por reatores e conta com 59 centrais atômicas funcionando – sem acidentes. Além da França, inauguraram reatores recentemente a Índia, a Eslováquia e a Coréia do Sul.

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Os Estados Unidos, o país recordista mundial em número de usinas, com 104 em operação, pararam de construí-las depois do acidente na central de Three Mile Island, em 1979, quando um vazamento do líquido de resfriamento do reator contaminou oito funcionários. Países como Suécia, Alemanha, Bélgica, Holanda e Canadá decidiram fechar progressivamente suas usinas, ainda em operação. “Prometer fechar reatores daqui a alguns anos é fácil, porque a existência útil deles terá terminado”, refuta Luiz Henrique Gonçalves de Morais, superintendente de apoio técnico à operação da Eletronuclear. “Quero ver o que esses países vão fazer depois. As opções de energia são limitadas.”

Em projeto, outra usina

A Itália não tem mais centrais nucleares. Após o acidente de Chernobyl, a população escolheu num plebiscito fechar seus quatro reatores. “Mas os italianos compram energia elétrica da França, produzida em usinas nucleares bem na sua fronteira”, lembra Morais. “Eles acabam correndo os mesmos riscos.”

Enquanto isso, o Brasil fala, já, em construir uma terceira usina. Ela ficaria ao lado de Angra 2, da qual seria uma cópia fiel, com o mesmo tipo de reator. O canteiro de obras já existe desde os anos 70, mas espera uma decisão – e verbas – do governo federal. Muitos equipamentos já foram importados e se gastou 1,4 bilhão de dólares com essa aparelhagem, boa parte em juros. O custo adicional para concluir a usina é de mais 1,5 bilhão. No final, ela acabaria saindo por uns 3 bilhões de dólares. Só que um reator novinho de 1 300 megawatts pode ser comprado por 1,5 bilhão no mercado. Se o projeto vingar, a nova usina pode entrar em operação em 2006. “Deveríamos, sim, era tentar vender os equipamentos de Angra 3”, afirma o físico da Universidade de São Paulo e ex-ministro do Meio Ambiente José Goldemberg. “O Brasil está na contramão da História. Já estava há 25 anos quando iniciou o seu programa nuclear.”

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Para saber mais

https://www.eletronuclear.gov.br

https://www.iaea.org/

Algo mais

O reator de Angra 1 já produziu 6 491 tonéis de dejetos de baixa radioatividade e 681 cilindros de concreto com lixo de méda radioatividade. Angra 2 terá um depósito no subsolo capaz de estocar 1 380 tonéis e 254 cilindros de concreto. Isso é suficiente apenas para quatro anos de operação.

Daqui não passa

O reator de Angra 2 tem seis barreiras de proteção para conter um eventual vazamento.

1. As pastilhas de dióxido de urânio, que é o combustível do reator, retêm a maioria dos produtos gerados pela fissão do urânio.

2. Elas são embutidas em varetas feitas de uma liga de zircônio e estanho, que resistem ao calor produzido pela reação em cadeia do urânio. Agüentam até 1 400 graus Celsius.

3. O vaso de pressão do reator tem paredes de aço de 25 centímetros de espessura.

4. Uma blindagem radiobiológica de concreto impede a liberação de substâncias radioativas.

5. O vaso de contenção de aço estanque tem 3 centímetros de espessura e 56 metros de diâmetro.

6. Um edifício com paredes de concreto armado de 60 centímetros de espessura protege o reator contra choques externos. No interior do edifício, a pressão é menor que a atmosférica.

Alerta vermelho, perspectiva negra

O plano de emergência trabalha com áreas de segurança em torno da Praia de Itaorna, onde fica a usina nuclear.

1. No caso de suspeita de vazamento radioativo na atmosfera, a população que mora em um raio de 3 quilômetros ao redor da usina deve ser evacuada e levada para abrigos (escolas, na maioria). Sirenes tocarão dando o alerta e estações de rádio e TV orientarão os moradores para evitar pânico.

2. Confirmando-se a suspeita, a evacuação será ampliada para um raio de 5 quilômetros. O plano prevê uma retirada em 4 horas. Ônibus farão o transporte da população até os abrigos a partir de pontos de embarque predeterminados.

3. Quem estiver entre 5 e 15 quilômetros da usina deve permanecer em casa ou no local de trabalho e aguardar instruções da Defesa Civil. Além dessa região, a Comissão Nacional de Energia Nuclear estima que não há risco de contaminação nem no pior caso de vazamento possível.

Ascensão e queda

Após o boom dos anos 70 e 80, na última década caiu o número de reatores nucleares inaugurados no mundo.

1956 a 1959 – 7

1960 a 1969 – 20

1970 a 1979 – 133

1980 a 1989 – 222

1990 a 1999 – 56

De onde vem a luz

Usinas atômicas produzem um sexto da energia elétrica gerada no mundo.

Hidroelétrica 18%

Carvão 40%

Óleo 11%

Gás 14%

Nuclear 17%

Três tipos de veneno

Alta radioatividade – São os rejeitos mais perigosos, cerca de 5% do volume estocado. Consistem em pastilhas do urânio que foi queimado dentro de varetas metálicas de 3 metros de altura (veja o infográfico na página 80). Já existem 404 feixes, com 120 varetas cada um, estocados provisoriamente dentro de uma piscina junto ao reator de Angra 1. Contêm, entre outros elementos radioativos, o infernal plutônio-239, que leva 500 000 anos para se tornar inócuo.

Média radioatividade – São os filtros e as resinas que retêm impurezas radioativas no circuito de circulação de água do reator. O elemento químico mais perigoso encontrado nesses rejeitos é o césio-137, que tem meia-vida de trinta anos e leva 600 para se tornar inócuo. Corresponde a 7% do total do volume de lixo. É acondicionado em cilindros de concreto.

Baixa radioatividade – Trata-se de compostos de roupas, sapatos, ferramentas, chapas metálicas, papéis e panos de limpeza que entraram em contato com material radioativo. Esses rejeitos, também contaminados, são estocados em tonéis de aço e respondem pela grande maioria (88%) do total do volume de lixo. Oferecem pouco perigo. Parte do material pode ser reaproveitada após algum tempo.

Peças sobressalentes

Inaugurada em 1985, Angra 1 ficou marcada pelo estigma da incompetência. Já permaneceu tanto tempo desligada que ganhou o maldoso apelido de vaga-lume. Mas Angra 2 não deve parar tanto quanto sua irmã mais velha. Embora o reator e as turbinas (o hardware da usina) sejam os mesmos, sua central de instrumentação (o software) foi adquirida em 1997. É bem moderna. Sediada em uma sala repleta de monitores, botões e mostradores, que mais lembram a cabine de comando de uma nave espacial (veja fotos à esquerda e abaixo ), a central permite controlar com precisão o funcionamento da usina.

A segurança é reforçada pelo que o jargão técnico chama de “redundância quádrupla” em todo o equipamento. Isso quer dizer que existem quatro unidades de cada peça, duas em uso e duas de reserva. “O reator continua funcionando mesmo que haja algum percalço numa peça. A estepe entra em ação”, assegura o engenheiro eletricista Humberto Werdine Jr., chefe da usina. Segundo ele, o reator só deve ficar parado trinta dias por ano, o prazo normalmente previsto para que se substitua um terço de seu combustível.

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