Russos insistem que vacina Sputnik V não contém replicantes virais
Polêmica gira em torno da presença de RCAs, principal argumento da Anvisa para vetar o imunizante; agência diz ter se baseado em documento do próprio Instituto Gamaleya; entenda desdobramento do caso
Polêmica gira em torno da presença de RCAs, principal argumento da Anvisa para vetar o imunizante; agência diz ter se baseado em documento do próprio Instituto Gamaleya; entenda desdobramento do caso
As vacinas de vetor viral, como a Sputnik V e suas congêneres Covishield (a vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca) e Ad26.COVS.2 (da Johnson & Johnson) possuem um mecanismo de segurança em comum: o vetor não é replicante.
O vetor é um vírus inofensivo, que carrega instruções genéticas para ensinar o corpo humano a fabricar a proteína spike (com isso, a pessoa vacinada desenvolve imunidade ao Sars-CoV-2). Alguns genes do vetor são removidos em laboratório, para que ele fique incapaz de se reproduzir. Isso é importante porque, embora ele seja inofensivo, não é desejável que se multiplique dentro do corpo humano – se isso ocorresse, teria de ser estudado e monitorado nos testes clínicos, tornando o desenvolvimento das vacinas ainda mais complexo.
Ao barrar a importação da vacina Sputnik, a Anvisa alegou que ela contém vírus replicante (adenovírus capaz de reprodução, ou RCA). Isso supostamente acontece pelo processo de reversão, em que, durante a produção da vacina, o vetor acaba reincorporando genes deletados (explicamos mais detalhamente aqui). Diz a agência:
“Apesar dos guias internacionais estabelecerem que vírus replicantes não devem estar presentes nas vacinas, a empresa [Instituto Gamaleya, produtor da Sputnik V] definiu o limite de de 1×103 RCA por dose de 1×1011 partículas virais, o qual está consideravelmente acima dos limites de partículas em guia da agência americana FDA que trata de terapias gênicas de 1 RCA a cada 3×1010 partículas virais.”
Eis o grande problema. “Esse adenovírus replicante foi detectado em todos os lotes apresentados da vacina Sputnik para a Anvisa. Todos os laudos de controle de qualidade que foram apresentados na documentação [a] que nós tivemos acesso, mostravam a presença desse vírus replicante”, afirmou Gustavo Mendes Lima Santos, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da agência.
A Anvisa não realizou teste de RCAs. Como é a norma, a agência se baseou em documentação fornecida pelo fabricante. Mas os russos negam categoricamente que sua vacina contenha vírus replicante. “O Centro Gamaleya, que realiza um controle de qualidade rigoroso de todos os locais de produção da Sputnik V, confirmou que nenhum adenovírus competente para replicação (RCA) foi encontrado em qualquer um dos lotes de vacina Sputnik V que foram produzidos.”
Ou seja: tem-se um impasse. A Anvisa diz que recebeu um documento russo mencionando limites máximos de RCA; os russos, por sua vez, dizem que não existe RCA nenhum.
A Super pediu à Anvisa que compartilhasse o tal documento. A agência declinou fazê-lo, afirmando que ele pertence ao Instituto Gamaleya. A reportagem entrou em contato, por telefone e email, com o Russian Direct Investment Fund (RDIF), que é responsável pelo desenvolvimento da Sputnik V (o Gamaleya é subordinado a ele). Solicitamos acesso ao documento que teria sido fornecido à Anvisa e supostamente aponta a presença de RCAs na vacina – bem como explicações acerca do tal limite de vírus replicante. Se as informações forem liberadas, este texto será atualizado.
Uma leitura mais atenta do comunicado russo permite entrever uma possível explicação. “Os controles de qualidade existentes garantem que nenhum RCA possa existir na vacina Sputnik V. Antes da inspeção a equipe da Anvisa recebeu ofício do centro Gamaleya datado de 26 de março de 2021 que diz claramente: ‘Além disso, gostaríamos de informar que durante a liberação da vacina no local do Centro e no local do contrato do JBC Generium, nem um único lote contendo RCA foi registrado.'”
Os russos parecem estar falando do resultado final, com as vacinas prontas. Talvez o suposto documento do Instituto Gamaleya, aquele que segundo a Anvisa estipula um limite de vírus replicante (1×103 RCA por dose de 1×1011 partículas virais), se referisse a uma etapa anterior. Anterior no tempo (em que a Sputnik ainda estava em desenvolvimento) e/ou anterior no processo (descreva alguma etapa produtiva que antecede os estágios de purificação da vacina, por exemplo). Mas, como a Anvisa não libera esse documento, e o RDIF nega categoricamente tudo o que envolva vírus recombinante, não dá para saber.
É possível que tanto a Anvisa quanto os russos estejam dizendo a verdade – mas, crucialmente, enfocando momentos ou trechos diferentes dela.
Update 29/4: Anvisa apresenta documento russo sobre vírus replicante na Sputnik V