6% do genoma neandertal era de humanos saídos da África há 250 mil anos
Sabe-se há décadas que carregamos uma fração do DNA deles. Mas o contrário – que eles já carregavam o nosso – é uma novidade. Novidade que só é possível caso tenha havido uma migração de sapiens para a Eurásia mais antiga do que qualquer evidência arqueológica conhecida.
Faz uns 75 mil anos que o Homo sapiens – em grande parte, já indistinguível de nós do ponto de vista anatômico – saiu do continente africano e avançou rumo à Eurásia. Por lá, encontrou outras espécies muito parecidas conosco, que estão sempre no noticiário: neandertais e denisovanos.
Esses primos descendiam, em última instância, da mesma espécie que nós descendemos: o Homo erectus, um hominídeo mais antigo, menor em corpo e crânio, que saiu da África e se espalhou pela Eurásia há mais de um milhão de anos.
O erectus deu origem ao sapiens na África – e a diversas espécies similares a nós em outros rincões do mundo. Bem similares: neandertais e denisovanos eram tão parecidos conosco, geneticamente, que podíamos fazer bebês viáveis com eles. E como fizemos. Algo entre 1% e 4% do DNA de um ser humano atual pode ser neandertal, dependendo da região do mundo de onde vem o exemplar em questão.
Até aí, temos uma história redondinha sobre o passado da nossa espécie. O problema é que ainda faltam peças nesse quebra-cabeça.
Um naco misterioso e particularmente incômodo é o seguinte: é de se imaginar que pessoas de origem exclusivamente africana não tenham nenhum DNA neandertal. Afinal, seus ancestrais ficaram ali pelo continente, mesmo. Não puderam praticar o canguru perneta (rs) com outras espécies.
Não é o que se verifica na prática, porém: pesquisas recentes mostram que muitas populações africanas contemporâneas herdaram até 1,5% de seus genes desses hominídeos europeus, ainda que não haja qualquer evidência arqueológica de que suas linhagens tenham se cruzado no passado.
O que aconteceu? Um artigo científico acaba de sair do forno com uma resposta elegante. Um grupo de pesquisadores de vários países – EUA, Botswana, Etiópia, Camarões e China – liderados pela Universidade da Pensilvânia, descobriu que os neandertais, antes de encontrarem os sapiens pela primeira vez, já carregavam 6% de genes sapiens em seu DNA.
O que significa que o suposto encontro pioneiro, na verdade, não foi o primeiro. Em algum ponto do passado ainda mais distante – uns 250 mil anos atrás, bem antes da marca de 75 mil anos que é aceita como consenso hoje –, humanos e neandertais precisam ter feito uma quantidade não negligível de bebês.
Então, esse grupo de sapiens inicial desapareceu ou se diluiu, deixando para trás uma população predominantemente neandertal com um chorinho de DNA nosso. Aqueles 6%. Centenas de milhares de anos depois, sapiens e neandertais encontraram de novo – desta vez, o encontro bem-documentado que já conhecemos. E aí foram os neandertais que desapareceram.
O lado legal dessa hipótese é que ela explica a peça faltante no quebra-cabeça. Os tais 1% de genes neandertais que os africanos de hoje em dia carregam podem ser uma ilusão. Sempre achamos que eram genes neandertais herdados por humanos – mas esse estudo diz que são o contrário: genes humanos herdados pelos neandertais. Eles já estavam nas primeiras populações africanas muito antes de chegarem à Europa com a primeira onda migratória.
O problema dessa explicação, é claro, é que ela nos obriga a considerar que um grupo de humanos muito antigo saiu da África muito antes do que qualquer evidência arqueológica permite concluir.
“Nós encontramos este sinal de cruzamento antigo, em que genes fluíram de humanos para neandertais”, disse em uma declaração à imprensa o pesquisador Alexander Platt, pesquisador da Escola de Medicina Perelman e um dos autores do estudo. “Esse grupo saiu da África há algo entre 250 mil e 270 mil anos atrás, e era muito mais parecido conosco que com os neandertais.”
Essas conclusões só foram possíveis graças às parcerias com universidades de vários países africanos e uma investigação detida de 180 genomas africanos – que normalmente é negligenciada ou sub-representada em bancos de DNA humano por estar distante dos centros de pesquisa mais endinheirados no eixo Europa-EUA.
É uma conclusão ousada, mas o estudo está caprichado e foi bem-recebido pela comunidade científica. “Não há vieses óbvios”, diz Nelson Fagundes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que trabalha com genética de populações humanas. “A impressão que eu tenho é que de fato o modelo deles consegue explicar algumas observações intrigantes, como a presença de algum sinal neandertal na África subsaariana.”
“O trabalho é bom, e as hipóteses plausíveis”, diz a geneticista Tábita Hünemeier, especialista em evolução humana da USP. “Mas acho que precisamos de mais dados de genomas antigos e mais modelos demográficos para estarmos mais seguros. A história humana se complicou bastante com esse artigo.”
O próximo passo é realizar pesquisas para eliminar outras hipóteses igualmente possíveis. Hünemeier explica que “as análises parecem robustas, mas não explicam porque os europeus não têm essa ancestralidade antiga humana, ou como se poderia diferenciar com segurança humanos de 250 mil e 100 mil anos, pois não temos humanos tão antigos sequenciados.” Outro problema é “assegurar que esta ancestralidade comum não é do Homo erectus, que deu origem tanto a humanos, na África, quanto a neandertais, na Europa”.