A evolução da bondade
Biólogos discutem até que ponto existe benevolência entre os seres vivos
Muitos biólogos acreditam que somos todos seres egoístas, que buscam apenas espalhar os próprios genes e perpetuar a linhagem a que pertencemos – até em nossos atos mais benevolentes. Mas será mesmo que não existe altruísmo? Novas pesquisas mostram que a evolução pode se dar em termos bem mais caridosos do que costumamos imaginar.
É uma ironia amarga que ainda seja necessário promover campanhas contra a fome. Se você reparar bem, os hábitos sociais da espécie humana são de uma generosidade proverbial no que diz respeito à comida. Em virtualmente todas as culturas, grandes festas são acompanhadas de comilança. Estamos sempre oferecendo comida aos outros, seja na forma de um casual chiclete ou de uma recepção formal. E quem já não entrou numa daquelas ridículas disputas para pagar a conta no restaurante? O problema é saber se essas práticas sociais realmente se qualificam como exemplos de generosidade. Em inglês, um ditado muito corrente no mundo dos negócios diz que there’s no free lunch – traduzindo, “não existe almoço grátis”. Se um conhecido que você não vê há anos resolve convidá-lo para um churrasco, a desconfiança é imediata – será que ele vai pedir dinheiro emprestado?
Existe ou não almoço grátis? Esse é um dos grandes debates da biologia contemporânea. O gesto desinteressado do verdadeiro altruísmo parece ser uma impossibilidade evolutiva. Um comportamento só pode ser qualificado de altruísta se ele traz benefícios para os outros e custos para quem o pratica. Ou seja, o altruísta está diminuindo sua aptidão para favorecer a dos outros. Suas chances de sobreviver e de reproduzir são menores, enquanto todos os demais – inclusive os egoístas – levam vantagem. A longo prazo, o altruísta deveria ser levado à extinção, deixando o campinho livre para que o egoísmo grasse como erva daninha.
A luta pela sobrevivência parece favorecer mais os George Soros do que as madres Teresas. E no entanto ainda existem altruístas entre nós (ou não?). Como pode ter evoluído uma característica que parece antievolutiva? Há várias explicações. Antes de voltarmos ao almoço, é preciso remontar à história dessa discussão na biologia.
Egoísmo molecular
Para o biólogo Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard, Estados Unidos, a evolução do altruísmo é o problema teórico central da sociobiologia, ciência que busca entender em bases biológicas o comportamento social de animais. A questão já intrigava o próprio naturalista inglês Charles Darwin, que em 1871, na obra A Origem do Homem, utilizou a seleção de grupo para explicar a evolução da moralidade humana. O comportamento moral, ensina Darwin, não traz vantagem para o indivíduo, que lucraria mais desobedecendo as regras para agir de acordo com sua vontade própria. Mas uma tribo regida por valores que enfatizem “o espírito de patriotismo, fidelidade, obediência, coragem e solidariedade” certamente será mais coesa e organizada e assim terá maiores chances de vitória na disputa por recursos naturais ou territórios com tribos menos virtuosas. A seleção natural, portanto, agiria não somente sobre indivíduos, mas também sobre grupos competidores.
Darwin, no entanto, colocava mais ênfase na seleção individual, na luta de cada um contra todos, e não desenvolveu plenamente o conceito de seleção de grupo. Na primeira metade do século 20, os cientistas usavam os diferentes níveis de seleção sem muito rigor. Recorriam ao grupo ou ao indivíduo conforme a idiossincrasia ou a conveniência ditassem. A seleção de grupo ganhou versões esquisitas. Acreditava-se até que os pássaros regulariam o número de ovos para evitar a explosão populacional, garantindo assim que todos tivessem seu quinhão de recursos naturais. A algazarra das aves em seus ninhos seria uma prova da natureza conscienciosa dessas criaturas: cantando e ouvindo suas parceiras cantar, elas conseguiriam aferir a densidade populacional da espécie. Ninguém ainda provou que as aves são capazes de conduzir essa curiosa forma de censo. Alguns ornitólogos sugerem que os pássaros na verdade diminuem o número de ovos quando há pouca comida.
Vale lembrar que Darwin montou a teoria da seleção natural sem sequer desconfiar da existência dos genes. Na primeira metade do século passado, genética e evolução foram combinadas no que os biólogos chamam de teoria sintética. E, a partir dos anos 60, uma nova revolução científica deu a primazia absoluta ao gene na luta pela sobrevivência. Essas pequenas seções do DNA são as unidades replicadoras básicas. Graças à sua habilidade ímpar de produzir cópias de si mesmos, os genes que você carrega em cada uma de suas células já estiveram presentes nos seus antepassados e serão transmitidos a seus descendentes. Você, leitor, é só um recipiente transitório. Portanto, é no interesse do gene – e não do indivíduo e muito menos do grupo – que a seleção natural opera. Os nomes fundamentais dessa corrente são os biólogos George C. Williams, da Universidade Estadual de Nova York, Estados Unidos, e William Hamilton, falecido em 2000, considerado um dos maiores teóricos da evolução de todos os tempos.
Hamilton desenvolveu o conceito de seleção de parentesco. Quando você come na casa de um parente, pode ter certeza de que esse não é um free lunch: ele já está pago em moeda genética. Nossa generosidade em relação aos parentes começa no DNA. Segundo a teoria de Hamilton, o sacrifício por um parente compensa na proporção da semelhança genética com ele. Assim, a aptidão reprodutiva de um indivíduo não se mede apenas pelo número de filhos que ele consegue ter, mas também inclui parentes próximos que carregam frações de sua carga genética. Você compartilha, por exemplo, metade dos genes com seu irmão ou irmã (na verdade, todos nós compartilhamos cerca de 90% do genoma, mas estamos considerando só os genes que variam na espécie humana). Portanto, do ponto de vista evolutivo, vale a pena se sacrificar por um irmão se o sacrifício custar a você no máximo a metade do benefício que traz a ele.
A melhor síntese da teoria talvez esteja em um gracejo do geneticista britânico J.B.S. Haldane, antecessor de Hamilton. Perguntado se daria a vida por um irmão, Haldane respondeu: “Não, mas daria por dois irmãos ou oito primos”.
Ainda mais feliz na síntese foi outro biólogo inglês – Richard Dawkins, da Universidade de Oxford, Reino Unido. Em 1976, o título do seu livro O Gene Egoísta resumiu tudo o que a biologia mais recente estava propondo. Na trilha de Williams e Hamilton, Dawkins enfatiza o papel fundamental da genética na seleção natural. Para ele, nós somos apenas “máquinas de sobrevivência”, robôs a serviço dos genes – e “nós” inclui todos os seres vivos, da bactéria ao físico quântico. A imagem do robô atraiu muita crítica. Nas edições mais recentes do livro, uma nota de Dawkins esclarece que não somos controlados pelo nosso genoma. Sempre que usamos um método contraceptivo, por exemplo, contrariamos o desígnio único do gene: fazer cópias de si mesmo.
A despeito (ou por causa) de toda polêmica, os princípios expostos em O Gene Egoísta tornaram-se, na expressão do próprio Dawkins, “ortodoxia de manual”. Ou pelo menos é assim entre os cientistas, já que o senso comum conservou idéias anteriores a Williams e Hamilton. Pergunte a um amigo – que não seja biólogo, bem entendido – como funciona a seleção natural. Provavelmente, lá pelas tantas ele vai falar em “perpetuação da espécie”. Dawkins ensina que não é isso que está realmente em causa. Exemplo cruel mas esclarecedor: quando um leão junta-se a um novo grupo de fêmeas, ele muitas vezes mata os filhotes que elas tiveram com outros machos. Ele não está minimamente interessado em perpetuar a espécie. Quer apenas que as leoas estejam devotadas exclusivamente aos seus filhotes, herdeiros de sua preciosa carga genética.
Carne Sexy
A teoria do gene egoísta pode parecer uma forma desencantada de ver o mundo vivo. Ela contradiz não só as noções mais vulgares (e simpáticas) de evolução que circulam por aí. Desafia também aquele papo new age de viver em harmonia com a natureza, de entrar em sintonia com a mãe terra. Pois é: nada disso tem sustentação na ciência de Williams, Hamilton e Dawkins. A natureza não é harmônica e guarda tantos ou mais exemplos de egoísmo quanto de altruísmo. Tome os pingüins, por exemplo. Do alto das geleiras onde se agrupam, é difícil discernir se há predadores no mar abaixo. Se fossem altruístas, cada um se ofereceria para pular primeiro e verificar se a barra está limpa. Não é o que acontece: geralmente, um pingüim empurra o outro e vê se a vítima não é atacada.
A seleção de parentesco tem sido utilizada para explicar a extraordinária organização que vemos nos chamados insetos sociais. Se a cooperação em um formigueiro ou em uma colméia parece impecável, é porque geralmente todos são filhos da mesma rainha, o que os torna geneticamente semelhantes. Quando uma abelha operária resolve colocar ovos – o que raramente ocorre –, suas colegas os destroem, pois o filho de uma “irmã” será geneticamente mais distante delas do que os filhos da rainha-mãe. No formigueiro, as coisas são mais simples: todas as operárias são estéreis. “Em muitos sentidos, nós, humanos, somos menos cooperativos do que os insetos sociais”, diz o biólogo Robert Trivers, da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, Estados Unidos. Mas, complementa ele, é preciso entender que são dois sistemas muito distintos: “Entre as formigas, há parentesco próximo e, em geral, muito pouco conflito interno.
Entre nós, há um sistema de altruísmo recíproco com um meio de troca – o dinheiro – que uniu o mundo inteiro em uma economia interligada, mas com muito mais conflito interno e muito menos altruísmo”.
Em 1971, Trivers formulou, com o incentivo de Hamilton, a teoria do altruísmo recíproco, que é, de forma simplificada, a idéia de que uma mão lava a outra. Para explicar esses modelos, os biólogos utilizam formulações matemáticas, valendo-se especialmente da teoria dos jogos, que elabora equações capazes de explicar o mecanismo de várias formas de disputa social (para saber mais, leia a matéria “Tudo está em jogo”, na edição de abril de 2002).
Com a reciprocidade em mente, podemos voltar ao hipotético almoço do primeiro parágrafo. Afinal, por que somos aparentemente tão generosos com comida? A sociobiologia encontra as raízes desse comportamento nos primórdios do Homo sapiens, quando ainda vivíamos em tribos de caçadores-coletores. Claro que não podemos saber como era a organização social do homem primitivo, mas algumas pistas podem ser buscadas entre os caçadores-coletores do mundo moderno. Estudos antropológicos têm revelado características comuns mesmo em culturas geograficamente afastadas, como os ache do Paraguai e os !kung do deserto de Kalahari, no sul da África. Há uma divisão sexual do trabalho: as mulheres coletam raízes e frutos; os homens saem à caça. Os vegetais obtidos pelas mulheres são geralmente consumidos somente pela família; a carne trazida pelos homens é dividida com a tribo de forma igualitária.
É a reciprocidade em prática: uma vez que o sucesso da caçada depende não somente de habilidade e esforço, mas também de sorte, é provável que mesmo um bom caçador muitas vezes termine o dia de mãos vazias. Por isso, é essencial que ele possa contar com uma porção da caça dos outros. Influi aqui também o fato de a carne ser um bem perecível. O caçador não seria capaz de comer sozinho um dos mamutes que ainda andavam por aí quando surgiu o ser humano.
Mas o que impede o Macunaíma da tribo de vadiar enquanto seus companheiros arriscam-se na caçada? E por que o bom caçador deveria dividir seu produto de forma tão equânime? Foi ele quem caçou – por que não ficaria com pedaço maior? Nesse ponto entra o sistema de recompensas e punições que reforça o altruísmo recíproco. Recusar-se a dividir carne seria quebrar a etiqueta e expor-se à vergonha pública. E o bom caçador também tem suas vantagens: é considerado o homem mais sexy da tribo. Consegue parceiras com mais facilidade, seja para o casamento, seja para casos extraconjugais.
Ecossistemas Projetados
Os modelos de seleção de parentesco e altruísmo recíproco, como se viu, abrem espaço para algumas formas de altruísmo. Mas quem faz o bem somente aos seus não é generoso – é nepotista. E podemos qualificar de altruísmo aquilo que fazemos com vistas a uma retribuição futura? Fica a sensação de que, sob a pele de cordeiro do altruísmo, vamos sempre encontrar um lobo egoísta. Aliás, é exatamente o que afirmou em 1974 o biólogo americano Michael Ghiselin: “Arranhe um altruísta, e você verá um egoísta sangrar”. A biologia, amparada pela teoria dos jogos, parece identificar um fundo de interesse em qualquer gesto desprendido. Peter Singer, filósofo norte-americano da Universidade de Princeton, conhecido por sua defesa dos direitos dos animais, certa vez argumentou que os bancos de sangue seriam uma prova de altruísmo. O sangue estocado serve igualmente a doadores e não-doadores; portanto, ninguém doa sangue com vistas a um benefício no futuro.
O biólogo Richard Alexander, da Universidade de Michigan, Estados Unidos, retrucou lembrando que olhamos com respeito o sujeito que volta de um banco de sangue com algodão e esparadrapo no braço. A retribuição vem na forma do reconhecimento social.
Mais recentemente, porém, alguns cientistas voltaram a admitir a seleção de grupo. É o que diz o biólogo David Sloan Wilson, da Universidade Estadual de Nova York: “Não há dúvida de que o preconceito contra a seleção de grupo está diminuindo, mas em um ritmo terrivelmente lento e baseado mais em fatores sociológicos do que intelectuais. A maior parte dos manuais ainda a trata como heresia, fundamentando-se em obras escritas antes de o estudante universitário médio ter nascido”. A seleção de grupo foi, para ele, uma força poderosa (mas não única) na evolução da espécie humana.
Sloan Wilson trabalhou em parceira com o filósofo Elliott Sober, da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, para compor Unto Others (“Para os outros”, sem tradução em português), uma defesa da seleção em “múltiplos níveis”. O livro recorda que o próprio William Hamilton, tido como o papa da seleção individual, admitiu a seleção de grupo em um trabalho de 1975. A proposta básica de Unto Others é a de que seleção individual e de grupo podem coexistir, ainda que trabalhem em sentidos opostos – daí a expressão “seleção em múltiplos níveis”. Já vimos que o altruísta, sendo o único a pagar a conta da bondade, sacrifica a própria aptidão reprodutiva em prol dos demais e portanto tende a desaparecer. Sloan Wilson e Sober demonstram matematicamente que isso é verdade apenas para a seleção individual. Uma proporção maior de altruístas pode trazer vantagens adaptativas para o grupo, que assim terá melhores chances na competição com rivais.
A seleção de grupo já foi utilizada com sucesso nas granjas. Descobriu-se que os melhores resultados são obtidos selecionando para reprodução não as galinhas que individualmente põem mais ovos, mas os grupos de galinhas mais produtivos. Mais recentemente, Wilson está utilizando esses princípios para pesquisar ecossistemas microbiais em conjunto com seu aluno William Swenson. Eles criam comunidades com bilhões de micróbios de diferentes espécies. Depois, selecionam aqueles que apresentam propriedades como, por exemplo, a capacidade de decompor lixo tóxico. Os resultados, diz Wilson, têm sido positivos e abrem a possibilidade de, no futuro, projetarmos ecossistemas inteiros. “Os experimentos levam a seleção de grupo um passo adiante, pois lidam com ecossistemas de múltiplas espécies”, diz Wilson.
“Sem dúvida, as abordagens do gene egoísta e da seleção em múltiplos níveis são equivalentes. As duas estão corretas”, diz o físico e biólogo Rob Boyd, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos. As divergências parecem dizer respeito não aos fatos, mas à interpretação. Um exemplo é o caso da divisão da carne em tribos de caçadores-coletores. Em Unto Others, Sober e Sloan Wilson partem dos mesmos dados etnográficos, mas reformulam as perguntas. Afinal, por que surgiria um sistema de punições e retribuições para encorajar a generosidade do caçador? Os dois autores dizem que, na medida em que os atos de punir e recompensar também envolvem algum custo – embora menor do que o esforço despendido em uma caçada –, eles também poderiam ser considerados altruístas.
Para Boyd, a evolução cultural pode ser tão importante quanto a genética na evolução do altruísmo. De certo modo, ele as considera como duas forças inextrincáveis no desenvolvimento social de nossa espécie – afinal, a sofisticação lingüística que é a base da cultura humana não seria possível se a capacidade de aprender uma língua não estivesse codificada em nosso genoma. De outra parte, muitos dos mecanismos emocionais que dão base a nosso sistema moral – a culpa ou a vergonha, por exemplo – podem ter sido depurados pela seleção natural ao longo de nossa evolução como primatas sociais. Na medida em que nos agrupamos em tribos maiores, com uma divisão do trabalho mais complexa e especializada, a necessidade de cooperação extrapolou os limites da família e nos obrigou a cooperar com estranhos. Essas novas exigências sociais teriam exercido sua pressão sobre a seleção entre grupos humanos, favorecendo o surgimento da moral. “A cultura está nos genes, mas os genes também dependem da cultura”, resume Boyd.
Para saber mais
Unto Others, Elliot Sober e David Sloan Wilson, Harvard University Press, 1998
As Origens da Virtude, Matt Ridley, Record, 2000
O Gene Egoísta, Richard Dawkins, Itatiaia, 2001