A polêmica do glúten
De uns tempos para cá, ele virou o vilão da alimentação. E pode estar por trás da epidemia de obesidade no mundo. Mas o que é o glúten, afinal? E devemos mesmo cortá-lo da dieta?
Segundo um estudo do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a incidência de alergias alimentares no mundo cresceu nada menos que 50% entre 1997 e 2013. Entre as crianças, a situação é ainda pior – na China os casos mais que dobraram, na Europa subiram 700% e, no Brasil, 2 milhões têm algum tipo de alergia à comida. As alergias sempre estiveram ligadas a uma predisposição genética. Mas como explicar a explosão de casos nos últimos anos? Nosso DNA não mudou muito nesse período. Mas a comida que comemos, sim. Segundo o Centro Internacional de Pesquisas para o Desenvolvimento (IDRC), com sede no Canadá, metade de todas as calorias consumidas no planeta vem de apenas três alimentos: arroz, milho e trigo. O trigo é o mais cultivado deles, e está em muitas comidas que as pessoas consideram especialmente gostosas – como pão, cereais matinais, pizza, massas, cerveja. Ele está presente até onde nem o esperamos, como na massa de tomate e na batata frita congelada. Resultado: nunca comemos tanto trigo quanto hoje.
Mas ele virou o novo vilão da alimentação. Tudo por causa de uma proteína que traz dentro de si: o glúten. Ela também está presente em outros alimentos, como a cevada e o centeio, mas a consumimos principalmente por meio do trigo. Desde a década de 1950, o número de pessoas com alergia a glúten quadruplicou no mundo. E o número de adeptos do movimento gluten-free não para de crescer. Só nos EUA, 28,5% das pessoas dizem que querem reduzir ou eliminar essa substância da dieta, e o mercado de comida sem glúten já movimenta mais de US$ 10 bilhões por ano. Desde 2012, foram 1.500 novos produtos lançados nos EUA.
Isso é uma moda? Afinal, devemos ou não comer glúten? A resposta não é tão simples quanto a pergunta. Primeiro, precisamos entender o que ele é.
A ÚLTIMA CEIA DE OTZI
Em uma geleira perto do monte Similaun, na fronteira da Áustria com a Itália, Otzi caçava com seus companheiros quando se deparou com um grupo rival. Ferido por uma flecha, que atingiu uma artéria no ombro, Otzi morreu bem rápido. Seu corpo só seria encontrado mais de 5 mil anos depois, por um casal de moradores locais que o avistou parcialmente coberto por gelo, em 1991. No intestino daquele que ficou conhecido como o Homem do Gelo do Tirol – homenagem à região em que foi descoberto, Tirol do Sul, na Itália -, foram encontrados restos de trigo, consumido na forma de pão ázimo. O caso de Otzi revela que o grão é consumido há milhares de anos. Até antes dele, na verdade: há evidências de que a humanidade já comia trigo no ano 7500 a.C. Até a Bíblia fala no “pão nosso de cada dia”. No Deuteronômio, Moisés descreve a “Terra Prometida” como um lugar mágico, farto em trigo, cevada e vinhas. O trigo foi essencial para o avanço da civilização. Mas por que, então, agora ele virou o grande malfeitor da dieta moderna? Supostamente, por dois motivos: porque a planta mudou, não é mais a mesma, e porque estamos comendo trigo demais.
Para o neurologista americano David Perlmutter, autor do livro A Dieta da Mente, o problema está nas modificações feitas por agricultores. Na segunda metade do século 20, eles passaram a cruzar vários tipos de trigo para produzir variedades mais fortes e aumentar a produtividade na lavoura. Com isso, a planta sofreu várias modificações.
A mais visível é a estatura. As variedades antigas atingiam mais de um metro. Mas os agricultores passaram a buscar tipos menores, com aproximadamente 40 centímetros, o que facilita a colheita mecanizada. O ciclo de vida da planta também foi modificado. Ele é cada vez mais curto, pois isso permite um melhor aproveitamento da terra (que é liberada mais depressa). Além disso, nas variedades antigas, havia perdas quando os grãos se desprendiam da espiga e caíam no chão. No trigo de hoje, os grãos não se soltam com tanta facilidade.
De fato, as mais de 25 mil variedades de trigo existentes atualmente diferem – e muito – das linhagens selvagens, como o emmer e o eikorn. Esse trigo primitivo não continha glúten, mas era pouco produtivo e ruim para fazer pães. Foi graças a um cruzamento natural com outra gramínea, a Aegilops tauchii, que o trigo cultivado atualmente ganhou a presença de glúten.
E isso foi uma coisa boa, tanto que uma das características mais valorizadas no trigo é a chamada “força de glúten”, que ajuda muito na produção de pães. “É ela que deixa o pão fofo, alto e bonito. Se não tiver uma força de glúten mínima, o pão não cresce”, explica o pesquisador Eduardo Caeirão, que trabalha com melhoramento genético na Embrapa Trigo.
As modificações no trigo, e o consequente aumento na produtividade, serviram para abastecer a indústria de alimentos, que passou a utilizá-lo em inúmeros produtos. O trigo é barato, gostoso e útil. É muito usado como espessante (para dar consistência aos alimentos), e o glúten ajuda a estabilizar os demais ingredientes.
Mas, para alguns médicos, esse processo de desenvolvimento do trigo pode ter ido longe demais, e estar causando efeitos ruins. “O trigo foi esticado, costurado, cortado e recosturado, para transformar-se em algo totalmente singular, quase irreconhecível quando comparado com o original, e mesmo assim atendendo pelo mesmo nome: trigo”, diz o cardiologista americano William Davis, cujo livro Barriga de Trigo ficou 50 semanas entre os mais vendidos nos EUA.
Essa teoria, de que o melhoramento genético do trigo possa ter criado um monstro, é apenas uma teoria – e bastante questionada pelos pesquisadores da área. Isso porque os cruzamentos genéticos ocorrem há milênios e, em alguns casos, acontecem de forma natural, sem a ação do homem. Não há comprovação científica de que esse processo tenha modificado a forma como o trigo é digerido. Mas há quem acredite que isso possa ter acontecido. “Não há um só sistema no organismo que não seja afetado pelo trigo”, ataca Davis. “Da fadiga à artrite, do desconforto gastrointestinal ao ganho de peso, todos [esses males] têm como origem o alimento, de aparência inocente, que cada um de nós come todas as manhãs”, acredita. Por essa tese, o trigo pode estar nos fazendo mal – e ser o grande responsável pela epidemia de obesidade no mundo (que não é apenas uma questão estética, pois está ligada a uma série de doenças graves, como problemas cardíacos).
O TRIGO NO CÉREBRO
Primeiro, vem aquela vontade incontrolável. A pessoa fica ansiosa, agitada, com uma verdadeira fissura de consumir o produto. Quando ela finalmente consome, uma substância cai na sua corrente sanguínea e vai até o cérebro, onde se encaixa nos receptores opioides – que produzem uma imediata sensação de prazer. Poderíamos estar falando da heroína, uma das drogas mais potentes que existem. Mas estamos falando da gliadina, uma das duas proteínas que formam o glúten (a outra se chama glutenina). Ela age sobre os mesmos receptores cerebrais atingidos pela heroína. Da mesma forma que usar uma droga gera a vontade de voltar a usá-la, ingerir trigo pode dar vontade de comer mais.
Esse mecanismo ainda não foi comprovado por nenhum estudo. Mas uma pesquisa recente sugere que, sim, poder haver uma relação direta entre glúten e ganho de peso. Em 2012, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) testaram dois grupos de ratinhos. Eles tinham as mesmas características genéticas, a mesma idade e receberam alimentação idêntica. Foram tratados da mesma forma, exceto por uma coisa: os cientistas adicionaram glúten à ração de um dos grupos de ratinhos.
Os sintomas mais típicos da doença celíaca (que, é bom lembrar, só pode ser diagnosticada por um médico) incluem diarreia, desconforto abdominal, vômitos, irritabilidade, falta de apetite e anemia. A longo prazo, a pessoa pode apresentar deficiência de ferro, osteoporose, emagrecimento, dermatites, redução dos níveis de cálcio, alterações hepáticas e prisão de ventre. Algumas pesquisas, no entanto, sugerem que as consequências podem ir muito além do intestino. Um exemplo é a dermatite herpetiforme, uma doença crônica que causa sensação de queimadura e coceira na pele. Descoberta em estudos realizados nos anos 60, ela foi a primeira evidência de que a doença celíaca poderia ter efeitos que vão além do sistema digestivo.
Revelações como essa desencadearam uma série de estudos similares, e a hipótese de que os danos poderiam chegar ao cérebro logo foi levantada. Análises feitas em pacientes com disfunções neurológicas mostraram a prevalência de doença celíaca em um número espantoso de casos: de 10% a 22,5% dos doentes mentais. Inicialmente, acreditava-se que os danos cerebrais poderiam ser causados pela deficiência de vitaminas, em decorrência de uma má absorção de nutrientes. Mas testes posteriores descobriram processos inflamatórios que afetavam o sistema nervoso central – e que poderiam ser desencadeados pela alergia ao glúten.
Um estudo da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, encontrou manifestações neurológicas de sensibilidade ao glúten. Entre elas, a chamada ataxia cerebral, que resulta na perda progressiva da coordenação motora e está associada a uma degeneração no cérebro. Durante 13 anos, os cientistas acompanharam 500 pacientes que sofriam dessa doença. Um em cada cinco apresentava sensibilidade ao glúten. Entre os casos mais graves, a porcentagem era ainda maior: 45%. Pacientes com esquizofrenia e autismo também podem ser afetados por proteínas como o glúten e a caseína (presente no leite). Mas isso só acontece quando há outros fatores associados, como deficiências enzimáticas ou alterações no intestino. Nesses casos, o glúten pode chegar ao cérebro e interferir na comunicação entre os neurônios. Por isso, retirá-lo da dieta de esquizofrênicos e autistas pode melhorar a coordenação motora, a comunicação e o uso da linguagem – além de diminuir o déficit de atenção. O mesmo ocorre com a eliminação do leite e de seus derivados. “Não é a cura do autismo pela dieta. O que acontece é uma melhora do quadro clínico e, depois, a estabilidade desse quadro”, afirma a nutricionista Nádia Isaac da Silva, autora de uma pesquisa sobre a relação entre hábito alimentar e o autismo. O ganho, ressalta, é gradual e pode levar meses até que a situação apresente alguma melhora.
E SE EU QUISER TENTAR?
Não há grandes prejuízos em excluir o glúten da dieta, segundo o gastroenterologista Flávio Steinwurz. “É possível até que esse hábito melhore a qualidade da alimentação, uma vez que o indivíduo pode substituí-lo por opções saudáveis, como frutas e legumes”, afirma. De toda forma, é melhor ter uma dieta balanceada do que cortar apenas um ingrediente e esperar milagres. “Grande parte dos casos de obesidade se deve a uma alimentação desequilibrada e à falta de atividade física”, diz a nutricionista Fabíola. “Antes de pensar em qualquer restrição mais drástica, várias mudanças mais básicas devem ser realizadas. A retirada do glúten pode vir a ser um tratamento auxiliar”, completa.
Há quem acredite que a culpa pela explosão nas alergias alimentares nem está na comida em si. O que pode estar nos deixando doentes é, acredite, a higiene – o excesso dela. Quem nunca ouviu um pai ou avô dizendo que criança tem mesmo é que se sujar? O corpo humano evoluiu para sobreviver em ambientes imundos, lotados de microrganismos causadores de doenças (na Idade Média, as cidades europeias tinham fossas a céu aberto). Tanto que, dentro do seu corpo, há cerca de dez vezes mais células “invasoras”, vírus e bactérias de todos os tipos, do que células humanas. A melhoria nas condições sanitárias e a invenção dos antibióticos, no século 20, salvaram inúmeras vidas. Mas também podem ter deixado nosso sistema imunológico ocioso, sem muito o que fazer – e pronto para atacar coisas que não são inimigas, como os alimentos. Essa é a chamada “hipótese da higiene”, segundo a qual a alergia estaria crescendo porque as crianças de hoje são muito limpas. Segundo um estudo da Universidade de Florença, a menor exposição a micróbios nos primeiros anos de vida pode ser a causa do aumento de alergias alimentares.
Ironicamente, reduzir a exposição ao glúten pode aumentar seus efeitos ruins, principalmente em crianças. Na década de 1980, ele virou vilão da dieta infantil na Suécia. Entre 1984 e 1996, os médicos do país recomendaram que as mães retardassem a exposição dos bebês a papinhas que contivessem a proteína. O resultado foi uma explosão de doença celíaca, que aumentou 300% no período. O organismo das crianças passou a rejeitar o glúten, porque não tinha sido exposto a ele quando estava fabricando os primeiros anticorpos. Hoje, os médicos suecos mudaram de opinião, e recomendam que bebês ingiram pequenas quantidades de alimentos com glúten já durante o período de amamentação (a partir dos 5 meses de idade).
Ainda há muito a ser descoberto sobre a ação do glúten no corpo humano. Mas tudo indica que ele não é totalmente inocente – nem o terrível vilão que se imagina. Acreditar que uma única substância possa estar na raiz de todos os problemas alimentares modernos pode ser uma aposta perigosa. Até porque você não se alimenta de um único tipo de comida. Além de pouco saudável, seria bem enjoativo.
O glúten da discórdia
Entenda os pontos-chave da discussão
Os críticos defendem que…
O TRIGO MUDOU
No livro Barriga de Trigo, o cardiologista William Davis afirma que o desenvolvimento da agricultura originou novos tipos de trigo – que podem causar obesidade e diabetes.
E PASOU A FAZER MAL
O neurologista David Perlmutter, autor de A Dieta da Mente, diz que o consumo de glúten pode levar a problemas como demência, déficit de atenção, enxaquecas e até depressão.
Os céticos dizem que…
NÃO HÁ PROBLEMA
O glúten em si não faz mal. Para Flávio Steinwurz, do Hospital Albert Einstein, o problema é que ele está presente em alimentos pouco saudáveis, como pizzas e hambúrgueres.
A NÃO SER EM CASOS RAROS
O cérebro pode ser afetado por proteínas como glúten. Mas, segundo a nutricionista Nádia da Silva, da USP, só em condições muito específicas, como em autistas.
O glúten ajuda muito na fabricação do pão. Tanto que a qualidade do trigo é medida pela quantidade dele. mas, para algumas pessoas, isso pode ser um verdadeiro ninho de vespas.
Como saber se você tem alergia a glúten
Sinais de que ele pode estar fazendo mal
Sensação de barriga inchada.
Diarreia ou prisão de ventre.
Persistência dos sintomas, com dias consecutivos de mal-estar e dores no abdômen, principalmente após refeições.
Anemia. A doença celíaca diminui a capacidade de absorção dos nutrientes. Por isso, pode provocar anemia.
Até alimentos que não deveriam conter trigo, como o molho de tomate, têm pequenas quantidades dele – e de glúten.
Alternativas ao glúten
Opções de alimentos que não contêm a proteína
Rico em glúten – Granola e cereais diversos
Alternativa – Flocos de milho
Rico em glúten – Pães
Alternativa – Tapioca ou pães feitos sem trigo, como pão de batata ou pão de linhaça
Rico em glúten – Sopas e molhos prontos
Alternativa – Sopas e molhos feitos em casa, sem farinha de trigo
Rico em glúten – Macarrão
Alternativa – Macarrão de quinoa ou de arroz
Rico em glúten – Pizza
Alternativa – Existem pizzas especiais feitas com farinha de arroz, milho, linhaça ou soja
Rico em glúten – Bolos e doces
Alternativa – Bolos e doces feitos com farinha de arroz, polvilho ou goma xantana
A cerveja é duplamente atraente porque dois de seus componentes, álcool e glúten, interferem com os receptores opiáceos – estruturas que existem em 15 regiões do cérebro e produzem relaxamento e prazer.
Leite
A intolerância à lactose ocorre em pessoas cujo intestino não produz as enzimas que fazem a digestão dos açúcares do leite. Pode ser detonada por reações alérgicas ao glúten (que danificam o intestino). Os sintomas são desconforto gastrointestinal. Cerca de 30% dos americanos, e até 90% dos africanos e asiáticos, têm o problema em algum grau.
Amendoim
Ele parece inocente – mas, para algumas pessoas, pode ser bem perigoso. Só nos EUA, cerca de cem pessoas morrem a cada ano de reações ao amendoim. Esse tipo de alergia vem crescendo bastante, e afeta 1,4% da população (contra 0,4% em 1997). Quando a pessoa alérgica a esse alimento entra em contato com ele, sua glote incha, se fecha, e a vítima pode morrer por asfixia.
Álcool
Para quem sofre de asian flush (algo como “ruborescimento asiático”), como a síndrome é conhecida, um prosaico chopinho no final do expediente pode desencadear sintomas como dores de cabeça, náuseas e um aumento da pressão arterial – mais ou menos como ter uma ressaca misturada com taquicardia. O problema acontece devido à escassez de uma enzima do fígado chamada ALDH2, e é mais comum em pessoas de origem asiática.
Não adianta cortar o glúten da dieta e continuar abusando de alimentos muito calóricos. Como os bolos: que contêm até 30% de gordura.