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AmazonFACE: a “máquina do tempo” que levará a Amazônia para 2060

Conheça o experimento ambicioso que fará três nacos de floresta avançarem 35 anos – quando a concentração de CO2 será 50% maior do que hoje.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
16 abr 2024, 10h00

texto: Bruno Vaiano | design: Luana Pillman 

Há uma máquina do tempo em construção na Amazônia, 100 km ao norte de Manaus. Essa engenhoca vai recortar três retalhos de floresta e levá-los para o ano não tão longínquo de 2060, quando a concentração de dióxido de carbono (CO2 ) na atmosfera terrestre estará 50% maior do que hoje, por culpa da poluição humana.

Para avançar esses 35 anos no calendário, os cientistas vão aumentar artificialmente a concentração do dióxido no ar longo de dez anos. O objetivo é descobrir como a floresta reage quando é exposta a uma dose reforçada desse gás de efeito estufa. E assim, entender como será o futuro do ecossistema mais diverso do mundo: uma em cada dez espécies que existem no planeta vive lá. 

O AmazonFACE é um experimento inédito no Brasil, resultado de uma parceria entre o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o MetOffice, serviço nacional de meteorologia do Reino Unido. FACE é a sigla de free-air CO2 enrichment – “enriquecimento de CO2 ao ar livre”.

O layout básico do experimento consiste em seis estruturas chamadas anéis. Cada anel é formado por 16 torres de 35 metros de altura dispostas em um círculo de 30 metros de diâmetro. São essas torres que vão liberar o ar enriquecido com CO2 dentro do perímetro do círculo.

De longe, a composição parece uma versão hightech do Stonehenge, que será copiada e colada seis vezes na densa paisagem amazônica. Até a conclusão desta edição da Super, dois desses cercadinhos estavam de pé – os outros quatro ficarão prontos até o fim do ano. 

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Seis guindastes de 45 metros de altura, que estão sendo usados para montar as torres, vão permanecer instalados ao lado dos anéis ao longo dos dez anos de duração do experimento. Eles vão servir para coletar dados até das árvores mais altas. 

Apenas três anéis vão liberar ar com carbono extra. Os outros três são o grupo de controle, ou seja: a estrutura vai soprar ar ambiente comum em vez da versão enriquecida. A ideia é comparar os resultados com e sem a dose reforçada do gás. Você pode se perguntar: então, para quê construir os anéis? Não seria mais fácil simplesmente analisar um trecho de floresta intocado?

O problema é que a mera existência das torres interfere na rotina do ecossistema – a começar pelo fato de que elas sopram constantemente, gerando um ventinho que não existe no ar úmido e paradão da Amazônia. O grupo de controle precisa ser idêntico em todas as variáveis, de modo a garantir que as diferenças observadas se devam exclusivamente ao CO2.

O perímetro do anel, como se vê nas fotos, não está isolado do entorno. O experimento não ocorre em uma estufa; uma parcela do gás inevitavelmente acaba escapando por cima e pelos lados. Por isso, as torres precisam soltar CO2 constantemente, de modo a manter a concentração estável lá dentro.

Computadores calculam em tempo real qual deve ser o ritmo da aspersão de dióxido de carbono em cada anel, considerando variáveis como a velocidade e direção do vento (durante a noite, o maquinário é desligado porque não há fotossíntese). 

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O sistema funciona mais ou menos como o ar-condicionado de uma loja. Os clientes precisam entrar e sair, então a porta passa uma parte razoável do tempo aberta. Mesmo assim, uma cortina de ar cria uma barreira invisível entre o ambiente interno e o externo. 

Mundo afora, existem alguns experimentos FACE já concluídos em florestas. Eles foram feitos em ecossistemas jovens, formados praticamente por uma única espécie de árvore, e são considerados de primeira geração. Outros dois, de segunda geração, estão em andamento em florestas já maduras na Inglaterra (BIFoR FACE) e na Austrália (EucFACE). O brasileiro será o terceiro dessa leva. 

A versão amazônica é pioneira: trata-se do primeiro FACE em uma floresta tropical de alta biodiversidade. Os experimentos na Inglaterra e na Austrália foram construídos em ecossistemas relativamente simples, em que as árvores predominantes são, respectivamente, carvalhos e eucaliptos.

“O número de espécies que nós temos no Brasil é ridículo”, diz Adriane Esquivel Muelbert, uma professora da Universidade de Birmingham que trabalha com o BIFoR FACE e agora vai liderar a área de biodiversidade do FACE brasileiro. “Aqui, a gente tem três espécies predominantes. No AmazonFACE, são mais de trezentas em cada anel.”

Vista aérea da floresta amazônica, com as copas das árvores preenchendo a imagem.
(Ricardo Lima/Getty Images)

Prevendo o futuro

Os pesquisadores não sabem, evidentemente, qual será o desfecho do experimento. Mas conhecem, em linhas gerais, os caminhos que a Amazônia enriquecida com CO2 pode seguir. Para entendê-los, precisamos revisar o básico das aulas de biologia. 

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Plantas não precisam comer: elas fabricam seus próprios carboidratos por meio da fotossíntese. Você cansou de estudar essa reação química no colégio, mas vale revisar: as folhudas usam a energia do Sol para pegar o gás carbônico da atmosfera (CO2), juntar com água (H2O) e produzir açúcar (C6H12O6). Como subproduto, elas liberam seis moléculas de oxigênio (O2) para cada uma de açúcar. 

Quando aumenta a quantidade de gás carbônico na atmosfera, as plantas automaticamente têm mais matéria-prima para fabricar alimento. Por isso, os pesquisadores já sabem que, assim que o AmazonFACE começar, a taxa de fotossíntese das plantas localizadas em seu perímetro vai aumentar bruscamente. A questão é outra: para onde vão essas calorias todas? 

O que os pesquisadores gostariam de descobrir é que esse carboidrato será usado para engordar os troncos. A madeira é a parte mais rígida e duradoura da planta – os açúcares usados para fazer lenha vão permanecer intocados por cinco ou seis séculos, no caso de árvores mais longevas. Isso significa que os átomos de carbono dedicados a essa tarefa ficarão um tempão longe da atmosfera, onde causariam efeito estufa. 

Não há garantia nenhuma de que isso vá acontecer, porém. O desfecho mais pessimista é que o açúcar extra seja usado para fazer algo mais efêmero, como folhas. Elas têm um ciclo de vida mais curto que o da árvore em si, o que significa que o carbono fica retido por pouco tempo. Outra possibilidade é que ele vá para as raízes, onde será usado como parte de um escambo de nutrientes com os fungos. 

O solo em que o AmazonFACE está sendo instalado é do tipo predominante em 60% da Amazônia. E uma de suas características marcantes é ser pobre em fósforo. Esse é um nutriente muito importante para a vida na Terra: faz parte das membranas das células e das moléculas de DNA, RNA e ATP (o ATP é uma molécula-bateria, que fornece energia aos os processos de manutenção de um ser vivo). Sem fósforo, não adianta fazer carboidrato: não dá para construir partes novas de nenhum ser vivo. 

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Por isso, as árvores do AmazonFACE podem acabar usando o CO2 extra para fabricar doses extras dos chamados exsudatos, que são um líquido calórico liberado pelas raízes e muito desejado pelos fungos. A ideia é que os fungos paguem por essa comida fornecendo fósforo em troca. Se eles terão algum fósforo para oferecer, é outra história: se a concentração do elemento no ecossistema como um todo for insuficiente, tudo ficará na estaca zero. 

Um complicador importante nessa história é que cada planta reage de maneira diferente ao CO2– e existem tantas plantas na Amazônia que seria extremamente trabalhoso acompanhar espécie por espécie. Além disso, uma planta que aparece em um anel pode não existir em outro. O que os pesquisadores fazem para driblar esse problema é distribuir as espécies em algo como uma planilha de Excel conforme as suas características.

Por exemplo: se dois arbustos têm caule da mesma espessura, uma certa tolerância à seca e uma certa taxa de fotossíntese, eles estão exercendo funções similares no ecossistema e vão reagir de maneira parecida ao aumento de CO2. Isso é o que os ecólogos chamam de espaço funcional de cada planta.

Em uma floresta inglesa, um anel FACE contém três espécies de plantas. No Brasil, são mais de 300.

Com essas categorias bem-determinadas, passa a ser possível comparar os resultados de um anel com CO2 contra um anel de controle ainda que não haja muitas espécies repetidas entre eles, bem como aperfeiçoar as simulações de computador que usamos para prever o futuro da floresta.

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Uma possibilidade preocupante, por exemplo, é que trepadeiras chamadas lianas – que têm a aparência de imensos cipós – se deem melhor que as árvores. Isso é ruim não só porque elas podem sufocar e matar outras plantas, mas também porque elas são reservatórios de carbono menos confiáveis. 

Rios voadores

Outra linha de investigação importante é descobrir o que acontece com o ciclo da água. Se você observar uma folha no microscópio, verá que sua superfície é repleta de estruturas chamadas estômatos. Eles são pequenas escotilhas que se abrem para deixar entrar o gás carbônico que será usado na fotossíntese. O problema é que, enquanto estão abertos, eles também permitem a saída de vapor.

Essa transpiração constante, rolando simultaneamente em todas as plantas, fornece boa parte da água que se acumula diariamente no céu da floresta – não é à toa que chove quase toda tarde na Amazônia. Na porção oeste da floresta, perto da cordilheira dos Andes, a influência do mar é mínima e cerca de 80% da precipitação é oriunda da evaporação dos estômatos. Já para os lados de Belém, mais perto do mar, essa taxa cai para uns 20%. 

Com a concentração de CO2 mais alta, os estômatos precisam ficar abertos menos tempo para captar a mesma quantidade de gás. E quanto mais tempo eles permanecem fechados, menos água as plantas liberam na atmosfera, o que significa menos chuva.

O transporte de umidade da Amazônia para outras regiões do Brasil e da América Latina é um fenômeno atmosférico muito importante para o clima do continente; qualquer mudança nas taxas de evaporação pode mexer com a agropecuária e com os ecossistemas vizinhos. 

Os pesquisadores usarão um enorme arsenal de equipamentos para acompanhar as plantas. Um particularmente interessante, no caso da água, é o sensor de fluxo de seiva. Trata-se de um aparato com agulhas que fica preso ao tronco da árvore e detecta o movimento do líquido lá dentro. Se há muita água subindo, é sinal de que as árvores estão transpirando mais pelos estômatos. Também dá para medir a umidade no solo e a transpiração diretamente nas folhas, usando o mesmo aparelho que detecta a fotossíntese. 

Vista aérea de um anéis FACE.
(Maria Clara Ferreira Guimarães/AmazonFACE/Divulgação)

Muy caliente

Embora o AmazonFACE exista para avaliar uma única variável – a concentração de CO2 –, a floresta de 2060 será diferente da atual em mais de um aspecto. O calor e as secas, por exemplo, vão aumentar, justamente pela maior concentração de gases de efeito estufa como o CO2 na atmosfera. Mesmo que zerássemos todas as emissões de carbono hoje, a temperatura média da Terra ainda subiria 1,6 °C até 2060, e fecharia o século 21 em uma alta de 1,4 °C.

Isso acontece porque esses gases deixam a luz solar passar e aquecer o solo, mas impedem parcialmente o calor do chão de exalar de volta para o espaço na forma de radiação infravermelha. Nesse cenário, as chuvas no sul e no leste da floresta vão diminuir de 10% e 20% nas próximas décadas.

O experimento não está sendo construído para gerar dados sobre as consequências do aumento de temperatura, mas ele vai acabar fazendo isso por tabela, graças a variações climáticas sazonais.

“Ao longo dos dez anos de experimento, é virtualmente certo que haja secas e ondas de calor, causadas por El Niños, pelo aquecimento do Atlântico ou pelos dois ao mesmo tempo”, explica o ecólogo David Lapola da Unicamp, um dos coordenadores do experimento. “Aí a gente vai poder comparar: quando só o CO2 está aumentado, ocorre isso aqui. Quando há CO2, calor e seca simultaneamente, mudam outras coisas.”

Idealmente, as árvores vão captar CO2 e transformá-lo em madeira, mantendo-o longe da atmosfera por séculos.

O aumento na concentração de gás carbônico, para a Amazônia, tem um efeito ambíguo. Por um lado, os episódios de calor e seca cada vez mais frequentes, combinados ao desmatamento, estão levando uma parcela razoável do território da floresta a um estado crítico conhecido pelos pesquisadores como tipping point – “ponto de virada”.

A partir desse limite, previsto em simulações de computador, começaria uma reação em cadeia de degradação do ecossistema que levaria à perda crônica de biodiversidade e transformaria a floresta em uma paisagem mais parecida com uma savana, com vegetação mais baixa, esparsa e pobre (mas, evidentemente, sem a riqueza biológica própria de uma savana de verdade).

Um artigo recente, publicado no periódico especializado Nature em fevereiro, prevê que algo entre 10% e 47% da floresta alcançará esse ponto até 2050.

Por outro lado, é possível que as taxas de fotossíntese reforçadas pelo CO2 extra permitam às plantas prosperar e resistir a esse processo, adiando ou impedindo completamente a chegada ao tipping point em algumas regiões. O AmazonFACE será fundamental para estudar essas possibilidades e calibrar melhor os modelos virtuais que tentam determinar o destino da Amazônia no aquecimento global. 

Manter a floresta saudável é essencial para proteger o planeta das consequências da ação humana. Cada árvore queimada é um pouco de carbono que antes existia na forma inofensiva de madeira, mas virou fumaça e agora causa efeito estufa. Se a floresta inteira pegasse fogo do dia para a noite, suas 123 bilhões de toneladas de carbono equivaleriam a 140 anos de poluição.

É claro que a degradação não é tão uniforme nem acontece tão rápido. Mas, em 2021, a Amazônia já emitiu mais carbono do que absorveu pela primeira vez na história registrada. O desastre já começou, e não é mais possível revertê-lo. Nos resta mitigar suas consequências, e experimentos como o AmazonFACE são a melhor maneira de bolar estratégias para isso.

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