Mariana Mello
Galileu vivia em bordéis. Newton era apaixonado por um matemático. Einstein era pão-duro e desleixado. A vida dos grandes cientistas mistura lances de genialidade com hábitos, paixões e manias que nada ficam a dever ao mais comum dos mortais
Lembra aquelas aulas de geometria em que, pela primeira vez, você ouviu falar de Pitágoras? Seu professor provavelmente levou horas explicando o famoso teorema estabelecido por esse brilhante matemático e filósofo grego. Com catetos e hipotenusas boiando na mente, naquele dia você certamente voltou para casa convicto de que tomara conhecimento da existência de um gênio da geometria. Nascido na ilha grega de Samos, Pitágoras (565-490 a.C.) revolucionou a matemática. Suas teorias, por exemplo, seriam aplicadas com êxito no estudo do movimento dos astros 17 séculos mais tarde. O que o seu professor talvez não tenha contado é que o sábio grego tinha lá suas esquisitices.
Pitágoras acreditava que olhar a própria imagem no espelho à luz de velas atraía azar. Deixar de arrumar a cama, idem. E achava que tocar em um frango vivo era pedir para que algo de ruim acontecesse. Acostumado a raciocínios lógicos, Pitágoras nutria um leque de superstições digno de um babalorixá. Era um gênio matemático e também um místico: liderava uma seita que pregava a reencarnação e a metempsicose – a volta à Terra de alguém que cometeu crimes em vidas passadas, encarnado no corpo de um animal. Tinha também atitudes dignas de um Francisco de Assis, o santo cristão apaixonado pela natureza. Quando não estava calculando, Pitágoras podia ser visto conversando com os bois. Certa vez, chegou a bater com a bengala em um homem que maltratava um cachorro. “Não faça isso”, disse. “Este aí é um amigo que morreu há pouco tempo e reencarnou.”
Não se espante, caro leitor, nem julgue que lances assim, na vida dos gênios da ciência, só aconteciam num tempo em que ciência, filosofia e religião conviviam com mais promiscuidade. Impulsos, obsessões, manias e crenças nada científicas eram e são comuns, em menor ou maior grau, aos mais luminosos cérebros que já existiram. Dos gregos a Lavoisier, de Newton a Einstein, o lado às vezes comum, às vezes pitoresco dos homens de ciência exibe páginas em que o gracioso e o inusitado compõem a antimagem do mito que todos cultuamos.
“O cientista é como qualquer pessoa: tem paixões e ambições”, afirma Shozo Motoyama, chefe do Departamento de História da Ciência da Faculdade de História da Universidade de São Paulo. “É ingenuidade imaginar que se trata de alguém acima das vaidades humanas.” Muitos gênios, aliás, foram flagrados em atitudes que revelam uma malandragem digna dos românticos morros cariocas de outrora. Vejamos o caso do astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642). O jovem Galileu, falastrão e polemista, teve coragem suficiente para desafiar a Igreja com a sua teoria de que a Terra girava em torno do Sol, e não o contrário. Mas não conseguiu resistir à tentação de se apoderar de idéias alheias para alcançar prestígio e conseguir recursos para manter a vida boêmia.
Fiel freguês dos bordéis de Pádua, cidade do interior da Itália onde lecionava filosofia, Galileu amou muitas prostitutas e acabou casando-se com uma delas, Marina de Gamba. Ambos tinham 35 anos. Com muitas contas para pagar, não viu outra saída senão usar a sua inteligência como inventor. Numa viagem a Veneza, o astrônomo ouviu rumores a respeito de um fabricante de óculos que acabara de inventar um instrumento que permitia observar objetos distantes como se estivessem perto. Voltou para casa correndo e só descansou depois que o telescópio, o invento com que iria abalar a cosmogonia da época, estava pronto e patenteado com o seu nome.
Galileu também tropeçou, ao menos uma vez, na seriedade e na precisão que se espera de um dos maiores homens de ciência da história. Empolgado com cálculos e sempre pronto a detonar uma polêmica, o cientista italiano – que, apesar de sua herética teoria heliocêntrica, era católico – anunciou em praça pública que revelaria as dimensões e a localização matemáticas do inferno. Calculou então que os domínios do Diabo tinham a forma de um cone invertido, ocupavam um doze avos do volume da Terra e ficavam exatamente abaixo da cidade de Jerusalém. Como se não bastasse, arriscou esboçar a altura de Lúcifer que, pelas suas contas, mediria 1 935 braças (mais de 4 quilômetros).
Galileu não está sozinho no time dos que não hesitaram em surrupiar a idéia do próximo. Antoine Lavoisier (1743–1794), o químico francês que imortalizou a expressão “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, ganhou notoriedade em 1788 ao demonstrar que o ar é composto por vários gases (até então pensava-se que o ar era uma substância pura) e que o oxigênio é fundamental para a combustão. Tudo bem, não fosse um pequeno detalhe: quem descobriu a existência do oxigênio não foi Lavoisier, mas seu amigo Joseph Priestley (1733-1804), que teve a infelicidade de confidenciar a descoberta ao colega francês durante uma festa regada a vinho. Lavoisier que, naquela semana, tinha concluído um trabalho científico sobre combustão em que não fazia uma única referência ao oxigênio, vislumbrou ali, na revelação etílica de Priestley, o seu momento de glória. Terminada a farra, reescreveu o trabalho, adicionando as idéias do amigo, e entrou para os anais da ciência como autor de uma descoberta que mudou os rumos da química.
Mas há também, no cotidiano dos sábios fora dos laboratórios e da Academia, gestos de boa vontade e camaradagem. Lá está o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), que não nos deixa mentir. (E nem mentia.) Tímido além da conta, Darwin detestava discussões e, por não ter concluído os estudos superiores, não se considerava um cientista. Teria passado pela vida como um homem comum, casado com uma prima em segundo grau, não fosse um empurrãozinho do amigo Alfred Wallace (1823-1913). Foi uma carta de Wallace que o levou a retirar do baú os manuscritos de sua Teoria da Evolução das Espécies. Na carta, o amigo indagara se ele via fundamento na idéia de que as plantas e os animais evoluem para se adaptarem ao meio e, ao saber que Darwin já havia pensado sobre isso anos antes, estimulou-o a publicar suas idéias, escondidas sob o temor de entrar em conflito com a Igreja.
Se Darwin não gostava de confusão, o mesmo não se pode dizer de Isaac Newton (1642-1727), o físico inglês que conseguiu enxergar na queda de uma maçã o rastro de uma força invisível que age sobre todas as coisas que estão ao redor e sobre a Terra: a gravidade. Newton dava um boi para entrar numa encrenca e uma boiada para não sair. Criado sem pai, longe da mãe, o menino Newton teve que ser camareiro de um professor em troca da bolsa de estudos na escola elementar. Mais tarde se tornaria um homem fechado, agressivo e ambicioso.
Tão logo a Teoria da Gravitação Universal foi publicada, o físico Robert Hooke (1635-1703) cutucou a onça com vara curta, acusando Newton de plágio. Hooke jurava que tinha feito a descoberta primeiro. Não sabia com quem estava lidando. Newton revidou e os dois, além das alfinetadas por cartas e artigos em jornais, chegaram a trocar sopapos nos corredores da Royal Society, sociedade científica inglesa presidida por Newton. “Hooke deveria ser tão conhecido na época quanto Newton”, diz Shozo. Mas só Newton entrou para a história.
Em 1699, o físico inglês foi nomeado diretor da Casa da Moeda Britânica, cargo que ocupou por 20 anos. O importante posto lhe permitiu ajudar amigos com empréstimos e, claro, prejudicar os inimigos. Além disso, também assinou mais de 100 ordens de prisão e decretou alguns enforcamentos por não pagamento de dívidas. Envolvido com tanto trabalho, dizia não ter tempo para mulheres e nunca se casou. Os inimigos não perderam a chance de acertá-lo no rim: é que Newton não se casou, mas se apaixonou perdidamente. Por um homem. Durante anos trocou cartas carinhosas com o jovem matemático suíço Fatio Duillier.
Em excentricidade nenhum cientista até hoje conseguiu desbancar Albert Einstein (1879-1955), autor da Teoria da Relatividade, um dos pilares da física moderna. Para começar, Einstein costumava deitar na banheira vazia para estudar, imaginando estar sentado na escrivaninha. Caminhava debaixo de tempestades sem se dar conta da chuva, rabiscava fórmulas na toalha da mesa, comia suas refeições, geladas no prato, horas depois que as outras pessoas já haviam comido, e escrevia discursos de agradecimento no verso de notas fiscais.
Absolutamente absorto em seu mundo particular, Einstein vivia praticamente sem um tostão no bolso. Toda a sua renda vinha do modesto salário de professor de física, que acabava rapidamente. Isso ajuda a explicar, em parte, sua aparência descuidada. Ele raramente cortava o cabelo, vestia calças que acabavam no meio das canelas, só fazia barba com água e sabão (creme de barbear era supérfluo) e ia para todo lado de bicicleta – não tinha carro.
O ar desleixado, a cabeleira branca e os olhos grandes, por incrível que pareça, funcionavam muito bem junto às mulheres. Einstein recebia centenas de cartas de pretendentes apaixonadas, principalmente depois que ficou viúvo de Elsa Löwenthal, sua segunda esposa, aos 57 anos. Segundo os biógrafos, ele soube tirar proveito do fã-clube feminino, levando mulheres para demorados passeios de barco em Zurique.
Einstein também era humilde e solidário. Respondia cartas de crianças, que lhe enviavam perguntas sobre álgebra. E salvou o colega Leopold Infield da miséria, aceitando participar de uma farsa por uma boa causa. “Quando foi demitido da universidade, Infield escreveu um livro sobre história da física e Einstein entrou como co-autor sem ter lido um parágrafo. Infield viveu o resto da vida graças aos direitos autorais dessa obra”, diz Shozo.
Einstein e Sigmund Freud (1858-1939), o pai da psicanálise, eram amigos e, vez por outra, se reuniam para conversar. Nessas ocasiões, o físico gostava de dizer que a humanidade ainda não estava pronta para quebrar o átomo e Freud pegava a deixa para mais um discurso sobre a pulsão de morte que alimenta a agressividade humana. Militando em áreas de conhecimento distintas, tinham em comum o senso de humor e o gosto pelo tabaco. (Freud fumava tanto cachimbo que teve câncer na boca. Einstein, sem grana, foi visto várias vezes catando bitucas de cigarro nas ruas.)
Freud, ele mesmo diria a seu respeito se pudesse se autoanalisar, carregava um complexo de inferioridade por ser pobre e judeu num mundo de maioria cristã. Ele não concordava com o desprezo dos médicos pelo lado psicológico dos pacientes e criou uma nova maneira de abordar e entender o funcionamento do ser humano. Na mão contrária de suas idéias revolucionárias, era um marido conservador e um pai austero. Fazia as refeições sempre nos mesmos horários, visitava a mãe sempre no mesmo dia da semana, caminhava e jogava tarô com outros médicos com hora marcada.
Pitágoras, Galileu, Darwin, Einstein. “Todos eles eram, sobretudo, pessoas como eu e você”, diz Carlos Maia, do Departamento de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Você decide se o mais difícil é acreditar que eram mesmo pessoas normais tendo feito as descobertas que fizeram ou se eram mesmo gênios da raça com todo esse maravilhoso e burlesco repertório de extravagâncias.
Para saber mais
Na livraria: Einstein: A Ciência da Vida, Denis Brian, Editora Ática, São Paulo, 1996
Isaac Newton – O Último Feiticeiro, Michael White, Editora Record, São Paulo, 2000
Coleção Cientistas em 90 Minutos, Paul Strathern, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998
Grandes Debates da Ciência, Hal Hellman, Editora Unesp, São Paulo, 1999
A Dança do Universo: dos Mitos de Criação ao Big-Bang, Marcelo Gleiser, Companhia das Letras, São Paulo, 1999
mamello@abril.com.br